domingo, 31 de março de 2019

Discurso de Camille Flammarion no funeral do Codificador[1]




É sob o golpe da dor profunda causada pela partida prematura do venerável fundador da Doutrina Espírita, que abordamos a nossa tarefa, simples e fácil para as sua mãos sábias e experimentadas, mas cujo peso e gravidade nos acabrunhariam se não contássemos com o concurso eficaz dos bons Espíritos e a indulgência dos nossos leitores.
Quem, entre nós, sem ser taxado de presunçoso, poderia se gabar de possuir o espírito de método e de organização dos quais se iluminam todos os trabalhos do mestre? Sua poderosa inteligência podia concentrar sozinha tantos materiais diversos, e triturá-los, transformá-los, para se derramarem em seguida como orvalho benfazejo, sobre as almas desejosas de conhecerem e de amarem.
Incisivo, conciso, profundo, sabia agradar e se fazer compreendido, numa linguagem ao mesmo tempo simples e elevada, tão longe do estilo familiar quanto das obscuridades da metafísica.
Multiplicando-se sem cessar, pudera, até aqui, bastar a tudo. Entretanto, o crescimento diário de suas relações e o desenvolvimento incessante do Espiritismo faziam-lhe sentir a necessidade de acompanhar-se de alguns ajudantes inteligentes, e preparava, simultaneamente, a organização nova da Doutrina e de seus trabalhos, quando nos deixou para ir, num mundo melhor, colher a sanção da missão cumprida, e reunir os elementos de uma nova obra de devotamento e de sacrifício.
Ele era só!… Chamar-nos-emos legião, e, por fracos e inexperientes que sejamos, temos a íntima convicção de que nos manteremos à altura da situação, se, partindo dos princípios estabelecidos e de uma evidência incontestável, nos fixarmos em executar, tanto quanto nos seja possível, e segundo as necessidades do momento, os projetos de futuro que o próprio Sr. Allan Kardec se propusera cumprir.
Enquanto estivermos nesse caminho, e que todas as boas vontades se unirem num comum esforço para o progresso intelectual e moral da Humanidade, o Espírito do grande filósofo estará conosco e nos secundará com a sua poderosa influência. Possa ele suprir a nossa insuficiência, e possamos nos tornar dignos de seu concurso, em nos consagrando à obra com tanto devotamento e sinceridade, senão com tanto de ciência e de inteligência!
Escrevera sobre a sua bandeira estas palavras: Trabalho, solidariedade, tolerância. Sejamos, como ele, infatigáveis; sejamos, segundo os seus desejos, tolerantes e solidários, e não temamos em seguir o seu exemplo repondo vinte vezes entre as mãos os princípios ainda discutidos. Apelamos a todos os concursos, a todas as luzes. Tentaremos avançar com certeza antes que com rapidez, e os nossos esforços não serão infrutíferos, se, como disso estamos persuadidos, e como lhe seremos os primeiros a dar o exemplo, cada um se empenhar em cumprir o seu dever, colocando de lado toda questão pessoal para contribuir ao bem geral.
Não poderíamos entrar sob auspícios mais favoráveis na nova fase que se abre para o Espiritismo, do que fazendo os nossos leitores conhecerem, num rápido esboço, o que foi, toda a sua vida, o homem íntegro e honrado, o sábio inteligente e fecundo, cuja memória se transmitirá aos séculos futuros, cercada da auréola dos benfeitores da Humanidade.
Nascido em Lyon, a 3 de outubro de 1804, de uma antiga família que se distinguiu na magistratura e na advocacia, o Sr. Allan Kardec (Hippolyte-Léon-Denizard Rivail) não seguiu essa carreira. Desde sua primeira juventude, sentia-se atraído para o estudo das ciências e da filosofia.
Educado na Escola de Pestalozzi, em Yverdum (Suíça), tornou-se um dos discípulos mais eminentes desse célebre professor, e um dos zelosos propagadores do seu sistema de educação, que exerceu uma grande influência sobre a reforma dos estudos na Alemanha e na França.
Dotado de uma inteligência notável e atraído para o ensino pelo seu caráter e as suas aptidões especiais, desde a idade de quatorze anos, ensinava o que sabia àqueles de seus condiscípulos que tinham adquirido menos do que ele. Foi nessa escola que se desenvolveram as ideias que deveriam, mais tarde, colocá-lo na classe dos homens de progresso e dos livres pensadores.
Nascido na religião católica, mas estudante em um país protestante, os atos de intolerância que ele teve que sofrer a esse respeito, lhe fizeram, em boa hora, conceber a ideia de uma reforma religiosa, na qual trabalhou no silêncio durante longos anos, com o pensamento de chegar à unificação das crenças; mas lhe faltava o elemento indispensável para a solução desse grande problema.
O Espiritismo veio mais tarde lhe fornecer e imprimir uma direção especial aos seus trabalhos.
Terminados os seus estudos, veio para a França. Dominando a fundo a língua alemã, traduziu para a Alemanha diferentes obras de educação e de moral, e, o que é característico, as obras de Fénélon, que o seduziram particularmente.
Era membro de várias sociedades sábias, entre outras da Academie Royale d’Arras, que, em seu concurso de 1831, o premiou por uma dissertação notável sobre esta questão: “Qual é o sistema de estudos mais em harmonia com as necessidades da época?”
De 1835 a 1840, fundou, em seu domicílio, à Rua de Sèvres, cursos gratuitos, onde ensinava química, física, anatomia comparada, astronomia etc.; empreendimento digno de elogios em todos os tempos, mas sobretudo numa época em que um bem pequeno número de inteligências se aventurava a entrar nesse caminho.
Constantemente ocupado em tornar atraentes e interessantes os sistemas de educação, inventou, ao mesmo tempo, um método engenhoso para aprender a contar, e um quadro mnemônico da história da França, tendo por objeto fixar na memória as datas dos acontecimentos notáveis e das descobertas que ilustraram cada reinado.
Entre as suas numerosas obras de educação, citaremos as seguintes: Plano proposto para a melhoria da instrução pública (1828); Curso prático e teórico de aritmética, segundo o método de Pestalozzi, para uso dos professores primários e das mães de família (1829); Gramática Francesa Clássica (1831); Manual dos Exames para os diplomas de capacidade; Soluções arrazoadas das perguntas e problemas de aritmética e de geometria (1846); Catecismo gramatical da língua francesa (1848); Programa de cursos usuais de química, física, astronomia, fisiologia, que ele professava no LYCÉE POLYMATHIQUE; Ditado normal dos exames da Prefeitura e da Sorbonne, acompanhado de Ditados especiais sobre as dificuldades ortográficas (1849), obra muito estimada na época de sua aparição, e da qual, recentemente ainda, se faziam tirar novas edições.
Antes que o Espiritismo viesse a popularizar o pseudônimo Allan Kardec, como se vê, soube se ilustrar por trabalhos de uma natureza toda diferente, mas tendo por objeto esclarecer as massas e ligá-las mais à sua família e ao seu país.
 Por volta de 1855, desde que duvidou das manifestações dos Espíritos, o Sr. Allan Kardec entregou-se a observações perseverantes sobre esse fenômeno, e se empenhou principalmente em deduzir-lhe as consequências filosóficas. Nele entreviu, desde o início, o princípio de novas leis naturais; as que regem as relações do mundo visível e do mundo invisível; reconheceu na ação deste último uma das forças da Natureza, cujo conhecimento deveria lançar luz sobre uma multidão de problemas reputados insolúveis, e compreendeu-lhe a importância do ponto de vista religioso.
