sexta-feira, 29 de setembro de 2017

O HOMEM QUE MATAVA O TEMPO[1]


 
Irmão X
 

Aquelas respostas de Anselmo Figueiredo eram invariáveis.
Convocado à fé religiosa, o rapaz se desviava de qualquer consideração mais grave relativamente à vida. Filhos de pais devotados ao Espiritismo cristão, apesar da assistência carinhosa do genitor e dos comoventes apelos maternais, Anselmo afirmava sempre não haver atingido ocasião adequada.
No seu parecer, o pensamento religioso quadrava tão-somente a pessoas avançadas em idade. Entendia que era preciso desperdiçar a mocidade, gastar energias, estontear-se no prazer e, depois, quando chegasse a perspectiva da morte do corpo, resolveria os problemas da fé. Considerava indispensável aproveitar a saúde, para atender a caprichos inferiores.
Não permanecia na Terra? Que fazia a maior parte dos homens? Atendiam a desejos, através de comidas e bebidas, com os jogos e prazeres do tempo.
Falava-lhe o pai amoroso, de quando em quando:
Anselmo, já não és mais uma criança frágil. Creio que deves refletir maduramente quanto ao nosso destino eterno.
— Ora, meu pai — replicava contrafeito —, lá vem o senhor com as histórias de religião. Tenha paciência, não lhe pedi conselhos. Quando tiver sua idade, talvez pense nisto. Este mundo é bastante miserável para que se não aproveitem os dias tão curtos da mocidade.
E, depois de gesto irritante, arrematava:
— É necessário matar o tempo.
De outras vezes, comparecia a generosa mãezinha no concerto:
Meu filho, meu filho, repara que estamos na Terra, de passagem somente. Vamos aprender as lições da fé. Jesus espera-nos sempre com o perdão aos nossos erros. Anselmo, meu querido, porque não frequentas conosco a escola de iluminação espiritual? Seria isto prazer tão grande para tua velha mãe!... Encontraríamos juntos a fonte das águas eternas...
O moço esboçava um sorriso irônico, explicando-se:
Mamãe, não sou eu criminoso, nem desviado. Creio sinceramente na existência de Deus; mas que quer a senhora? Estou jovem, preciso viver a única ocasião de alegrias na Terra. A senhora e papai estimam os estudos evangélicos, enquanto que eu dou preferência aos cassinos. Que fazer? Não temos culpa, no que concerne às diferenças de predileções. Além disso, como não pode deixar de reconhecer, o período aproveitável da existência é muito enfadonho. É necessário matar o tempo, mamãe!
A pobre matrona suspirava triste e a luta continuava.
Bancário, com remuneração excelente, Anselmo dissipava os vencimentos entre o jogo e os prazeres alcoólicos, comprometendo-se, por vezes, em vultosos empréstimos que o genitor era compelido a resgatar com sacrifícios. Se faltava dinheiro para as extravagâncias, flagelava o coração materno com observações ingratas. E, se os amigos da casa, em visita à família, recordavam ao imprevidente a solução dos problemas da fé, respondia irredutível:
— Que desejam vocês? Observo-lhes o esforço, mas não estimo as tendências religiosas. Admito que semelhantes impulsos chegam com a idade avançada, ou com a moléstia imprevista. Em sã consciência, coisa alguma exige de mim a manifestação religiosa propriamente dita. Não sou velho, nem sou enfermo. Consequentemente, minha conduta é outra. O homem normal e tranquilo sabe matar o tempo. É o que faço sem perturbar a cabeça.
Após fitar a reduzida assembleia de amigos, como se enfrentasse multidões do mundo, de olhar dominador, Anselmo dirigiu-se ironicamente para uma velhinha simpática, exclamando:
— Que me diz a senhora, Dona Romualda? Acaso, não se aproximou do Espiritismo, em virtude de suas velhas cólicas? Teria pensado em religião antes disto?
A anciã humilde replicava, bondosa:
— Ah! Sim, Anselmo, talvez tenhas razão.
— E o senhor, “seu” Manuel — dirigia-se o moço, atrevidamente, a um negociante idoso —, teria buscado o Espiritismo, se não lhe aparecessem as varizes e o reumatismo?
O interpelado, entretanto, que não tinha a paciência de Dona Romualda, respondia firme:
— Mas, meu amigo, é o caso de abençoar as enfermidades. Se é que está esperando por elas a fim de renovar atitudes mentais, formulo votos para que a Providência Divina o atenda breve.
O rapaz esboçava gesto de aborrecimento e dava-se pressa em sair para a rua, murmurando entre os dentes:
— Estou muito distante de tais perturbações e, até que venha ocasião apropriada, matemos o tempo.
De nada valiam observações dos genitores, conselhos amigos, convites fraternais. A qualquer aborrecimento comum, desdobrava-se Anselmo em palavras blasfematórias. Se advertido, mostrava enorme fecundidade por evitar raciocínios nobres, declarando-se em época inoportuna a qualquer cogitação de natureza espiritual. O bilhar, o pano verde, as aventuras do desejo menos digno lhe empolgavam a mente.
Convidado inúmeras vezes pela bondade divina a traçar diretrizes superiores, com ao destino sagrado, Anselmo Figueiredo fugira a todas as oportunidades de iluminação íntima. Preferira as sombras espessas da ignorância a qualquer pequenino serviço de autoeducação. Sua ficha individual na Terra estava cheia de anotações inferiores: ociosidade, libertinagem, negação de atividades úteis.
A qualquer interpelação carinhosa, vinha à baila o velho estribilho: não havia atingido o tempo próprio, sentia-se distante da realização espiritual, aceitava as verdades eternas; entretanto, declarava-se sem a madureza necessária ao trabalho da própria edificação. E assim, o filho do casal Figueiredo atingiu os quarenta e oito anos, sempre se sentindo demasiadamente jovem para aproximar-se do conhecimento divino. Vivera à moda de borboleta distraída, sumamente interessado em matar o tempo.
Contudo, a morte não podia esperar por Anselmo, como os amigos do mundo, e chegou o dia em que o imprevidente não conseguiu abrir as pálpebras do corpo, ingressando em trevas densas, que lhe pareciam infinitas.
Percebeu sem dificuldade que não mais participava do quadro terrestre. Sentia-se de posse dos olhos, mas figuravam-se lhe agora duas lâmpadas mortas. Chorou, pediu, praguejou. Não mais entes amorosos a convidá-lo para o banquete do amor. Não mais a ternura maternal. Todavia, quando o silêncio absoluto não lhe balsamizava as dilacerações da mente em febre, ouvia gargalhadas irônicas, indagações maliciosas e ditos perversos. Nada valiam lágrimas e rogativas. Semelhava-se a um cego perdido em região ignorada, sem família, sem ninguém. Nunca pôde retomar o caminho de casa, ansioso por ouvir agora a palavra dos pais, a observação dos amigos carinhosos. Anos passaram sobre anos, sem que o arrependido pudesse contar o tempo de amarguras.
Houve, porém, um dia em que, após angustiosa prece, entre lágrimas, se fez claridade súbita em sua longa noite. O penitente ajoelhou-se, deslumbrado. Alguém lhe visitava a caverna escura. De repente, na doce luz que se formara em torno, apareceu-lhe a amada genitora a fitá-lo, com extrema doçura.
Mãe! Minha mãe! — bradou o infeliz — Socorre-me por piedade!...
Anselmo, em pranto, tentou alcançar a figura luminosa que o contemplava entristecida, mas debalde. A senhora Figueiredo, não obstante se fazer visível, parecia distante. O desventurado procurou correr para atingi-la, ansioso por se retirar das trevas para sempre. A mãezinha devotada, contudo, alçou a destra compassiva e falou emocionada:
— É inútil, por enquanto, meu filho! Estamos separados pelo abismo que cavaste com as próprias mãos. Há mais de dez anos aguardava ansiosamente este encontro; mas, em que estado lastimável te vejo, filho meu!...
— Querida mãe! — clamou o mendigo de luz — Por que me esqueceu o Senhor do Universo? Abandonado de todos, sou um fantasma de dor, sem o auxílio de ninguém. Por que tamanho padecimento? Por quê?
Enquanto o desditoso arquejava em soluços convulsivos, a genitora esclareceu, triste:
— Deus nunca te esqueceu, foste tu que lhe esqueceste as bênçãos no caminho do mundo. Cuidaste apenas de matar o tempo e o teu tempo agora permanece morto. Trabalha para ressuscitá-lo, meu filho, procurando obter nova oportunidade de serviço, perante a bondade do Senhor. As lutas do coração desfazem as trevas que rodeiam a alma. Não esqueças a longa estrada que ainda tens a percorrer...
E, antes que Anselmo pudesse formular novas interpelações, a luz espiritual apagou-se devagarinho, voltando a paisagem de sombras, a fim de que o imprudente do passado conseguisse acender a luz da própria alma, com vistas ao porvir.




[1] Pontos e Contos – Francisco C. Xavier

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