Irmão X
Comentávamos alguns problemas
alusivos à saúde humana, quando Olímpio Ericeira, exmédico na Terra,
considerou:
– Modifica-se singularmente o campo geral da vida, quando examinado
através de nossos objetivos superiores. Sob o ponto de vista espiritual, renovam-se-nos
aqui todos os conceitos clássicos da Medicina, em virtude das necessidades
fundamentais da alma. Com raríssimas exceções, toda enfermidade reflete as
deficiências de natureza profunda. A rigor, não há patologia sem desequilíbrio
psíquico, tanto quanto não existe flora microbiana sem clima adequado. Por isso
mesmo, grande número de moléstias funcionam como elementos de socorro à
inteligência reencarnada. Claro que o homem não pode prescindir do combate contra
as forças invasoras, no sentido de preservar o precioso vaso orgânico em que se
manifesta; entretanto, não deveria lutar com o pavor do sentenciado e sim com a
atenção do trabalhador. A moléstia acidental pode ser aviso prestimoso; as
enfermidades de longo curso costumam simbolizar trabalhos de salvamento; as
enxaquecas, por vezes, demoram-se no corpo, atendendo a dispositivos da
Providência Divina. Se eu dispusesse de autoridade, solicitaria a todos os
irmãos reencarnados aceitarem as manifestações patogênicas, dentro da maior
serenidade, a fim de que produzam todos os bens de que são portadores.
– Semelhante atitude, porém, é muito difícil! – observou Eduardo
Lessa, outro médico desencarnado – o
homem estima viver na filosofia do imediatismo. Exige melhora e cura, ao mesmo
tempo, e é tarefa complicada atender a criaturas insaciáveis.
– A opinião é justa – tornou Olímpio, em tom grave –, o imediatismo é o escolho com que somos
invariavelmente defrontados, em todos os trabalhos de assistência aos
companheiros da experiência física. Há doentes, com muitos anos de leito, que
reclamam o restabelecimento em alguns dias, necessitados que não percebem os
impositivos de ordem moral que os agrilhoam a padecimentos transitórios e
pessoas que, intoxicadas pelos escuros pensamentos que cultivam, não reconhecem
as sombras da própria mente enfermiça.
E refletindo para dar-nos um
exemplo do que asseverava, continuou :
– Inda agora, assisti a uma ocorrência significativa. Através dela
observei, mais uma vez, que a pressa de curar, entre os que se movimentam na
carne, pode agravar as doenças verdadeiras da alma.
Olímpio fez uma pausa e
prosseguiu :
– A Senhora Ramos é criatura de qualidades excelentes, mas na posição
maternal é apaixonada ao delírio, o que não impede seja credora de numerosas
amizades em nosso plano, em virtude da sua bondade espontânea. Realmente, é
caridosa sem ostentação e humilde sem alarde. Ninguém se retira da presença
dessa nobre mulher sem sentir-se melhor. Sendo prestativa e fraternal, suas
rogativas mobilizam muitos colegas nossos, que a ela se uniram pelos laços
indestrutíveis da gratidão.
Não há muitos meses, fui
convidado a cooperar no tratamento de Anacleto, filho dessa valiosa missionária
do bem. Dispus-me ao concurso solicitado, sondei o caso; depressa reconheci, em
companhia de outros amigos, que a moléstia insidiosa deveria ser tratada com muita
lentidão, em vista de ascendentes de origem moral. Anacleto apresentava perturbações
orgânicas facilmente remediáveis; no entanto, a sua personalidade real exibia enormes
desequilíbrios. Era ele um viciado de renovação muito difícil.
O médico da família tratava-o,
com acerto; entretanto, a mente transviada do rapaz exigia provas rudes.
A Senhora Ramos vivia receosa.
Temia pela saúde do filho e desejava, fervorosamente, a restauração imediata.
Todavia, se o facultativo terrestre apressava recursos para o fim em vista, de
nosso lado acentuávamos a delonga. Não devia o moço restabelecer-se com facilidade.
Tal concessão seria perigosa. Anacleto precisava extrair todo o proveito que a enfermidade
lhe poderia conferir e devia socorrer-se da colaboração de muitos amigos encarnados,
para entender, de alguma sorte, as obrigações que lhe competiam. As reflexões do
leito ser-lhe-iam benéficas. O fígado enfermo, o estômago escoriado e as pernas
feridas lhe ensinariam, sem palavras, valiosas lições íntimas. No curso do
tempo, fornecer-lhe-iam paciência, fraternidade, gratidão e, sobretudo, algum
entendimento da vida. Até à ocasião em que se recolhera para tratamento
rigoroso, não passava de criatura inútil. Gastava a mocidade entre arruaças e
vícios.