 As suas principais obras sobre essa matéria são: O Livro dos Espíritos, para a parte filosófica e cuja primeira edição apareceu em 18 de abril de 1857; O Livro dos Médiuns, para a parte experimental e científica (janeiro de 1861); O Evangelho Segundo o Espiritismo, para a parte moral (abril de 1864); O Céu e o Inferno, ou a Justiça de Deus segundo o Espiritismo (agosto de 1865); A Gênese, os Milagres e as Predições (janeiro de 1868); a Revista Espírita, jornal de estudos psicológicos, coletânea mensal começada em 1º de janeiro de 1858. Fundou em Paris, a 1º de abril de 1858, a primeira Sociedade espírita regularmente constituída, sob o nome de Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, cujo objetivo exclusivo era o estudo de tudo o que pode contribuir para o progresso desta nova ciência. O Sr. Allan Kardec nega a justo título de nada ter escrito sob a influência de ideias preconcebidas ou sistemáticas; homem de um caráter frio e calmo, ele observou os fatos, e de suas observações deduziu as leis que os regem; no primeiro deu a teoria e nele formou um corpo metódico e regular.
 Demonstrando que os fatos falsamente qualificados de sobrenaturais estão submetidos a leis, ele os faz entrar na ordem dos fenômenos da Natureza, e destrói assim o último refúgio do maravilhoso, e um dos elementos da superstição.
 Durante os primeiros anos, em que se duvidou dos fenômenos espíritas, essas manifestações foram antes um objeto de curiosidade; O Livro dos Espíritos fez encarar a coisa sob qualquer outro aspecto; então abandonaram-se as mesas girantes que não foram senão um prelúdio, e que se reunia a um corpo de doutrina que abarcava todas as questões que interessam à Humanidade.
 Do aparecimento de O Livro dos Espíritos data a verdadeira fundação do Espiritismo, que, até então, não possuía senão elementos esparsos sem coordenação, e cuja importância não pudera ser compreendida por todo o mundo; a partir desse momento, também, a doutrina fixa a atenção dos homens sérios e toma um desenvolvimento rápido. Em poucos anos, essas ideias acharam numerosos adeptos em todas as classes da sociedade e em todos os países. Esse sucesso, sem precedente, liga-se sem dúvida às simpatias que essas ideias encontraram, mas deveu-se também, em grande parte, à clareza, que é um dos caracteres distintivos dos escritos de Allan Kardec.
 Abstendo-se de fórmulas abstratas da metafísica, o autor soube se fazer ler sem fadiga, condição essencial para a vulgarização de uma ideia. Sobre todos os pontos controvertidos, sua argumentação, de uma lógica fechada, ofereceu pouca disputa à refutação e pré-dispôs à convicção. As provas materiais que o Espiritismo dá da existência da alma e da vida futura tendem à destruição das ideias materialistas e panteístas. Um dos princípios mais fecundos dessa doutrina, e que decorre do precedente, é o da pluralidade das existências, já entrevisto por uma multidão de filósofos, antigos e modernos, e nestes últimos tempos por Jean Reynaud, Charles Fourier, Eugène Sue e outros; mas permanecera no estado de hipótese e de sistema, ao passo que o Espiritismo demonstra-lhe a realidade e prova que é um dos atributos essenciais da Humanidade. Desse princípio decorre a solução de todas as anomalias aparentes da vida humana, de todas as desigualdades intelectuais, morais e sociais; o homem sabe, assim, de onde veio, para onde vai, e por que fim está sobre a Terra, e porque sofre.
 As ideias inatas se explicam pelos conhecimentos adquiridos nas vidas anteriores; a marcha dos povos e da Humanidade, pelos homens dos tempos passados que revivem depois de terem progredido; as simpatias e as antipatias, pela natureza das relações anteriores; essas relações, que ligam a grande família humana de todas as épocas, dão por base as próprias leis da Natureza, e não mais uma teoria, aos grandes princípios da fraternidade, da igualdade, da liberdade e da solidariedade universal.
 Em lugar do princípio: Fora da Igreja não há salvação, que entretém a divisão e a animosidade entre as diferentes seitas, e que fez derramar tanto sangue, o Espiritismo tem por máxima: Fora da Caridade não há salvação, quer dizer, igualdade entre os homens diante de Deus, a tolerância, a liberdade de consciência e a benevolência mútua.
 Em lugar da fé cega que anula a liberdade de pensar, ele diz: Não há fé inquebrantável senão aquela que pode olhar a razão face a face em todas as épocas da Humanidade. À fé é necessária uma base, e essa base é a inteligência perfeita daquilo que se deve crer; para crer não basta ver, é necessário, sobretudo, compreender. A fé cega não é mais deste século; ora, é precisamente o dogma da fé cega que faz hoje o maior número de incrédulos, porque ela quer se impor e exige a adição de uma das mais preciosas faculdades do homem: o raciocínio e o livre arbítrio. (O Evangelho Segundo o Espiritismo.)
Trabalhador infatigável, sempre o primeiro e o último no trabalho, Allan Kardec sucumbiu, no dia 31 de março de 1869, em meio dos preparativos para uma mudança de local, necessitada pela extensão considerável de suas múltiplas ocupações. Numerosas obras que estavam no ponto de terminar, ou que esperavam o tempo oportuno para aparecerem, virão um dia provar mais ainda a extensão e a força de suas convicções.
Morreu como viveu, trabalhando. Há muitos anos, sofria de uma doença do coração, que não podia ser combatida senão pelo repouso intelectual e uma certa atividade material; mas inteiramente dedicado à sua obra, recusava-se a tudo o que podia absorver um dos seus instantes, às expensas de suas ocupações prediletas. Nele, como em todas as almas fortemente temperadas, a lâmina gastou a bainha.
O corpo se lhe tornava pesado e lhe recusava os seus serviços, mas o seu Espírito, mais vivo, mais enérgico, mais fecundo, estendia sempre mais o círculo de sua atividade.
Nessa luta desigual, a matéria não poderia resistir eternamente. Um dia ela foi vencida; o aneurisma se rompeu, e Allan Kardec caiu fulminado. Um homem faltava à Terra; mas um grande nome tomava lugar entre as ilustrações deste século, um grande Espírito ia se retemperar no Infinito, onde todos aqueles que ele consolara e esclarecera esperavam impacientemente a sua chegada!
 A morte, disse ele ainda recentemente, a morte bate com golpes redobrados nas classes ilustres!… A quem virá agora libertar?
Ele veio, junto a tantos outros, se retemperar no espaço, procurar novos elementos para renovar o seu organismo usado numa vida de labores incessantes. Partiu com aqueles que serão os faróis da nova geração, para retornar logo com eles para continuar e terminar a obra deixada em mãos devotadas.
O homem aqui não mais está, mas a alma permanece entre nós; é um protetor seguro, uma luz a mais, um trabalhador infatigável do qual se acresceram as falanges do espaço. Como sobre a Terra, sem ferir ninguém, saberá fazer ouvir a cada um os conselhos convenientes; temperará o zelo prematuro dos ardentes, secundará os sinceros e os desinteressados, e estimulará os tíbios. Ele vê, sabe hoje tudo o que previra recentemente ainda! Não está mais sujeito nem às incertezas, nem aos desfalecimentos, e nos fará partilhar a sua convicção em nos fazendo tocar o dedo no objetivo, em nos designando o caminho, nessa linguagem clara, precisa, que dele fez um tipo nos anais literários.
O homem aqui não mais está, nós o repetimos, mas Allan Kardec é imortal, e a sua lembrança, os seus trabalhos, o seu Espírito, estarão sempre com aqueles que tiverem, firme e altamente, a bandeira que ele sempre soube respeitar.
Uma individualidade poderosa constituiu a obra; era o guia e a luz de todos. A obra, sobre a Terra, nos terá o lugar do indivíduo. Não se reunirá mais ao redor de Allan Kardec: reunir-se-á ao redor do Espiritismo tal como o constituiu, e, pelos seus conselhos, sob a sua influência, avançaremos a passos certos para as fases felizes prometidas à Humanidade regenerada.

