quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Os sofrimentos humanos[1]


 
Joanna de Ângelis
 

Buda considerou a vida como uma forma de sofrimento e que a sua finalidade era, exclusivamente, encontrar a maneira de libertar-se dele. Para o budismo, a vida é constituída de misérias que geram o sofrimento; por sua vez, o sofrimento é causado pelos desejos insatisfeitos ou pelas emoções perturbadoras e (o sofrimento) deixará de existir se forem eliminados os desejos, sendo necessário, para tanto, uma conduta moderada, e a entrega à meditação em torno das aspirações elevadas do ser.
A fim de transmitir adequadamente suas lições, o príncipe Gautama utilizou-se de parábolas, conforme fez Jesus mais tarde.
O fundamento essencial dos seus ensinos se encontra na Lei do carma, graças à qual o homem é o construtor de sua desdita ou felicidade, mediante o comportamento adotado no período da sua existência corporal. Em uma etapa, a aprendizagem equipa-o para a próxima, sendo que a soma das experiências e ações positivas anula aquelas que lhe constituem débito propiciador de sofrimento.
O sofrimento se apresenta, na criatura humana, como uma enfermidade, que necessita de tratamento conveniente, em que se invistam todos os valores ao alcance, pela primazia de lograr-se o bem estar e o equilíbrio fisiopsíquico.
Deste modo, o sofrimento pode decorrer do desgosto orgânico ou mental que é um processo degenerativo do instrumento material do homem. As doenças campeiam, e a receptividade daqueles que se encontram incursos nos códigos da Justiça Divina sofrem-nas, mediante as coarctações (restrições) danosas dos mecanismos genéticos, ou por contaminação posterior, escassez alimentar, traumatismos físicos e psicológicos, num emaranhado de causas próximas, decorrentes dos compromissos negativos do passado mais remoto.
Noutro caso, o sofrimento resulta da transitoriedade da própria vida física e da fragilidade de todos os bens que proporcionam prazer por um momento, convertendo-se em razão de preocupação, de arrependimento, de amargura.
A busca do prazer é inata, instintiva, e o homem se lhe aferra na condição de meta prioritária.
Não raro, ao consegui-lo, frui da satisfação momentânea e, por insatisfação psicológica, propõe-se a prolonga-lo indefinidamente, sofrendo ante a impossibilidade de mantê-lo, pelas alterações naturais que se derivam da impermanência de tudo, pela saturação e, finalmente, pela perda de objetivo após conseguido o anelo (anseio, aspiração).
Por fim, surge o sofrimento dos condicionamentos de ordem física e mental.
Os hábitos arraigados constituem uma segunda natureza, com prevalência na conduta psicológica do homem. As alterações e transformações produzem sofrimento, pela necessidade de ajustamento, pelo esforço da adaptação, e os altibaixos da emoção que tende a reagir às mudanças que se devem operar na conduta.
Encontrado o sofrimento, o homem tem o dever de identificar as suas causas, que procedem dos atos degenerativos próximos ou remotos, referentes às suas reencarnações. Ao lado daqueles que ressumam (gotejam) das dívidas cármicas, estão os decorrentes das suas emoções desequilibradas, que têm nascentes no egoísmo, no apego, na imaturidade psicológica. Dentre outros, apresentam-se em plano de destaque, o medo, o ciúme, a ira, que explodem facilmente engendrando sofrimento.
Chega o momento de buscar-se a cessação deles, qual ocorre com as enfermidades que devem ser tratadas com carinho, porém com disciplina. De um lado, é imprescindível ir-se às causas, a fim de fazê-las parar, ao mesmo tempo evitar novos fatores desencadeantes. Conhecidas as origens, mais fáceis se tornam as terapias que, aplicadas convenientemente, resultam favoráveis ao clima de saúde e de bem estar.
O esforço empreendido para o término do sofrimento, apresenta-se em etapas que se vão incorporando ao dia-a-dia do indivíduo cioso da sua necessidade de paz.
Impões-lhe o trabalho de condicionar a mente à necessidade da harmonia, recorrendo à meditação em torno das finalidades altruísticas da vida, disciplinando a vontade, exercitando a tranquilidade diante dos acontecimentos que não podem ser evitados, das ocorrências denominadas tragédias, das quais pode retirar excelentes resultados para o comportamento e a auto realização.
O processo da cessação do sofrimento dá-se, ainda, através do sofrimento que propicia satisfação pela certeza que advém de se estar liberando da sua áspera constrição.
Enfrentar, portanto, o sofrimento, sem válvulas psicológicas escapistas, é uma atitude saudável, muito distante da distonia masoquista habitual. Também resulta de uma disposição consciente para o homem enfrentar-se desnudado, com uma visão otimista em torno do futuro por conquistar.
Realmente, o sofrimento faz parte do mecanismo da evolução na Terra. Nos reinos vegetal e animal ele se encontra na embrionária percepção das plantas, que sofrem as agressões e hostilidades do meio, as contaminações e processos degenerativos. Entre os animais, desde os menos expressivos até os mais avançados biologicamente, o sofrimento se manifesta na sensibilidade nervosa, como forma de produzir novos e mais perfeitos biótipos, em constante adaptação e harmonia das formas do psiquismo neles latente.
A superação do sofrimento é, sem dúvida, o grave desafio da existência humana, que a todos cumpre conseguir.
 
