sexta-feira, 22 de março de 2019

Anotações sobre a concepção espírita dos sonhos[1]


"O sonho" (Pierre-Cécile Puvis de Chavannes, 1883)[2]

Ademir Xavier 

"A lembrança que conserva, ao despertar, daquilo que viu em outros lugares e em outros mundos ou em existências passadas, constitui o sonho propriamente dito".
A. Kardec[3]

"Um dia será oficialmente admitido que aquilo que chamamos realidade é uma ilusão ainda maior do que o mundo dos sonhos".
Salvador Dali

Uma parte importante da existência humana é passada dormindo. Em aproximadamente um terço de nossa existência como encarnados dormimos[4]. O que acontece nesse estado? Embora seja fácil entender a necessidade do sono ‒ tão natural que nem questionamos sua importância ‒ algo mais difícil é caracterizar e entender os sonhos. O que a compreensão da natureza dual do ser humano, permitida pela Revelação Espírita, revela sobre nosso entendimento dos sonhos?
A experiência onírica é bastante diversa das percepções ordinárias da vigília. Essas últimas admitem "testemunhas" pelas quais as pessoas compartilham experiências publicamente. Se viajo com minha família para um lugar turístico, as experiências que eu tenho são as mesmas que meus parentes também têm. Mas, nos sonhos, isso não se aplica. Toda a experiência dos sonhos é, em princípio, privada, ou seja, vivida apenas em "primeira pessoa", apenas por mim. Se sonho que estou com minha família fazendo turismo, provavelmente ao questionar meus parentes, eles não confirmarão a mesma experiência. Essa característica marcante é o que faz com que sonhos sejam, em sua grande maioria, tomados como experiências geradas exclusivamente pela mente de quem sonha.
Outra característica marcante dos sonhos (eu mesmo já experimentei isso) é a aparente ausência de conexões causais dentro de um sonho. O que acontece em um determinado momento ‒ mesmo tendo como causa aparente algo anterior durante o sonho ‒ não se apresenta exatamente assim em um momento depois. Um exemplo: lembro-me de um sonho em que estacionei um carro em determinado local. Depois de outros fatos no sonho, quando retornei para pegar o carro, ele não estava mais lá ou, ao menos, não me lembrava de onde tinha deixado o carro... Por outro lado, também me lembro de sonhos em que recordei, no próprio sonho, ter estado em lugares (de sonhos) anteriores. Nesse caso, eu apenas continuava uma aventura ocorrida algumas noites antes e tive, no sonho, consciência disso: tratava-se de um "sonho lúcido".