Camille Flammarion

sábado, 30 de março de 2019

O ÁLCOOL MATOU MINHA VIDA[1]




Espírito: Maristela ‒ Médium: M. Nicodemos

Viver! Eu sempre amei viver! Sempre fui muito cuidadosa com o meu corpo. Saúde em primeiro lugar, atividade física e alimentação saudável; enfim, achava que iria viver por muitos anos. Eu acordava e tinha pressa em viver aquele dia intensamente sem perder um segundo sequer. Eu queria viver intensamente, ser feliz, fazer tudo que me era permitido e não deixava que o desânimo ou a preguiça diminuíssem minha energia e o meu gostar de viver.
Sempre fazia meus exames periódicos e, com moderação, eu bebia com meus amigos uma cerveja, outros dias uma vodka e assim eu passava os finais de semanas, tudo muito regrado e moderado.
Não havia exageros de minha parte e policiava as minhas amigas, sempre fui muito observadora e nada passava sem que eu não visse. Numa noite de sábado eu abusei do álcool e senti uma alegria que me contagiou e eu gostei, eu queria ficar com aquela leveza e sem timidez.
Foi muito bom, mas não percebi que aquele dia eu estava colocando minha vida em perigo por conta do vício.
Eu me achava superior a essas fraquezas pobres dos homens e sempre falava: “Sou superior, eu sei do meu limite, não se preocupe comigo.”
Doce e triste ilusão. Fui pega pelo maldito vício do álcool, e fui acabando com tudo que eu e minha família possuíamos, moral e financeiramente.
Fiquei hospitalizada em clínicas caríssimas de luxo, fugia e, em outras clínicas, fui colocada, mas, infelizmente, o vício era tão fulminante e cruel que foi cada vez mais levando o meu gosto de viver, a minha alegria. Veio a preguiça e o desânimo. Eu já não tinha forças para lutar e, quando cansada, eu só tinha um pensamento: quero vodka. Cheguei a beber coisas que me nego a dizer neste momento, pois não sei quem vai ter acesso a esta carta, não quero contaminar ninguém.
Hoje estou aqui para relatar o que vivi, para alertar os jovens como eu para o perigo da bebida. Ficar alerta quanto ao momento de parar e não deixar que a euforia do álcool seja maior que sua alegria natural de ser. Tudo que passa do normal é perigoso, é falso, é cruel e é o seu fim inconsciente.
Eu sou Maristela..., uma jovem de 23 anos, que amava viver e que deixou uma dose a mais levar a alegria de viver por uma falsa alegria de sobreviver.
Desencarnei de um modo muito triste e de forma lamentável, fui encontrada em uma viela, sufocada pelos meus vômitos, como uma moça qualquer e sem família. Ainda com vida, pedi perdão a Deus e aos meus familiares por não ter dado valor à vida que o Criador havia me proporcionado.
O vício me venceu, mas não quero que outros se percam como eu; em apenas uma noite de sábado, eu deixei o vício acordar dentro de mim, pois trazia esta tendência de outras vidas.
E chegando aqui, percebi que fui vitima de suicídio indireto.
Não deixem que os seus jovens caiam nesse perigo. O álcool mata a vida terrena, pois a vida continua além-túmulo.

Fiquem em paz.


Fonte: Grupo Socorrista Obreiros do Senhor Jerônimo Mendonça

sexta-feira, 29 de março de 2019

Congressos Espíritas: a massa e o diálogo ausente[1]




Wilson Garcia – Recife, PE – publicado em 31/03/2018

“Nenhuma fala monológica pode comunicar a um auditório algo com sucesso, se os ouvintes não têm condições de, ao menos potencialmente, tornarem-se parceiros dialógicos do falante”.
Lúcia Santaella

