O caso relatado no número
precedente, sob o título de “A cabana e o salão” (dezembro de 1862) lembra-nos
um outro, um tanto pessoal. Numa viagem que fizemos há dois anos, vimos, numa
família da alta sociedade, um criado muito jovem, cujo rosto, fino e
inteligente, nos impressionou pelo seu ar de distinção. Nada em suas maneiras
denotava inferioridade; sua dedicação ao serviço dos patrões não tinha essa
obsequiosidade servil, própria das pessoas de tal condição. Voltando àquela
família no ano seguinte, e não mais vendo o rapaz, perguntamos se o haviam
despedido.
“Não”, responderam-me; “foi
passar alguns dias em sua terra e lá morreu. Lamentamos muito, pois era um
excelente sujeito e tinha sentimentos realmente acima de sua posição. Era muito
ligado a nós, tendo nos dado provas do maior devotamento”.
Mais tarde veio-nos a ideia de
evocar o rapaz. Eis o que ele nos disse:
“Em minha última
encarnação eu era, como se diz na Terra, de boa família, embora arruinada pela
prodigalidade de meu pai. Fiquei órfão e sem recursos ainda muito jovem. O Sr.
G... foi o meu benfeitor; educou-me como filho e deu-me uma boa instrução, que
muito me envaideceu. Na última existência quis expiar meu orgulho, nascendo em
condição servil e aqui encontrei ocasião de provar dedicação ao meu benfeitor.
Até lhe salvei a vida, sem que ele jamais desconfiasse. Era ao mesmo tempo uma
prova, da qual tirei partido, pois tive bastante força para não me deixar corromper
pelo contato com um meio quase sempre vicioso. Apesar dos maus exemplos, fiquei
puro, pelo que dou graças a Deus por ter sido recompensado pela felicidade que
desfruto”.
Em que circunstâncias salvastes a vida do Sr. G...?
– Num passeio a
cavalo, em que eu o seguia só, percebi uma grande árvore que caía ao seu lado,
sem que ele a visse. Adverti-o com um grito terrível; ele recuou bruscamente,
enquanto a árvore tombava aos seus pés. Sem o movimento que provoquei, ele teria
sido esmagado.
Observação – O
fato foi relatado ao Sr. G..., que dele se lembrou perfeitamente.
Por que morrestes tão jovem?
– Deus tinha julgado
minha prova suficiente.
Como pudestes aproveitar a prova, se não guardáveis
lembrança de vossa precedente existência e da causa que a motivara?
– Em minha humilde
posição, restava-me um instinto de orgulho, que tive a felicidade de dominar.
Isto tornou a prova muito proveitosa, sem o que teria de recomeçá-la. Em seus momentos
de liberdade, o meu Espírito se lembrava e, ao despertar, ficava um desejo
intuitivo de resistir às minhas tendências, que eu sentia serem más. Assim,
tive mais mérito em lutar do que se me recordasse claramente do passado. A
lembrança perturbadora de minha antiga posição teria exaltado o meu orgulho,
enquanto tive apenas de combater os arrastamentos da nova posição.
Recebestes uma educação brilhante. Para que vos serviu na
última existência, uma vez que não vos recordáveis dos conhecimentos adquiridos?
– Esses conhecimentos
teriam sido inúteis, mesmo um contrassenso em minha nova situação. Ficaram
latentes e hoje os recupero. Contudo, não me foram inúteis, pois me desenvolveram
a inteligência; instintivamente eu tinha gosto pelas coisas elevadas, o que me
inspirava repulsa pelos exemplos baixos e ignóbeis que tinha sob os olhos. Sem
tal educação eu não teria passado de um simples criado.
Os exemplos de domésticos que se dedicam aos patrões até a
abnegação têm por causa relações anteriores?
– Não o duvideis; é,
pelo menos, o caso mais comum. Por vezes tais criados são membros da família
ou, como eu, seres agradecidos que pagam uma dívida de reconhecimento e cuja
dedicação lhes auxilia o progresso. Não sabeis de todos os efeitos das
simpatias e antipatias que essas relações anteriores produzem no mundo. Não, a
morte não interrompe tais relações, que muitas vezes se perpetuam de um século
a outro.
Por que tais exemplos de dedicação dos domésticos são hoje
tão raros?
– Deve-se incriminar o
espírito de egoísmo e de orgulho do vosso século, desenvolvido pela
incredulidade e pelas ideias materialistas. A verdadeira fé desaparece pela
cupidez e pelo desejo de ganho e, com ela, a dedicação. Reconduzindo os homens ao
sentimento da verdade, o Espiritismo fará renascer as virtudes esquecidas.
Observação – Nada
melhor que este exemplo para ressaltar o benefício do esquecimento das
existências anteriores. Se o Sr. G... se tivesse lembrado de quem tinha sido seu
jovem criado, ficaria muito constrangido e nem mesmo o teria conservado naquela
condição, entravando, assim, a prova, que a ambos foi proveitosa.
[1] Revista
Espírita – Janeiro/1863 – Allan Kardec
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