O sonho como uma síntese mnemônica recriada das vivências da alma durante o sono
Como sintetizou Kardec, o sonho não se reduz ao estado da vida da alma livre do corpo. Se assim fosse, embora uma experiência privada, ele deveria ter coerência. O sonho é uma síntese mnemônica (a "lembrança que conserva") do que ocorreu durante o sono. Essa síntese, recriação ou montagem é bastante afetada por memórias ou lembranças já existentes, daquilo que interessa à mente nas experiências durante o sono (ou seja, ao Espírito), ou do que fica impregnado como lembrança para ela no momento do despertar. Na formação dessa síntese (através de mecanismos ainda desconhecidos), quase tudo que é relevante ao indivíduo dá sua contribuição: os desejos, temores, experiências reinterpretadas da véspera, lembranças dessa e de vidas anteriores e, inclusive, vivências que o Espírito livre teve, ou seja, as próprias lembranças de sonhos anteriores.
Para mim, a imensa maioria das pessoas (nas quais me incluo) não é capaz de reter perfeitamente, pelo prisma do cérebro, lembranças que vieram pelos sentidos da alma durante o sonho. Assim, o que acontece é que a lembrança dos sonhos é recriada em termos de um "banco de memórias" adquirido dessas vivências anteriores. É como querer criar um filme novo usando sequência de cenas de filmes velhos ou já editados. Assim, nesse processo de "reedição", o banco de memórias é usado como uma sequência de símbolos, cenas ou poses que tentam "sintetizar uma lembrança" da vivência real. É por isso que, ao acordar, muitas vezes, a sequência que surge é errática e não parece fazer sentido racional.
Por exemplo: imagine que eu, em Espírito, tenha estado em contato com outras pessoas, durante o sono. Quando acordar, provavelmente, o processo de lembrança preencherá as personalidades com quem tive contato com figuras ou pessoas que eu conheço de fato: às vezes, um amigo que sei depois estava acordado, uma pessoa com quem tive amizade há muito tempo etc. É possível até mesmo que o sonho seja preenchido com uma imagem de um parente desencarnado. E, assim, em geral acordamos pensando que estivemos com "fulano" já morto, mas na verdade era outro... Trata-se assim de uma recriação. De forma alguma minha lembrança reproduz fielmente o que passei em Espírito, apenas o 'script' é mais ou menos parecido. Essa montagem mnemônica é necessária para dar sentido durante a vigília para a experiência vivida no sonho. É assim porque as experiências durante o sono atingem a alma não pelas vias comuns dos sentidos materiais. Logo, ao impregnarem o cérebro no acordar são reinterpretadas.
Quer dizer então que não eram eles os que estavam naquele sonho que tive com minha mãe, pai ou parente falecido?  Não necessariamente. Situação algo diversa ocorre nos já citados sonhos lúcidos, que são uma categoria de sonhos mais raros e bem peculiares. Neles o indivíduo que sonha sabe que está sonhando, ou que está tendo a experiência. Nos sonhos que tive com minha mãe já desencarnada, tive a nítida impressão que ela veio me visitar e, coisa estranha, o sonho se passou no leito onde eu repousava e quase sempre terminava com o meu acordar em lágrimas. Esses tipos de sonho diferem intensamente da imensa maioria que tenho, formado por imagens banais, às vezes sequências que pouco ou nenhum sentido fazem. Sei que os primeiros são sonhos especiais porque são cheios de significações e muito diferentes dos últimos.
Essa ideia dos sonhos como um processo de recriação da experiência da alma durante o sono por meio de imagens preexistentes permite explicar os chamados "sonhos premonitórios". De fato, esses podem ser recriados com imagens anteriores, mas tratam de eventos futuros com base em experiências da alma no Além a respeito desses fatos. Tentar interpretá-los é uma experiência frustrante, pois eles só fazem sentido para quem teve o sonho e que mantem, inconscientemente, seu real significado. Além disso, quem sonha premonições pode não ser competente em transmitir seu significado a tempo, uma fonte de inúmeras confusões.
Em suma podemos dividir em vários níveis as impressões dos sonhos e como eles se manifestam:
O sentido profundo, que só existe para alma, muitas vezes de forma inconsciente. Esse sentido pode ser recapitulado em outros sonhos ou invocado em sonhos lúcidos. Certamente sobrevive à morte física,
O sentido fragmentado, que é recriado com imagens ou memórias preexistentes, é o sonho "materializado" para o Espírito na vigília, talvez acabe esquecido com a morte física,
O sentido transmitido para os outros, ou como descrevemos para os outros, durante a vigília, as nossas experiências oníricas. Elas podem causar, nos outros, impressão muito diferente do original, o que torna difícil sua "interpretação", embora em alguns "sonhos anômalos" ela pode ser bem clara.

A importância dos "sonhos anômalos"
A grande parte do impasse teórico das concepções mais populares para explicar a mente se deve porque elas se referem apenas ao que passa com a imensa maioria. Entendo a razão disso de um ponto de vista prático. Estatisticamente, parece fazer sentido se dedicar ao que acontece na maior parte das vezes. Porém, com isso, sacrificamos a compreensão das causas mais profundas em detrimento do que é mais frequente. Assim, as anomalias que ocorrem com alguns poucos são varridas para "debaixo do tapete" por meio de explicações aparentemente aplicáveis apenas ao que é geral. Mas, será que a explicação mais verdadeira é aquela que serve para a maioria ou a que não deixa nenhum fato de lado? Na medicina, não se aprende nada sobre doenças estudando apenas os sãos. Portanto, é preciso estudar o anômalo, pois só ele permite estabelecer novas correlações, e explicar a exceção além da regra.
Isso é justamente o que acontece nos chamados sonhos anômalos. Seriam eles sonhos comuns, não fosse o fato de que se aproximarem dos sonhos lúcidos e trazerem mensagens que contêm "conteúdo anômalo", além de bastante significativos. Um trabalho interessante é o de S. Krippner e L. Faith, intitulado "Sonhos exóticos: um estudo intercultural"[5]. Nesse trabalho, os autores conseguiram separar (de um conjunto com quase 1700 relatos de sonhos), aproximadamente 185 (ou 8%) considerados "exóticos". Os sonhos receberam uma classificação conforme o tipo: sonhos de curas, sonhos lúcidos, sonhos criativos, sonhos com experiências fora do corpo, sonhos compartilhados, sonhos dentro de sonhos (como eu tive), sonhos com vidas passadas, sonhos de visitas etc.
Interessante, por exemplo, são os chamados "sonhos compartilhados". São relatos de pessoas que têm sonhos mútuos, ou seja, os sonhos são posteriormente descritos como coincidentes para mais de uma pessoa, o que revela um enfraquecimento do caráter "primeira pessoa" do sonho[6].
Nos sonhos criativos, Krippner e Faith registraram casos em que pessoas foram auxiliadas em sonho na solução de problemas da vida da vigília.
Em um sonho precognitivo, um indivíduo sonhou antecipadamente com a pessoa com quem iria se casar mais tarde.
Em um sonho de visitação, uma pintora do Japão relatou ter sido aconselhada por seu pai, falecido na Segunda Guerra mundial, a escolher certos tipos de pintura e até sobre como usar o pincel. A experiência foi bastante significativa para ela, que melhorou seu desempenho profissional.
Os autores também descobriram que nem sempre sonhos sobre tragédias terminam de forma fatal, mas se manifestam antes como anúncios de doenças ou de situação vulnerável de pessoas à distância.
Finalmente, os autores em parecem ter descoberto uma correlação entre a incidência de sonhos anômalos e o tipo de cultura em que ocorrem. De fato, essa correlação faz sentido, considerando que os sonhos são interpretados em termos de uma bagagem mental prévia. Assim, quanto maior for o discernimento que o indivíduo tem a respeito das realidades do espírito, tanto mais claros espiritualmente serão os registros deixados nos sonhos, cuja manifestação se dá como sonhos exóticos ou peculiares.
É possível ainda que a maioria das pessoas já tenha experimentado ‒ ao menos uma vez na vida ‒ esse tipo de sonho.