Em um sistema perverso, como o prevalecente no planeta de forma geral, falar de justiça, ética e filosofia de vida são coisas do idealismo utópico, embora o idealismo utópico ainda alimente mentes e corações livres das peias dos sistemas. O pragmatismo nos impõe a ousar nas brechas do perverso sistema, para não deixar morrer as belas letras do sonho que alimenta a esperança de um futuro melhor. Lembra-me a insistente conversa de Chico Xavier, nos anos 1970, com o livreiro Stig Roland Ibsen, advertindo-lhe de que era preciso vender os livros com lucro sob pena de ver sua livraria as portas da falência. A fala de Chico era extensiva ao espiritismo brasileiro, especialmente àqueles que exerciam constante crítica aos valores desses mesmos livros e os comercializavam a preço de custo, dentro da ideia de torná-los mais acessíveis aos menos favorecidos socialmente.
Volto, pois, ao discurso da razão do que está por trás dos atuais congressos ditos espíritas, que implementam o sentido do espetáculo como forma de alcançar um grande número de pessoas, enchendo salões e corredores dos imensos espaços custosos previamente alugados para atrai-las. É o espetáculo, na sua formulação teórica, resultante da densa crítica de que a espetacularização esconde uma questão ética de fundamental importância, que é a justiça social. É ela uma das piores facetas de um sistema dominante pendular apenas em aparência, pois que impõe o permanente consumo de bens e serviços sob a capa da necessidade e do desejo de tornar feliz a estada provisória do ser no planeta.
Uma vez que não se pode viver fora do sistema, vamos raciocinar com ele e com as ferramentas que ele oferece sorridente, com as quais ensina a ser vitorioso na vida, algo, acredita o sistema, válido para todos, de forma que o discurso do “todos” é o discurso da justiça social do sistema, ajustado à sua ética particular. Então, parte-se de uma dúvida já posta: por que nossos congressos estão modelados na dimensão do espetáculo? Será por conta do justo desejo de alcançar o grande público, retirando das pequenas salas dos centros espíritas o desafio de lograr chegar a ele, uma vez que, sendo pequenos, estes centros estão incapacitados de atender ao discurso do espiritismo para as massas?
Veremos que não.
É preciso, em primeiro lugar, verificar que a grande maioria dos atuais congressos espíritas é patrocinada pelas federativas estaduais, elas que, não faz muito tempo, eram contra esse tipo de evento, especialmente no formato em que estão sendo propostos. O que as fizeram mudar de ideia é uma longa e pertinente discussão, que deve ser feita em momento especial. O fato indiscutível é que o primeiro congresso espírita no Brasil em nível nacional foi realizado em 1939, no Rio de Janeiro, sem o patrocínio da balançante ideia do espetáculo, mas foi feito, como os demais 10 congressos que o seguiram, com o objetivo de exercitar a liberdade de pensamento e expressão para bem do progresso da doutrina. Mas, então, o evento sofreu por muitos anos a crítica do poder estabelecido, entre estes as federativas. Em dado momento da história, as federativas, à frente a brasileira, deixaram de lado sua postura e assumiram a realização dos congressos espíritas, mas não no modelo inicial, senão como forma de controlar a opinião e ampliar o alcance massivo deles.
Tomemos as ferramentas do sistema para demonstrar com elas mesmas que a adaptação pelas federativas ao sistema se dá apenas nos limites dos seus interesses. Se a ideia da massificação do espiritismo só pode ser feita pela adoção de estímulos presentes no sistema, logo a espetacularização se mostra eficiente às finalidades, porque os diversos fragmentos sobre os quais a sociedade atual se assenta são muito bem atendidos. Ou seja, a espetacularização do saber espírita oferece meios e formas que atendem a massa diversa e fragmentada, incapaz de acorrer ao espaço do conhecimento com a oferta única do próprio conhecimento. Com isso, as federativas se veem justificadas duplamente: em oferecer o espiritismo às massas e em ter a massa presente no espaço público que abrem.
Mas do ponto de vista mercadológico, o que temos? Um eficiente modo de atrair a massa e, ao mesmo tempo – eis o de se lamentar continuamente – um desvio de finalidade disfarçado por uma ação que será elogiada insistentemente pelo público amante do espetáculo. Qual a finalidade precípua das federativas? A resposta vem pelo próprio sistema: o público alvo das federativas são os centros espíritas e a “massa” de dirigentes que os compõem. Ora, se o sistema mostra como agir em nível massivo para “vender” seu produto, o mesmo sistema faz questão de afirmar, enfaticamente, que todo esforço mercadológico de sucesso parte da clareza que se precisa ter do público alvo ao qual o produto deve ser oferecido.
Historicamente, as federativas estaduais, junto à brasileira, ignoram de modo indisfarçável seu próprio público, seja negando-lhe o direito de pensamento e expressão, seja agindo segundo a filosofia do próprio sistema, que estabelece uma interatividade dialógica na base de premissas que não coloquem em perigo o seu domínio, mas que “pareçam” um esforço sério e honesto de dar voz à sua audiência. Um outro dado histórico se mostra importante aqui: todas as federativas aceitas oficialmente, menos uma, surgiram de ações e interesses individuais e ainda mantêm, salvo exceções, a mesma estrutura baseada numa organização que confere o poder do voto a eleitores escolhidos. A única federativa que teve no seu nascedouro o voto decisivo das casas espíritas chama-se USE-SP, ela mesma que hoje mostra à sociedade que, embora sua estrutura original ainda em vigor filosoficamente, promove na prática desvios de finalidade e do seu público alvo.
Ora, a eleição da massa como objetivo no que toca aos congressos e ter a massa como destinatária do conhecimento espírita faz com que o desvio de objetivo não seja percebido, mesmo quando se entende, com clara ignorância dos instrumentos mercadológicos ou por má fé, que a massa contempla também as lideranças dos centros espíritas. Cientificamente, é impossível falar a dois públicos distintos ao mesmo tempo e o próprio André Luiz, na sua singeleza, lembra que não se pode ter os pés em duas canoas quando se lança às águas da vida. O espaço ideal da conversa com o dirigente espírita não é o do espetáculo, ao mesmo tempo em que sem diálogo não há como alcançar minimamente a massa. Ora, o que menos existe num congresso em que o espetáculo é o modo de estar junto é o diálogo, pois o que se quer dar e o que se quer receber não é a obrigação de pensar, mas o desejo de respostas produzidas e muito bem embaladas por artistas-palestrantes. E quando, por um deslize imperdoável, alguém resolve contrariar a tese e cria um momento especial de diálogo, corre-se o perigo de situações grotescas, como ocorreu recentemente em Goiânia, envolvendo a respeitável figura do grande batalhador que é Divaldo Pereira Franco. Onde não há, permita-me a paródia, potencialmente disposição para o diálogo, tudo o que se tem de fato é o monólogo, que mais não é que o modo de ver particular de alguém. Em Goiânia, o exíguo momento do diálogo foi organizado na base do “você pergunta isso, eu interpreto e dirijo a alguém e esse responde com sua autoridade inquestionável”. Um disfarce com aparências de diálogo e a crença de que a autoridade não será questionada. Apesar do sufrágio pelos aplausos intensos da massa envolta pela emoção do contexto, as coisas não saíram como planejado, pois fora do espaço do espetáculo há pessoas independentes e críticas, prontas a exercer o seu direito de opinar e expressar.
Em certos lugares do Brasil, temos congressos organizados por grupos e não federativas, mas o que se vê é o predomínio da ideia do espetáculo. Alguns desses grupos, que fugiram da espetacularização, veem seu espaço cada vez mais reduzido, em vista da redução constante da verba para sustentar as crescentes despesas. Outros, que levam a espetacularização aos limites possíveis se encontram com o caixa cada vez mais cheio, porque os eventos que promovem têm público garantido e ávido. Neste ponto, os excessos do orgulho por uma obra que ingenuamente entendem invejável leva os organizadores a cometerem absurdas formas de participação, incluindo respeitáveis pensadores do mundo moral sem a mínima aderência aos fundamentos espíritas. Não se pejam de lhes pagar polpudos cachês, pois sabem que a massa não distingue o conhecimento espírita do não espírita. De outro lado, os próprios palestrantes espíritas, ressalvadas as meritórias exceções, acostumaram-se com a garantia de que não serão sacrificados com despesas de locomoção e estadia para participar desses congressos espetáculos e massivos. Todos, de certa maneira, se veem implicados com as finalidades elegidas pelos organizadores e, não raras vezes, constrangidos pelo distinto convite que os limita a repetir discursos que são desejáveis e esperados, pois, a liberdade oferecida não é ampla o bastante para discursos críticos do sistema e dos formatos.
As federativas, de modo geral, assumiram-se como condutoras e serviçais da massa, esse contingente de pessoas que percorrem diariamente os seus salões e corredores de sua sede, atendidas com água fluidificada, preces repetidas, avisos, regras e formalidades. Seu patrimônio cresce a olhos vistos com doações recebidas de pessoas que partem da Terra ou de entidades governamentais. Chico Xavier viu-se envolvido nessas artimanhas do destino e, livremente ou por conselho dos espíritos, resolveu repassar as doações vultosas às entidades espíritas. Foi a maneira que encontrou para evitar o desvio de finalidade. As federativas vivem situação diferente, talvez movidas pelos traumas da falta de dinheiro do passado; recebem doações patrimoniais e logo se sentem na obrigação de cuidar delas, oferecendo-lhes destinação diversa daquela para a qual foram fundadas. Eis um tipo frequente de desvio de finalidade que tende a esgotar os seus parcos recursos de mão e mente de obra.
Enquanto isso…

quinta-feira, 28 de março de 2019

Produto da Educação[1]


Fé e Crença em Deus tem origem genética, de acordo com o biólogo americano Dean Hamer

Miramez



O sentimento íntimo, que temos em nós mesmos, da existência de Deus, não seria o fato da educação e o produto de ideias adquiridas?
‒ Se assim fosse, por que os vossos selvagens teriam esse sentimento? Sentimento?
Questão 6 – Livro dos Espíritos

