"O sonho"
(Pierre-Cécile Puvis de Chavannes, 1883)[2]
Ademir Xavier
"A lembrança que conserva, ao despertar, daquilo que viu em outros
lugares e em outros mundos ou em existências passadas, constitui o sonho
propriamente dito".
A. Kardec[3]
"Um dia será oficialmente admitido que aquilo que chamamos
realidade é uma ilusão ainda maior do que o mundo dos sonhos".
Salvador Dali
Uma parte importante da existência
humana é passada dormindo. Em aproximadamente um terço de nossa existência como
encarnados dormimos[4].
O que acontece nesse estado? Embora seja fácil entender a necessidade do sono ‒
tão natural que nem questionamos sua importância ‒ algo mais difícil é
caracterizar e entender os sonhos. O que a compreensão da natureza dual do ser
humano, permitida pela Revelação Espírita, revela sobre nosso entendimento dos
sonhos?
A experiência onírica é bastante
diversa das percepções ordinárias da vigília. Essas últimas admitem
"testemunhas" pelas quais as pessoas compartilham experiências
publicamente. Se viajo com minha família para um lugar turístico, as
experiências que eu tenho são as mesmas que meus parentes também têm. Mas, nos
sonhos, isso não se aplica. Toda a experiência dos sonhos é, em princípio,
privada, ou seja, vivida apenas em "primeira pessoa", apenas por mim.
Se sonho que estou com minha família fazendo turismo, provavelmente ao
questionar meus parentes, eles não confirmarão a mesma experiência. Essa
característica marcante é o que faz com que sonhos sejam, em sua grande
maioria, tomados como experiências geradas exclusivamente pela mente de quem
sonha.
Outra característica marcante
dos sonhos (eu mesmo já experimentei isso) é a aparente ausência de conexões
causais dentro de um sonho. O que acontece em um determinado momento ‒ mesmo
tendo como causa aparente algo anterior durante o sonho ‒ não se apresenta
exatamente assim em um momento depois. Um exemplo: lembro-me de um sonho em que
estacionei um carro em determinado local. Depois de outros fatos no sonho,
quando retornei para pegar o carro, ele não estava mais lá ou, ao menos, não me
lembrava de onde tinha deixado o carro... Por outro lado, também me lembro de
sonhos em que recordei, no próprio sonho, ter estado em lugares (de sonhos)
anteriores. Nesse caso, eu apenas continuava uma aventura ocorrida algumas
noites antes e tive, no sonho, consciência disso: tratava-se de um "sonho
lúcido".
O sonho como uma
síntese mnemônica recriada das vivências da alma durante o sono
Como sintetizou Kardec, o sonho
não se reduz ao estado da vida da alma livre do corpo. Se assim fosse, embora
uma experiência privada, ele deveria ter coerência. O sonho é uma síntese
mnemônica (a "lembrança que conserva") do que ocorreu durante o sono.
Essa síntese, recriação ou montagem é bastante afetada por memórias ou
lembranças já existentes, daquilo que interessa à mente nas experiências
durante o sono (ou seja, ao Espírito), ou do que fica impregnado como lembrança
para ela no momento do despertar. Na formação dessa síntese (através de
mecanismos ainda desconhecidos), quase tudo que é relevante ao indivíduo dá sua
contribuição: os desejos, temores, experiências reinterpretadas da véspera,
lembranças dessa e de vidas anteriores e, inclusive, vivências que o Espírito
livre teve, ou seja, as próprias lembranças de sonhos anteriores.
Para mim, a imensa maioria das
pessoas (nas quais me incluo) não é capaz de reter perfeitamente, pelo prisma
do cérebro, lembranças que vieram pelos sentidos da alma durante o sonho.
Assim, o que acontece é que a lembrança dos sonhos é recriada em termos de um
"banco de memórias" adquirido dessas vivências anteriores. É como
querer criar um filme novo usando sequência de cenas de filmes velhos ou já editados.
Assim, nesse processo de "reedição", o banco de memórias é usado como
uma sequência de símbolos, cenas ou poses que tentam "sintetizar uma
lembrança" da vivência real. É por isso que, ao acordar, muitas vezes, a
sequência que surge é errática e não parece fazer sentido racional.
Por exemplo: imagine que eu, em
Espírito, tenha estado em contato com outras pessoas, durante o sono. Quando
acordar, provavelmente, o processo de lembrança preencherá as personalidades
com quem tive contato com figuras ou pessoas que eu conheço de fato: às vezes,
um amigo que sei depois estava acordado, uma pessoa com quem tive amizade há
muito tempo etc. É possível até mesmo que o sonho seja preenchido com uma
imagem de um parente desencarnado. E, assim, em geral acordamos pensando que
estivemos com "fulano" já morto, mas na verdade era outro... Trata-se
assim de uma recriação. De forma alguma minha lembrança reproduz fielmente o
que passei em Espírito, apenas o 'script' é mais ou menos parecido. Essa
montagem mnemônica é necessária para dar sentido durante a vigília para a
experiência vivida no sonho. É assim porque as experiências durante o sono
atingem a alma não pelas vias comuns dos sentidos materiais. Logo, ao
impregnarem o cérebro no acordar são reinterpretadas.