Conclusões
Nessa pequena anotação, elencamos alguns aspectos que parecem relevantes para entender a gênese e o processo dos sonhos.
A compreensão do mecanismo dos sonhos deve tanto explicar a dinâmica dos sonhos com a imensa maioria das pessoas, como também aquelas experiências bastante peculiares, que ocorrem com grupos específicos, e que podem também se manifestar ao menos uma vez na existência dessa maioria.
Não é possível entender os sonhos sem a compreensão da natureza dual do ser humano, que explica os sonhos peculiares como um semi-desdobramento da alma. Aquilo que chamamos de sonhos são, na verdade, lembranças de ocorrências durante o sono, na sua maioria remontadas a partir de lembranças ou memórias já vividas. Essa explicação está de acordo com a ideia de que, no estado do sonho, o Espírito não pode sensibilizar diretamente o corpo (leia-se o cérebro), porque está dele afastado. No processo de "remontagem" da lembrança, tanto experiências da vida presente (fatos corriqueiros, pessoas etc.) são usados, como também lembranças não ordinárias (p. ex., de vidas anteriores, de outros sonhos etc.).
O caráter aleatório, estranho ou sem sentido da maioria dos sonhos é consequência dessa remontagem a partir de um banco de fragmentos de lembranças. De forma geral, o sentido dos sonhos só existe para a pessoa que o tem. É muito difícil interpretar corretamente os sonhos, embora isso possa acontecer excepcionalmente.
O entendimento de que sonhos são lembranças da vida do Espírito permite explicar uma grande variedades de relatos de sonhos considerados "anômalos", que são importantes fontes reveladoras do mecanismo dos sonhos. Sem atenção a esses relatos anômalos, a explicação dos sonhos fica reduzida a meras "alucinações" ou "fantasias" do cérebro, sem correlação com a verdadeira realidade que os explica.
Em particular, além da divisão entre "sonhos ordinários" e "peculiares", para a maioria das pessoas, os sonhos ainda se distinguem entre "comuns" e "lúcidos". Nos sonhos lúcidos, o indivíduo que sonha sabe que sonha e por isso, teoricamente pode "controlar" o que sonha. Aparentemente, esse controle estaria sujeito a treinamento[7].
Parece evidente que o sonhar é fase importante do desenvolvimento ou progresso da alma encarnada, quando ela exercita, por repetição, sua libertação do corpo físico e rememora sua vida desencarnada. Em certo sentido, sonhar é um treino para a libertação final da morte.


[2] Fonte: Wikipédia.
[3] A. Kardec. "Instruções Práticas sobre as Manifestações Espíritas". Vocabulário Espírita. Sonho.
[4] O que também é verdade com os animais. Essa observação se baseia na constatação de certos padrões de ondas cerebrais em mamíferos, o que seriam indícios de sonhos em semelhança com os humanos. Sobre a questão do sonho nos animais ver: Pearlman, C. A. (1979). REM sleep and information processing: evidence from animal studies. Neuroscience & Biobehavioral Reviews, 3(2), 57-68.
[5] Krippner, S., & Faith, L. (2001). "Exotic dreams: A cross-cultural study". Dreaming, 11(2), 73-82.
[6] Outro trabalho relacionado a sonhos compartilhados é Davis, W. J., & Frank, M. (1994). "Dream sharing: A case study". The Journal of psychology, 128(2), 133-147.
[7] Ver, p. ex.: May E. C & LaBerge S. (1991) "Anomalous Cognition in Lucid Dreams". Science Applications International Corporation. Interessantemente, uma página da CIA (Agência de Inteligência Americana) hospeda esse documento. Em Março de 2019, pode ser encontrada aqui:

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