Não sabia agradecer e muito
menos cooperar na extensão do bem. Todavia, em virtude da moléstia renitente,
começava a ser afável e reconhecido. Já sabia como atender a visitas, como suportar
uma conversação em que os seus pontos de vista não eram respeitados e aprendera
a sorrir para pessoas menos simpáticas.
A Senhora Ramos, porém, qual
ocorre à maioria das mães terrestres, não examinava a situação fora das
inquietudes injustificáveis. Acomodava-se muito bem com a fé tranquila dos dias
róseos, mas não compreendia a confiança nos dias escuros.
Implorava a restituição imediata
da saúde ao filho e consagrava-se apaixonadamente a essa ideia.
De quando em quando,
encontrávamo-nos no grupo espiritista, através da organização mediúnica.
Expunha-nos, inquieta, as suas aflições e temores.
– Guarde serenidade, minha irmã – repetíamos, invariavelmente –, Anacleto há de curar-se; em qualquer tempo,
mais vale atentar para a Vontade de Deus que nos encarcerarmos nos próprios
desejos, quase sempre filiados à desorientação e ao egoísmo. Aguardemos com calma.
Nossa amiga, no fundo, pretendia
sustentar o elevado padrão de fé, mas acabava sempre em vacilações
prejudiciais, dentro do labirinto afetivo.
De nossa reunião espiritual,
seguia para a discussão com o médico, no conforto da residência, reclamando
remédios mais eficientes, melhoras seguras e resultados mais nítidos.
Assediado pelas rogativas da
genitora, o facultativo encarnado lembrou a oportunidade de uma estação de
águas. Anacleto iria às fontes curativas e, certo, restauraria o fígado intoxicado.
Consultou-nos a Senhora Ramos,
com respeito ao alvitre.
Sabíamos que a medida, em nos
reportando ao campo físico, seria excelente, que o rapaz encontraria alívio
rápido; no entanto, não ignorávamos que a sua condição espiritual ainda era
lamentável, e que, por isso mesmo, o rapaz não se habilitara à recepção daquela
bênção. Não víamos tão-somente o organismo enfermo, mas também os interesses
vitais da saúde eterna. Examinando todos esses fatores, opinamos em contrário.
A pobre mãe recebeu-nos a negativa, mal-humorada, e, após novo acordo com o
clínico terreno, assentou que nós outros, os cooperadores espirituais,
estacionáramos em equívoco, deliberando a partida do filho para as águas, sem
perda de tempo, plenamente despreocupada de nossa lembrança fraternal.
Em poucos dias, viu-se Anacleto
em estação elegante.
A essa altura da narrativa,
Olímpio fez longa pausa, como a exumar as reminiscências mais fortes e
concluiu:
- Efetivamente, o rapaz, em duas semanas, estava quase radicalmente
curado. A Senhora Ramos não cabia em si de contente. Anacleto, porém, assim que
se viu exonerado dos impedimentos físicos, não mais quis saber das edificantes
palestras maternais. Não longe do balneário funcionava grande seção de jogos de
azar que, de pronto, lhe fascinaram a mente doentia. Incapaz de procurar o
entretenimento sadio, útil ao sistema nervoso enfermiço, atirou-se ao pano
verde, desvairadamente, tomado de estranha sede. Ocultando-se à vigilância
materna, durante oito noites sucessivas aventurou somas enormes. Quando perdeu
o conteúdo da própria bolsa, valeu-se de dois cheques em branco que o pai havia
confiado à genitora, devidamente assinados, para despesas eventuais na excursão
de cura.
Fez dois saques vultosos, mas perdeu irremediavelmente. Quando viu
rolar a ficha derradeira, ausentou-se, alucinado; enceguecido, semilouco, não
conseguiu registrar-nos a assistência espiritual e, a sós, no quarto de dormir,
ralado de ódio e vergonha, suicidou-se estourando o crânio. E assim terminou a
experiência. A Senhora Ramos retirou-se de casa conduzindo um filho doente e
regressou trazendo um cadáver.
[1] Pontos e Contos – Francisco C. Xavier
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