A educação nos estimula para as coisas mais nobres da vida, sabemos disso; no entanto, ela é gradativa, de acordo com a nossa evolução espiritual.
O modo de assimilação da educação nos meios em que se estagia é diferente de uns para os outros, de acordo com os dons despertados em cada criatura.
A consciência de cada alma seleciona o que recebe, como produto do meio em que vive e dá condições à inteligência, para que esta amplie os seus valores na pauta da sua existência, e recusa o que não lhe serve, por condições que já atingiu no avanço espiritual.
Toda herança é relativa, respeitando a posição do herdeiro na vida.
Consultando as grandes vidas na Terra, a razão certificar-nos-á dessa verdade.
Os Espíritos, mesmo os chamados primitivos, quando reencarnam em um meio mais evoluído, não assimilam o produto da educação oferecida, por não terem capacidade de entendimento na altura dos seus progenitores, das escolas e livros. A assertiva de que somos o produto do meio não encontra segurança nas leis da evolução. Podemos ser ou não esse produto, dependendo da faixa em que nos situemos, com aqueles com quem convivemos. E perguntamos: onde aprenderam os primeiros mestres? Qual a escola?
O aprendizado mais atuante surge das trocas de experiências entre pessoas e nações; entretanto, o surgimento do verdadeiro aprendizado das almas vem pelos processos de despertar das qualidades que, por vezes, dormem em todos os seres.
Daí é que dizemos, como já falaram todos os profetas, que Toda sabedoria vem de Deus. Todo amor parte da sua magnânima personalidade.
A ideia de Deus, na grande população indígena que viveu na Terra e da qual ainda resta uns poucos elementos, é uma prova irrefutável de que Ele existe e que não foi produto do meio. Foi revelação dos próprios Espíritos que circundavam e protegiam esses elementos, nas sequências evolutivas em que a vida os colocou.
Muitos dos senhores de engenho que dominaram o Brasil por muito tempo, alimentavam e divulgavam a ideia de que a vida terminava no túmulo e que escravos eram animais de carga. Todavia, mesmo de posse do poder da situação e da força, não tiravam dos cativos a crença da existência de Deus e das almas, que utilizavam nos batuques, os corpos dos sensitivos, para os animarem nas suas provações. Onde fica o produto do meio e da agressão?
Quanto mais sofre o Espírito, mais despertam suas qualidades espirituais, mais a verdade o conduz para os caminhos da luz!
Certamente que não vamos parar no exercício sublime da educação e da instrução em todas as faixas de vida e da vida, porque é nessa persistência humana e divina que fazemos a nossa parte, junto à já feita por Deus.
Os sentimentos íntimos que todos temos, quanto à imortalidade da alma e à existência de nosso Pai Celestial, foi a primeira coisa divina colocada em nossos corações espirituais pelas mãos do Criador, em forma de luz que nos ilumina a vida.
Essa certeza não se vende, não se dá, ninguém tira: é nosso patrimônio, que brilha em nós com alegria e esperança, a nos falar da felicidade eterna. A meta mais inteligente é educar e instruir. Por esses meios todos os talentos desabrocham e a vida para nós passa a ser uma vida em Cristo, na presença de Deus.




[1] Filosofia Espírita – Volume 1 – João Nunes Maia

terça-feira, 26 de março de 2019

PROGRESSÃO DO GLOBO TERRESTRE[1]




(Ditado espontâneo, integrando uma série de instruções sobre a teoria dos fluidos)
(Paris, 11 de novembro de 1863)

A progressão de todas as coisas leva necessariamente à transubstanciação, e a mediunidade espiritual é uma das forças da Natureza que lá fará chegar mais rapidamente o nosso planeta, porque, como todos os mundos, deve sofrer a lei da transformação e do progresso. Não só o seu pessoal humano, mas todas as suas produções minerais, vegetais e animais, seus gases e seus fluidos imponderáveis, também devem aperfeiçoar-se e se transformar em substâncias mais depuradas. A Ciência, que já trabalhou esta questão tão interessante da formação deste mundo, reconheceu que ele não foi criado de uma palavra, como diz a Gênesis, numa sublime alegoria, mas que sofreu, numa longa sucessão de séculos, transformações que produziram camadas minerais de diversas naturezas. Seguindo a gradação dessas camadas, aparecem sucessivamente e se multiplicam as produções vegetais; mais tarde encontram-se traços dos animais, o que indica que somente nessa época os corpos organizados haviam encontrado a possibilidade de viver.
Estudando a progressão dos seres animados, como se fez com os minerais e os vegetais, reconhece-se que esses seres, a princípio moluscos, elevaram-se gradualmente na escala animal e que sua progressão acompanhou a das produções e a da depuração do solo; nota-se, ao mesmo tempo, o desaparecimento de certas espécies, desde que as condições físicas necessárias à sua vida não mais existem. Foi assim, por exemplo, que os grandes sáurios, monstros anfíbios, e os mamíferos gigantes, dos quais hoje só se encontram os fósseis, desapareceram completamente da Terra, com as condições de existência que as inundações lhes haviam criado. Sendo os dilúvios um dos meios de transformação da Terra, foram quase gerais, isto é, durante um certo período, causaram forte comoção no globo e assim determinaram produções vegetais e fluidos atmosféricos diferentes. Assim como todos os seres orgânicos, o homem apareceu na Terra quando nela pôde encontrar as condições necessárias à sua existência.
Aí para a criação material que depende apenas das forças da Natureza; aí começa o papel do Espírito encarnado no homem para o trabalho, pois deve concorrer para a obra comum; trabalhando para si mesmo, o homem trabalha para a melhora geral.
Assim, desde as primeiras raças, vemo-lo a cultivar a terra, fazê-la produzir para suas necessidades corporais e, desse modo, provocar transformações em seu solo, em seus produtos, em seus gases e em seus fluidos. Quanto mais se povoa a Terra, tanto mais os homens a trabalham, a cultivam, a saneiam, tanto mais abundantes e variados são os seus produtos; a depuração de seus fluidos pouco a pouco leva ao desaparecimento das espécies vegetais e animais venenosas e nocivas ao homem, que já não podem subsistir num ar muito depurado e muito sutil para a sua organização, e não mais lhes fornece os elementos necessários à sua manutenção. O estado sanitário do globo melhorou sensivelmente desde a sua origem; mas como ainda deixa muito a desejar, é indício de que melhorará ainda pelo trabalho e pela indústria do homem. Não é sem propósito que este é impelido a estabelecer-se nas regiões mais ingratas e mais insalubres; já tornou habitáveis regiões infestadas por animais imundos e miasmas deletérios; pouco a pouco as transformações que faz sofrer o solo levarão à depuração completa.
Pelo trabalho o homem aprende a conhecer e dirigir as forças da Natureza. Pode-se acompanhar na História o fio das descobertas e das conquistas do espírito humano e a aplicação delas feitas para as suas necessidades e satisfações. Mas seguindo essa fieira, deve-se notar também que o homem se delineou, desmaterializou-se; e se se quiser fazer um paralelo do homem de hoje com os primeiros habitantes do globo, julgar-se-á do progresso já realizado; ver-se-á que quanto mais o homem progride, mais é estimulado a progredir, e que a progressão está na razão do progresso realizado. Hoje o progresso marcha em grande velocidade, arrastando forçosamente os retardatários.
Acabamos de falar do progresso físico, material, inteligente. Mas vejamos o progresso moral e a influência que deve ter sobre o primeiro.
O progresso moral despertou ao mesmo tempo em que o desenvolvimento material, mas foi mais lento, porque, achando-se o homem em meio a uma criação exclusivamente material, tinha necessidades e aspirações em harmonia com o que o cercava.
Avançando, sentiu o espiritual desenvolver-se e crescer em si, e, ajudado pelas influências celestes, começou a compreender a necessidade da direção inteligente do Espírito sobre a matéria; o progresso moral continuou o seu desenvolvimento e, em diferentes épocas, Espíritos adiantados vieram guiar a Humanidade e dar um maior impulso à sua marcha ascendente; tais são Moisés, os profetas, Confúcio, os sábios da antiguidade e o Cristo, o maior de todos, embora o mais humilde na Terra. O Cristo deu ao homem uma ideia maior de seu próprio valor, de sua independência e de sua personalidade espiritual. Mas sendo os seus sucessores muito inferiores a ele, não compreenderam a ideia grandiosa, que brilha em todos os seus ensinos; materializaram o que era espiritual; daí a espécie de status quo moral, no qual a Humanidade se deteve.
O progresso científico e inteligente continua a sua marcha; o progresso moral se arrasta lentamente. Não é certo que, desde o Cristo, se todos os que professaram sua doutrina a tivessem praticado, os homens se teriam poupado de muitos males e hoje estariam moralmente mais adiantados?
O Espiritismo vem acelerar o progresso, desvendando à Humanidade os seus destinos; e já vemos a sua força pelo número de adeptos e a facilidade com que é compreendido. Vai provocar uma transformação moral ativa e, pela multiplicidade das comunicações mediúnicas, o coração e o Espírito de todos os encarnados serão trabalhados pelos Espíritos amigos e instrutores.
Dessa instrução vai surgir um novo impulso científico, porquanto novas vias serão abertas à Ciência, que dirigirá suas pesquisas para as novas forças da Natureza, que se revelam; as faculdades humanas que já se desenvolvem, desenvolver-se-ão ainda mais pelo trabalho mediúnico.
Acolhido inicialmente pelas almas ternas e inconsoláveis pela perda de parentes e amigos, o Espiritismo o foi em seguida pelos infelizes deste mundo, cujo número é grande, e que têm sido encorajados e sustentados em suas provações por sua doutrina, ao mesmo tempo tão suave e confortadora; propagou-se, assim, rapidamente, e muitos incrédulos admirados, que a princípio o estudaram como curiosos, foram convencidos quando, por si mesmos, nele encontraram esperanças e consolações.
Hoje os sábios começam a inquietar-se e alguns deles o estudam seriamente e o admitem como força natural até agora desconhecida; aplicando a ele sua inteligência e seus conhecimentos já adquiridos, farão a Humanidade dar um imenso passo científico.
Mas os Espíritos não se limitam à instrução científica; seu dever é duplo e eles devem, sobretudo, cultivar a vossa moral.
Ao lado dos estudos da Ciência, eles vos farão, e já fazem desde agora, trabalhar o vosso próprio eu. Os encarnados inteligentes e desejosos de progredir compreenderão que sua desmaterialização é a melhor condição para o estudo progressivo, e que sua felicidade presente e futura a isto está ligada.
Observação – É assim que o mundo, depois de haver alcançado um certo grau de elevação no progresso intelectual, vai entrar no período do progresso moral, cuja rota o Espiritismo lhe abre. Esse progresso realizar-se-á pela força das coisas e levará naturalmente à transformação da Humanidade, pelo alargamento do círculo das ideias no seu sentido espiritual, e pela prática inteligente e raciocinada das leis morais, ensinadas pelo Cristo. A rapidez com que as ideias espíritas se propagam no próprio meio do materialismo, que domina a nossa época, é indício certo de uma pronta mudança na ordem das coisas. Basta para isto a extinção de uma geração, pois a que se ergue já se anuncia sob auspícios completamente diferentes.