Quer dizer então que não eram
eles os que estavam naquele sonho que tive com minha mãe, pai ou parente
falecido? Não necessariamente. Situação
algo diversa ocorre nos já citados sonhos lúcidos, que são uma categoria de sonhos
mais raros e bem peculiares. Neles o indivíduo que sonha sabe que está
sonhando, ou que está tendo a experiência. Nos sonhos que tive com minha mãe já
desencarnada, tive a nítida impressão que ela veio me visitar e, coisa
estranha, o sonho se passou no leito onde eu repousava e quase sempre terminava
com o meu acordar em lágrimas. Esses tipos de sonho diferem intensamente da
imensa maioria que tenho, formado por imagens banais, às vezes sequências que
pouco ou nenhum sentido fazem. Sei que os primeiros são sonhos especiais porque
são cheios de significações e muito diferentes dos últimos.
Essa ideia dos sonhos como um
processo de recriação da experiência da alma durante o sono por meio de imagens
preexistentes permite explicar os chamados "sonhos premonitórios". De
fato, esses podem ser recriados com imagens anteriores, mas tratam de eventos
futuros com base em experiências da alma no Além a respeito desses fatos.
Tentar interpretá-los é uma experiência frustrante, pois eles só fazem sentido
para quem teve o sonho e que mantem, inconscientemente, seu real significado.
Além disso, quem sonha premonições pode não ser competente em transmitir seu
significado a tempo, uma fonte de inúmeras confusões.
Em suma podemos dividir em
vários níveis as impressões dos sonhos e como eles se manifestam:
O sentido profundo, que só existe para alma, muitas vezes
de forma inconsciente. Esse sentido pode ser recapitulado em outros sonhos ou
invocado em sonhos lúcidos. Certamente sobrevive à morte física,
O sentido fragmentado, que é recriado com imagens ou
memórias preexistentes, é o sonho "materializado" para o Espírito na
vigília, talvez acabe esquecido com a morte física,
O sentido transmitido para os outros, ou como descrevemos
para os outros, durante a vigília, as nossas experiências oníricas. Elas podem
causar, nos outros, impressão muito diferente do original, o que torna difícil
sua "interpretação", embora em alguns "sonhos anômalos" ela
pode ser bem clara.
A importância dos
"sonhos anômalos"
A grande parte do impasse
teórico das concepções mais populares para explicar a mente se deve porque elas
se referem apenas ao que passa com a imensa maioria. Entendo a razão disso de
um ponto de vista prático. Estatisticamente, parece fazer sentido se dedicar ao
que acontece na maior parte das vezes. Porém, com isso, sacrificamos a
compreensão das causas mais profundas em detrimento do que é mais frequente.
Assim, as anomalias que ocorrem com alguns poucos são varridas para
"debaixo do tapete" por meio de explicações aparentemente aplicáveis
apenas ao que é geral. Mas, será que a explicação mais verdadeira é aquela que
serve para a maioria ou a que não deixa nenhum fato de lado? Na medicina, não
se aprende nada sobre doenças estudando apenas os sãos. Portanto, é preciso
estudar o anômalo, pois só ele permite estabelecer novas correlações, e
explicar a exceção além da regra.
Isso é justamente o que acontece
nos chamados sonhos anômalos. Seriam eles sonhos comuns, não fosse o fato de
que se aproximarem dos sonhos lúcidos e trazerem mensagens que contêm
"conteúdo anômalo", além de bastante significativos. Um trabalho
interessante é o de S. Krippner e L. Faith, intitulado "Sonhos exóticos:
um estudo intercultural"[5].
Nesse trabalho, os autores conseguiram separar (de um conjunto com quase 1700
relatos de sonhos), aproximadamente 185 (ou 8%) considerados
"exóticos". Os sonhos receberam uma classificação conforme o tipo:
sonhos de curas, sonhos lúcidos, sonhos criativos, sonhos com experiências fora
do corpo, sonhos compartilhados, sonhos dentro de sonhos (como eu tive), sonhos
com vidas passadas, sonhos de visitas etc.
Interessante, por exemplo, são
os chamados "sonhos compartilhados". São relatos de pessoas que têm
sonhos mútuos, ou seja, os sonhos são posteriormente descritos como
coincidentes para mais de uma pessoa, o que revela um enfraquecimento do
caráter "primeira pessoa" do sonho[6].
Nos sonhos criativos, Krippner e
Faith registraram casos em que pessoas foram auxiliadas em sonho na solução de
problemas da vida da vigília.
Em um sonho precognitivo, um
indivíduo sonhou antecipadamente com a pessoa com quem iria se casar mais
tarde.