Recursos para a liberação dos sofrimentos
A coragem é fator decisivo para o bem do indivíduo na sua historiografia psicológica. Para hauri-la, basta o interesse consciente e duradouro em favor da aquisição da felicidade, que se deve tornar a meta essencial da sua existência.
Inexistente esta necessidade tampouco há sofrimento, porque, a ausência das aspirações nobres resulta da morte dos ideais, provocada pela indiferença da vida, em uma psicopatologia grave.
O sofrimento, em si mesmo, é fonte motivadora para as lutas de crescimento emocional e amadurecimento da personalidade, que passa a compreender a existência de maneira menos sonhadora e mais condizente com a sua realidade.
Os jogos e ilusões da idade infantil, superados, dão ensejo a uma integração consciente do indivíduo no grupo social no qual se encontra, fomentando o esforço pelo bem dos demais, por saber-se membro valioso e entender, por experiência pessoal, os gravames que a dor proporciona. Inobstante esta experiência lúcida, sabe que o esforço a envidar para liberar-se dos sofrimentos é, por sua vez, conquista da inteligência e do sentimento postos a serviço da sua realização pessoal e comunitária.
Na maior parte dos métodos, a vontade do paciente prevalece como fator de alta importância.
Excetuando-se os referidos sofrimentos por sofrimentos, e mesmo em grande parte deles, a reflexão bem direcionada gera uma psicosfera de paz, renovadora, que o envolve e alimenta, levando à liberação deles.
Relacionemos algumas fases da terapia liberativa:
a) Considerar todos os indivíduos como dignos de ser amados e tomar por modelo alguém que o ama e se lhe dedica, por isto mesmo, credor de receber todo o afeto. Este sentimento, sem apego nem interesse gerador de emoções perturbadoras, desarma o indivíduo de suspeitas, de ansiedades e medos, ao mesmo tempo dirimindo as incompreensões de outrem e desarticulando quaisquer planos infelizes.
Uma visão favorável sobre alguém dilui as nuvens densas que lhe obscurecem a personalidade, facultando um relacionamento positivo. A não reação à agressividade do outro desmantem-lhe a couraça de prepotência, na qual se oculta. Se a resposta é otimista e sem azedume, conquista-o para um intercâmbio útil, ampliando-lhe o círculo de expressões afetivas. Logo, este sentimento contribui para anular os efeitos do sofrimento moral e dissipar algumas, senão todas as suas causas perturbadoras. O ato de ver bem as demais pessoas, torna-se um hábito terapêutico preventivo, em relação às agressões do meio ambiente, dos companheiros, constituindo um encorajamento para a luta libertadora. O cultivo, a expansão de ideias e conceitos edificantes apagam o incêndio ateado pelo pessimismo da maledicência, da inveja, da calúnia, tornando respirável a atmosfera social do grupo onde o homem se localiza.
b) Identificar e estimular os traços de bondade do caráter alheio. Não há solo, por mais sáfaro (agreste), que, tratado, não permita o vicejar de plantas. Em todo sentimento existem terras férteis para a bondade, mesmo quando cobertas por caliça e pedregulhos. Um trabalho, breve que seja, afastando o impedimento, e logo esplendem os recursos próprios para a sementeira da esperança. Os indivíduos que se notabilizavam pela maldade na vida privada e no seu círculo social, revelavam-se bondosos e gentis tornando-se amados pela família e pelo grupo, mesmo conhecendo-lhes as atrocidades em que eram exímios. A maldade sistemática, a impiedade, o temperamento hostil revelam as personalidades psicopatas que, antes, necessitam de ajuda, ao invés de reproche (censura). A bondade, neles latente, aguarda o momento de manifestar-se e predominar, mudando-lhes o comportamento. Com tal atitude, a de identificar a bondade, torna-se possível a superação do sofrimento, como quer que se apresente, especialmente o que tem procedência moral.
c) Aplicar a compaixão quando agredido. Uma reação de pesar, ante o ato infeliz, produz um efeito positivo no agressor. Proporciona o equilíbrio à vítima, que não desce à faixa vibratória violenta em que o outro se demora. Impede a sintonia com a cólera e seus famanazes (influências), impossibilitando a instalação de enfermidades nervosas e distúrbios gastrointestinais e outros, face a não absorção de energias deletérias. A compaixão dinâmica, aquela que vai além da piedade buscando ajudar o infrator, expressa bondade e se enriquece de paixão participativa, que levanta o caído, embora seja ele o perturbador. Essa conduta impede que se instale o sofrimento na criatura.
d) O amor deve ser uma constante na existência do homem. Há em tudo e em todos os seres a presença do Amor. Em um lugar revela-se como ordem, noutro beleza e, sucessivamente, harmonia, renovação, progresso, vida, convocando à reflexão. O amor é o antídoto mais eficaz contra quaisquer males. Age nas causas e altera as manifestações, mudando a estrutura dos conteúdos negativos quando estes se exteriorizam. Revela-se no instinto e predomina durante o período da razão, responsabilizando-se pela plenificação da criatura. O amor instaura a paz e irradia a confiança, promove a não violência e estabelece a fraternidade que une e solidariza os homens, uns com os outros, anulando as distância e as suspeitas. É o mais poderoso vínculo com a Causa Geradora da Vida. É o motor que conduz à ação bondosa, desdobrando o sentimento de generosidade, ao mesmo tempo estimulando à paciência. Graças à sua ação, a pessoa doa, realizando o gesto de generosa oferta de coisas, até o momento em que é levado à autodoação, ao sacrifício com naturalidade.
O amor é o rio onde se afogam os sofrimentos, pela impossibilidade de sobrenadarem nas fortes correntezas dos seus impulsos benéficos. Sem ele a vida perderia o sentido, a significação. Puro, expressa, ao lado da sabedoria, a mais relevante conquista humana.




[1] O Homem Integral – Divaldo P. Franco

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