[1] Revista Espírita – Abril/1864 – Allan Kardec

segunda-feira, 25 de março de 2019

Lamartine Palhano Júnior[1]




Dedicado pesquisador da fenomenologia espírita, Lamartine Palhano Júnior nasceu na cidade de Coronel Fabrício (MG), em 15 de dezembro de 1946. Criança ainda, seus genitores transferiram residência para Vitória.
Casou-se com Dona Rosane Lima Palhano e tiveram dois filhos: João Marcelo e Clarice. Graduou-se em Farmácia e realizou seu mestrado na área de bacteriologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutorando-se em ciências, desenvolvendo ainda intensa atividade acadêmica.
Lecionou microbiologia na Universidade do Estado do Espírito Santo e patologia na Universidade Federal do Espírito Santo. Contribuiu deforma marcante com o Movimento Espírita em várias áreas: pesquisas científicas no campo mediúnico, publicação de livros, realização de palestras e cursos diversos. Fundou a FESPE (Fundação Espírita Santense de Pesquisa Espírita) e logo depois o CIPES (Círculo de Pesquisa Espírita de Vitória). Participou de alguns seminários do Instituto de Cultura Espírita do Brasil (ICEB), no Rio de Janeiro e deu grande contribuição à Casa Espírita Cristã de Vila Velha (ES).
De sua extensa bibliografia constam: livros infantis, infanto-juvenis, de estudos bíblicos, biográficos (Mirabelli – um médico extraordinário, Dossiê Peixotinho e outros), dicionários (Léxico kardequiano e Dicionário de filosofia espírita) científicos (Experimentação mediúnica e outros), romances. 
Palhano desencarnou aos 54 anos de idade, no ano 2000, deixando extensa e valiosa contribuição para a pesquisa espírita.
Obras de temática científica: Laudos espíritas da loucura, Transe e mediunidade, Passe-magnetismo curador, O livro da prece, Obsessão – assédio por espíritos, Evocando os espíritos, O significado oculto dos sonhos, Reuniões mediúnicas: teoria e prática, Viagens psíquicas no tempo,  Imortalidade dos poetas mortos, A verdade de Nostradamus, A mediunidade nos centros espíritas.
Obras de temática religiosa: Espiritismo, religião natural, Teologia espírita, A carta de Tiago, Aos efésios, Aos gálatas, a carta de redenção, Maria de Nazaré na voz dos poetas.
Obras de temática infanto-juvenil: A estrela de Belém, Jesus aos doze anos, João Batista, o profeta do Cristo, O pastorzinho de Belém, O pequeno espírita, O reino dos céus para os humildes e pequeninos, Rosma, o fantasma de Hydesville, O velho Simeão, Os sonhos de Aurélio, Presépio,  Uma páscoa diferente.
Biografias de vultos célebres do espiritismo: Meninas do barulho (Irmãs Fox), Dimensões da mediunidade (Elisabeth d’Espérance), Dossiê Fenelon Barbosa, Dossiê Jeronymo Ribeiro, Dossiê Peixotinho, Eusapia, a feiticeira (Eusapia Palladino), Experimentações mediúnicas (William Crookes), Mirabelli, um médium extraordinário (Carmine Mirabelli), Diário de um espírita (autobiografia).
Dicionários: Dicionário de filosofia espírita, Léxico kardequiano.
Romance: As chaves do reino: seguindo os passos de Anchieta.

Desencarnou em Vitória (ES), no dia 14 de novembro de 2000.

sábado, 23 de março de 2019

MORTE E DESLIGAMENTO DO CORPO FÍSICO[1]



Richard Simonetti


Morte física e desencarne não ocorrem simultaneamente. A morte física se dá com a morte cerebral. O Espírito desencarna quando se completa o desligamento, o que demanda algumas horas ou alguns dias.
Basicamente o Espírito permanece ligado ao corpo enquanto são muito fortes nele as impressões da existência física.
Indivíduos materialistas, que fazem da jornada humana um fim em si, que não cogitam de objetivos superiores, que cultivam vícios e paixões, ficam retidos por mais tempo, até que a impregnação fluídica animalizada de que se revestem seja reduzida a níveis compatíveis com o desligamento.
Certamente os benfeitores espirituais podem fazê-lo de imediato, tão logo se dê o colapso do corpo. No entanto, não é aconselhável, porquanto o desencarnante teria dificuldades maiores para ajustar-se às realidades espirituais. O que aparentemente sugere um castigo para o indivíduo que não viveu existência condizente com os princípios da moral e da virtude, é apenas manifestação de misericórdia. Não obstante o constrangimento e as sensações desagradáveis que venha a enfrentar, na contemplação de seus despojes carnais em decomposição, tal circunstância é menos traumatizante do que o desligamento extemporâneo.
Há, a respeito da morte, concepções totalmente distanciadas da realidade. Quando alguém morre fulminado por um enfarte violento, costuma-se dizer:
“Que morte maravilhosa! Não sofreu nada!”
No entanto, é uma morte indesejável.
Falecendo em plena vitalidade, salvo se altamente espiritualizado, ele terá problemas de desligamento e adaptação, pois serão muito fortes nele as impressões e interesses relacionados com a existência física.
Se a causa da morte é o câncer, após prolongados sofrimentos, em dores atrozes, com o paciente definhando lentamente, decompondo-se em vida, fala-se:
“Que morte horrível! Quanto sofrimento!”
Paradoxalmente, é uma boa morte.
Doença prolongada é tratamento de beleza para o Espírito. As dores físicas atuam como inestimável recurso terapêutico, ajudando-o a superar as ilusões do Mundo, além de depurá-lo como válvulas de escoamento das impurezas morais. Destaque-se que o progressivo agravamento de sua condição torna o doente mais receptivo aos apelos da religião, aos benefícios da prece, às meditações sobre o destino humano. Por isso, quando a morte chega, ele está preparado e até a espera, sem apegos, sem temores.
Algo semelhante ocorre com as pessoas que desencarnam em idade avançada, cumpridos os prazos concedidos pela Providência Divina, e que mantiveram um comportamento disciplinado e virtuoso. Nelas a vida física extingue-se mansamente, como uma vela que bruxuleia e apaga, inteiramente gasta, proporcionando-lhes um retomo tranquilo, sem maiores percalços.