Em um sonho de visitação, uma
pintora do Japão relatou ter sido aconselhada por seu pai, falecido na Segunda
Guerra mundial, a escolher certos tipos de pintura e até sobre como usar o
pincel. A experiência foi bastante significativa para ela, que melhorou seu
desempenho profissional.
Os autores também descobriram
que nem sempre sonhos sobre tragédias terminam de forma fatal, mas se
manifestam antes como anúncios de doenças ou de situação vulnerável de pessoas
à distância.
Finalmente, os autores em
parecem ter descoberto uma correlação entre a incidência de sonhos anômalos e o
tipo de cultura em que ocorrem. De fato, essa correlação faz sentido,
considerando que os sonhos são interpretados em termos de uma bagagem mental
prévia. Assim, quanto maior for o discernimento que o indivíduo tem a respeito
das realidades do espírito, tanto mais claros espiritualmente serão os
registros deixados nos sonhos, cuja manifestação se dá como sonhos exóticos ou
peculiares.
É possível ainda que a maioria
das pessoas já tenha experimentado ‒ ao menos uma vez na vida ‒ esse tipo de
sonho.
Conclusões
Nessa pequena anotação,
elencamos alguns aspectos que parecem relevantes para entender a gênese e o
processo dos sonhos.
A compreensão do mecanismo dos
sonhos deve tanto explicar a dinâmica dos sonhos com a imensa maioria das
pessoas, como também aquelas experiências bastante peculiares, que ocorrem com
grupos específicos, e que podem também se manifestar ao menos uma vez na existência
dessa maioria.
Não é possível entender os
sonhos sem a compreensão da natureza dual do ser humano, que explica os sonhos
peculiares como um semi-desdobramento da alma. Aquilo que chamamos de sonhos
são, na verdade, lembranças de ocorrências durante o sono, na sua maioria
remontadas a partir de lembranças ou memórias já vividas. Essa explicação está
de acordo com a ideia de que, no estado do sonho, o Espírito não pode
sensibilizar diretamente o corpo (leia-se o cérebro), porque está dele afastado.
No processo de "remontagem" da lembrança, tanto experiências da vida
presente (fatos corriqueiros, pessoas etc.) são usados, como também lembranças
não ordinárias (p. ex., de vidas anteriores, de outros sonhos etc.).
O caráter aleatório, estranho ou
sem sentido da maioria dos sonhos é consequência dessa remontagem a partir de
um banco de fragmentos de lembranças. De forma geral, o sentido dos sonhos só
existe para a pessoa que o tem. É muito difícil interpretar corretamente os
sonhos, embora isso possa acontecer excepcionalmente.
O entendimento de que sonhos são
lembranças da vida do Espírito permite explicar uma grande variedades de
relatos de sonhos considerados "anômalos", que são importantes fontes
reveladoras do mecanismo dos sonhos. Sem atenção a esses relatos anômalos, a
explicação dos sonhos fica reduzida a meras "alucinações" ou
"fantasias" do cérebro, sem correlação com a verdadeira realidade que
os explica.
Em particular, além da divisão
entre "sonhos ordinários" e "peculiares", para a maioria
das pessoas, os sonhos ainda se distinguem entre "comuns" e
"lúcidos". Nos sonhos lúcidos, o indivíduo que sonha sabe que sonha e
por isso, teoricamente pode "controlar" o que sonha. Aparentemente,
esse controle estaria sujeito a treinamento[7].
Parece evidente que o sonhar é
fase importante do desenvolvimento ou progresso da alma encarnada, quando ela
exercita, por repetição, sua libertação do corpo físico e rememora sua vida
desencarnada. Em certo sentido, sonhar é um treino para a libertação final da morte.
[2] Fonte: Wikipédia.
[3] A. Kardec. "Instruções Práticas sobre as
Manifestações Espíritas". Vocabulário Espírita. Sonho.
[4] O que também é verdade com os animais. Essa observação
se baseia na constatação de certos padrões de ondas cerebrais em mamíferos, o
que seriam indícios de sonhos em semelhança com os humanos. Sobre a questão do
sonho nos animais ver: Pearlman, C. A. (1979). REM sleep and information
processing: evidence from animal studies. Neuroscience & Biobehavioral
Reviews, 3(2), 57-68.
[5] Krippner, S., & Faith, L. (2001). "Exotic
dreams: A cross-cultural study". Dreaming,
11(2), 73-82.
[6] Outro trabalho relacionado a sonhos compartilhados é
Davis, W. J., & Frank, M. (1994). "Dream sharing: A case study". The
Journal of psychology, 128(2), 133-147.
[7] Ver, p. ex.: May E. C & LaBerge S. (1991)
"Anomalous Cognition in Lucid Dreams". Science Applications International Corporation. Interessantemente, uma
página da CIA (Agência de Inteligência Americana) hospeda esse documento. Em
Março de 2019, pode ser encontrada aqui:
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