Livro: Quem tem medo da Morte

sexta-feira, 22 de março de 2019

Anotações sobre a concepção espírita dos sonhos[1]


"O sonho" (Pierre-Cécile Puvis de Chavannes, 1883)[2]

Ademir Xavier 

"A lembrança que conserva, ao despertar, daquilo que viu em outros lugares e em outros mundos ou em existências passadas, constitui o sonho propriamente dito".
A. Kardec[3]

"Um dia será oficialmente admitido que aquilo que chamamos realidade é uma ilusão ainda maior do que o mundo dos sonhos".
Salvador Dali

Uma parte importante da existência humana é passada dormindo. Em aproximadamente um terço de nossa existência como encarnados dormimos[4]. O que acontece nesse estado? Embora seja fácil entender a necessidade do sono ‒ tão natural que nem questionamos sua importância ‒ algo mais difícil é caracterizar e entender os sonhos. O que a compreensão da natureza dual do ser humano, permitida pela Revelação Espírita, revela sobre nosso entendimento dos sonhos?
A experiência onírica é bastante diversa das percepções ordinárias da vigília. Essas últimas admitem "testemunhas" pelas quais as pessoas compartilham experiências publicamente. Se viajo com minha família para um lugar turístico, as experiências que eu tenho são as mesmas que meus parentes também têm. Mas, nos sonhos, isso não se aplica. Toda a experiência dos sonhos é, em princípio, privada, ou seja, vivida apenas em "primeira pessoa", apenas por mim. Se sonho que estou com minha família fazendo turismo, provavelmente ao questionar meus parentes, eles não confirmarão a mesma experiência. Essa característica marcante é o que faz com que sonhos sejam, em sua grande maioria, tomados como experiências geradas exclusivamente pela mente de quem sonha.
Outra característica marcante dos sonhos (eu mesmo já experimentei isso) é a aparente ausência de conexões causais dentro de um sonho. O que acontece em um determinado momento ‒ mesmo tendo como causa aparente algo anterior durante o sonho ‒ não se apresenta exatamente assim em um momento depois. Um exemplo: lembro-me de um sonho em que estacionei um carro em determinado local. Depois de outros fatos no sonho, quando retornei para pegar o carro, ele não estava mais lá ou, ao menos, não me lembrava de onde tinha deixado o carro... Por outro lado, também me lembro de sonhos em que recordei, no próprio sonho, ter estado em lugares (de sonhos) anteriores. Nesse caso, eu apenas continuava uma aventura ocorrida algumas noites antes e tive, no sonho, consciência disso: tratava-se de um "sonho lúcido".

O sonho como uma síntese mnemônica recriada das vivências da alma durante o sono
Como sintetizou Kardec, o sonho não se reduz ao estado da vida da alma livre do corpo. Se assim fosse, embora uma experiência privada, ele deveria ter coerência. O sonho é uma síntese mnemônica (a "lembrança que conserva") do que ocorreu durante o sono. Essa síntese, recriação ou montagem é bastante afetada por memórias ou lembranças já existentes, daquilo que interessa à mente nas experiências durante o sono (ou seja, ao Espírito), ou do que fica impregnado como lembrança para ela no momento do despertar. Na formação dessa síntese (através de mecanismos ainda desconhecidos), quase tudo que é relevante ao indivíduo dá sua contribuição: os desejos, temores, experiências reinterpretadas da véspera, lembranças dessa e de vidas anteriores e, inclusive, vivências que o Espírito livre teve, ou seja, as próprias lembranças de sonhos anteriores.
Para mim, a imensa maioria das pessoas (nas quais me incluo) não é capaz de reter perfeitamente, pelo prisma do cérebro, lembranças que vieram pelos sentidos da alma durante o sonho. Assim, o que acontece é que a lembrança dos sonhos é recriada em termos de um "banco de memórias" adquirido dessas vivências anteriores. É como querer criar um filme novo usando sequência de cenas de filmes velhos ou já editados. Assim, nesse processo de "reedição", o banco de memórias é usado como uma sequência de símbolos, cenas ou poses que tentam "sintetizar uma lembrança" da vivência real. É por isso que, ao acordar, muitas vezes, a sequência que surge é errática e não parece fazer sentido racional.
Por exemplo: imagine que eu, em Espírito, tenha estado em contato com outras pessoas, durante o sono. Quando acordar, provavelmente, o processo de lembrança preencherá as personalidades com quem tive contato com figuras ou pessoas que eu conheço de fato: às vezes, um amigo que sei depois estava acordado, uma pessoa com quem tive amizade há muito tempo etc. É possível até mesmo que o sonho seja preenchido com uma imagem de um parente desencarnado. E, assim, em geral acordamos pensando que estivemos com "fulano" já morto, mas na verdade era outro... Trata-se assim de uma recriação. De forma alguma minha lembrança reproduz fielmente o que passei em Espírito, apenas o 'script' é mais ou menos parecido. Essa montagem mnemônica é necessária para dar sentido durante a vigília para a experiência vivida no sonho. É assim porque as experiências durante o sono atingem a alma não pelas vias comuns dos sentidos materiais. Logo, ao impregnarem o cérebro no acordar são reinterpretadas.
Quer dizer então que não eram eles os que estavam naquele sonho que tive com minha mãe, pai ou parente falecido?  Não necessariamente. Situação algo diversa ocorre nos já citados sonhos lúcidos, que são uma categoria de sonhos mais raros e bem peculiares. Neles o indivíduo que sonha sabe que está sonhando, ou que está tendo a experiência. Nos sonhos que tive com minha mãe já desencarnada, tive a nítida impressão que ela veio me visitar e, coisa estranha, o sonho se passou no leito onde eu repousava e quase sempre terminava com o meu acordar em lágrimas. Esses tipos de sonho diferem intensamente da imensa maioria que tenho, formado por imagens banais, às vezes sequências que pouco ou nenhum sentido fazem. Sei que os primeiros são sonhos especiais porque são cheios de significações e muito diferentes dos últimos.
Essa ideia dos sonhos como um processo de recriação da experiência da alma durante o sono por meio de imagens preexistentes permite explicar os chamados "sonhos premonitórios". De fato, esses podem ser recriados com imagens anteriores, mas tratam de eventos futuros com base em experiências da alma no Além a respeito desses fatos. Tentar interpretá-los é uma experiência frustrante, pois eles só fazem sentido para quem teve o sonho e que mantem, inconscientemente, seu real significado. Além disso, quem sonha premonições pode não ser competente em transmitir seu significado a tempo, uma fonte de inúmeras confusões.
Em suma podemos dividir em vários níveis as impressões dos sonhos e como eles se manifestam:
O sentido profundo, que só existe para alma, muitas vezes de forma inconsciente. Esse sentido pode ser recapitulado em outros sonhos ou invocado em sonhos lúcidos. Certamente sobrevive à morte física,
O sentido fragmentado, que é recriado com imagens ou memórias preexistentes, é o sonho "materializado" para o Espírito na vigília, talvez acabe esquecido com a morte física,
O sentido transmitido para os outros, ou como descrevemos para os outros, durante a vigília, as nossas experiências oníricas. Elas podem causar, nos outros, impressão muito diferente do original, o que torna difícil sua "interpretação", embora em alguns "sonhos anômalos" ela pode ser bem clara.

A importância dos "sonhos anômalos"
A grande parte do impasse teórico das concepções mais populares para explicar a mente se deve porque elas se referem apenas ao que passa com a imensa maioria. Entendo a razão disso de um ponto de vista prático. Estatisticamente, parece fazer sentido se dedicar ao que acontece na maior parte das vezes. Porém, com isso, sacrificamos a compreensão das causas mais profundas em detrimento do que é mais frequente. Assim, as anomalias que ocorrem com alguns poucos são varridas para "debaixo do tapete" por meio de explicações aparentemente aplicáveis apenas ao que é geral. Mas, será que a explicação mais verdadeira é aquela que serve para a maioria ou a que não deixa nenhum fato de lado? Na medicina, não se aprende nada sobre doenças estudando apenas os sãos. Portanto, é preciso estudar o anômalo, pois só ele permite estabelecer novas correlações, e explicar a exceção além da regra.
Isso é justamente o que acontece nos chamados sonhos anômalos. Seriam eles sonhos comuns, não fosse o fato de que se aproximarem dos sonhos lúcidos e trazerem mensagens que contêm "conteúdo anômalo", além de bastante significativos. Um trabalho interessante é o de S. Krippner e L. Faith, intitulado "Sonhos exóticos: um estudo intercultural"[5]. Nesse trabalho, os autores conseguiram separar (de um conjunto com quase 1700 relatos de sonhos), aproximadamente 185 (ou 8%) considerados "exóticos". Os sonhos receberam uma classificação conforme o tipo: sonhos de curas, sonhos lúcidos, sonhos criativos, sonhos com experiências fora do corpo, sonhos compartilhados, sonhos dentro de sonhos (como eu tive), sonhos com vidas passadas, sonhos de visitas etc.
Interessante, por exemplo, são os chamados "sonhos compartilhados". São relatos de pessoas que têm sonhos mútuos, ou seja, os sonhos são posteriormente descritos como coincidentes para mais de uma pessoa, o que revela um enfraquecimento do caráter "primeira pessoa" do sonho[6].
Nos sonhos criativos, Krippner e Faith registraram casos em que pessoas foram auxiliadas em sonho na solução de problemas da vida da vigília.
Em um sonho precognitivo, um indivíduo sonhou antecipadamente com a pessoa com quem iria se casar mais tarde.
Em um sonho de visitação, uma pintora do Japão relatou ter sido aconselhada por seu pai, falecido na Segunda Guerra mundial, a escolher certos tipos de pintura e até sobre como usar o pincel. A experiência foi bastante significativa para ela, que melhorou seu desempenho profissional.
Os autores também descobriram que nem sempre sonhos sobre tragédias terminam de forma fatal, mas se manifestam antes como anúncios de doenças ou de situação vulnerável de pessoas à distância.
Finalmente, os autores em parecem ter descoberto uma correlação entre a incidência de sonhos anômalos e o tipo de cultura em que ocorrem. De fato, essa correlação faz sentido, considerando que os sonhos são interpretados em termos de uma bagagem mental prévia. Assim, quanto maior for o discernimento que o indivíduo tem a respeito das realidades do espírito, tanto mais claros espiritualmente serão os registros deixados nos sonhos, cuja manifestação se dá como sonhos exóticos ou peculiares.
É possível ainda que a maioria das pessoas já tenha experimentado ‒ ao menos uma vez na vida ‒ esse tipo de sonho.

Conclusões
Nessa pequena anotação, elencamos alguns aspectos que parecem relevantes para entender a gênese e o processo dos sonhos.
A compreensão do mecanismo dos sonhos deve tanto explicar a dinâmica dos sonhos com a imensa maioria das pessoas, como também aquelas experiências bastante peculiares, que ocorrem com grupos específicos, e que podem também se manifestar ao menos uma vez na existência dessa maioria.
Não é possível entender os sonhos sem a compreensão da natureza dual do ser humano, que explica os sonhos peculiares como um semi-desdobramento da alma. Aquilo que chamamos de sonhos são, na verdade, lembranças de ocorrências durante o sono, na sua maioria remontadas a partir de lembranças ou memórias já vividas. Essa explicação está de acordo com a ideia de que, no estado do sonho, o Espírito não pode sensibilizar diretamente o corpo (leia-se o cérebro), porque está dele afastado. No processo de "remontagem" da lembrança, tanto experiências da vida presente (fatos corriqueiros, pessoas etc.) são usados, como também lembranças não ordinárias (p. ex., de vidas anteriores, de outros sonhos etc.).
O caráter aleatório, estranho ou sem sentido da maioria dos sonhos é consequência dessa remontagem a partir de um banco de fragmentos de lembranças. De forma geral, o sentido dos sonhos só existe para a pessoa que o tem. É muito difícil interpretar corretamente os sonhos, embora isso possa acontecer excepcionalmente.
O entendimento de que sonhos são lembranças da vida do Espírito permite explicar uma grande variedades de relatos de sonhos considerados "anômalos", que são importantes fontes reveladoras do mecanismo dos sonhos. Sem atenção a esses relatos anômalos, a explicação dos sonhos fica reduzida a meras "alucinações" ou "fantasias" do cérebro, sem correlação com a verdadeira realidade que os explica.
Em particular, além da divisão entre "sonhos ordinários" e "peculiares", para a maioria das pessoas, os sonhos ainda se distinguem entre "comuns" e "lúcidos". Nos sonhos lúcidos, o indivíduo que sonha sabe que sonha e por isso, teoricamente pode "controlar" o que sonha. Aparentemente, esse controle estaria sujeito a treinamento[7].
Parece evidente que o sonhar é fase importante do desenvolvimento ou progresso da alma encarnada, quando ela exercita, por repetição, sua libertação do corpo físico e rememora sua vida desencarnada. Em certo sentido, sonhar é um treino para a libertação final da morte.


[2] Fonte: Wikipédia.
[3] A. Kardec. "Instruções Práticas sobre as Manifestações Espíritas". Vocabulário Espírita. Sonho.
[4] O que também é verdade com os animais. Essa observação se baseia na constatação de certos padrões de ondas cerebrais em mamíferos, o que seriam indícios de sonhos em semelhança com os humanos. Sobre a questão do sonho nos animais ver: Pearlman, C. A. (1979). REM sleep and information processing: evidence from animal studies. Neuroscience & Biobehavioral Reviews, 3(2), 57-68.
[5] Krippner, S., & Faith, L. (2001). "Exotic dreams: A cross-cultural study". Dreaming, 11(2), 73-82.
[6] Outro trabalho relacionado a sonhos compartilhados é Davis, W. J., & Frank, M. (1994). "Dream sharing: A case study". The Journal of psychology, 128(2), 133-147.
[7] Ver, p. ex.: May E. C & LaBerge S. (1991) "Anomalous Cognition in Lucid Dreams". Science Applications International Corporation. Interessantemente, uma página da CIA (Agência de Inteligência Americana) hospeda esse documento. Em Março de 2019, pode ser encontrada aqui: