Irmão X
Poucas vezes, tive ao meu lado
entidade tão bela.
Tratava-se da nobre Diana que,
desde muito, segundo me informaram, se consagrara ao ministério de iluminação
das almas cegas e infelizes.
Demorava-se longas semanas no
abismo.
Acendia luz evangélica entre
gemidos e sombras.
Ao contrário de muita gente
envolvida, resistia, heroica, ao peso da atmosfera baixa e espessa.
Inúmeros criminosos impenitentes
rendiam-se-lhe à palavra persuasiva e maternal.
Jamais falava como quem reprova
condenando, mas como quem esclarece amando, em nome de Deus.
Certo dia, visitou-nos o grupo
em elevada tarefa.
Ouvi-a dissertar sobre grandes
teses humanas, deslumbrando-me com a sabedoria que lhe vibrava em cada
definição.
O que mais impressionava, contudo,
em sua venerável figura feminina, era a luz que a rodeava inteiramente. Parecia
viver num ambiente maravilhoso, exclusivamente seu, tão sublime era o halo
radioso que a circundava, isolando-a das influências exteriores.
Asseverou-me um amigo que a abnegada
mensageira possuía direito indiscutível para desfrutar semelhante situação, não
só por trabalhar em círculos de criaturas positivamente inferiores a ela, como
também porque vencera, em si mesma, as deficiências mais rudes da condição
animal.
Alma divina, Diana reunia beleza
e a bondade, a ciência e a expressão.
Quando terminou a palestra
encantadora que a trouxera ao nosso núcleo de serviço, aproximei-me, curioso e
enlevado. Outros companheiros imitaram-me o gesto. A singular posição luminosa
daquela mulher arrebatava-nos o espírito. A emissária, no entanto, muito simples,
parecia desconhecer a própria elevação. Sorria fraternalmente e comentava os problemas
terrestres, como se estivesse ainda envolta na roupagem carnal. Soberano entendimento
de todas as coisas lhe transparecia das mínimas expressões.
Emocionado, em lhe observando a
renúncia a favor das almas embrutecidas, indaguei do porquê de seu sacrifício,
retendo-lhe as respostas surpreendentes.
— Sim, meu amigo — respondeu sem afetação —, num impulso espontâneo de minha própria consciência, ofereci cinquenta
anos de trabalho aos nossos irmãos das zonas mais baixas da vida e não me
envergonho de explicar-lhe a razão de meu gesto.
E sorridente, ante o interesse
geral, prosseguiu delicada:
— Não sei se conhecem as extremas dificuldades do Espírito para alijar as
vestes animalizadas do sentimento.
Sorrimos, de modo significativo,
dando-lhe a entender a nossa inferioridade.
— Pois bem — continuou a embaixatriz da caridade e da sabedoria —, confesso que pertenci à classe das piores
mulheres que já existiram nos círculos do Planeta. O ciúme, o egoísmo e a
vaidade eram o meu trio de verdugos cruéis. Voltei à carne, numerosas vezes.
Somente para atacar o ciúme fulminante, recebi a oportunidade de nove
existências sucessivas, sem resultado eficiente. Para combater o egoísmo e a
vaidade, regressei ao corpo físico muitas vezes, falhando nas mais
insignificantes promessas. Sempre a recapitulação do momento vicioso.
Envenenava meu companheiro pelo ciúme, destruía o lar pelo egoísmo e perdia os
filhos, através da vaidade. Amigos desvelados seguiam-me, carinhosos, de
esferas mais altas, estendendo-me braços fraternais; entretanto, fracassei, de modo
invariável. Valia-me da bênção do esquecimento na reencarnação, para perpetrar novos
erros e espezinhar as sagradas leis. O tempo, contudo, ia passando, implacável,
e os meus antigos benfeitores espirituais se foram distanciando, elevados a
regiões menos densas. Despediam-se, afetuosos, estimulando-me ao desempenho dos
deveres cristãos, permanecendo, assim, relegada a mim mesma, entre problemas
inquietantes e complicados.
Por fim, o esposo amigo, sócio abençoado de experiências e empresas
inúmeras, foi convocado à esfera superior, em virtude dos méritos adquiridos,
e, dos Espíritos amados que me foram pais e filhos, em várias estações
evolutivas, não existia nenhum ao lado de minha pequenez.
Quando me vi irremediavelmente sozinha, experimentei intraduzível pavor
e amargoso desânimo. Abandonei-me, então, a propósitos menos dignos,
demorando-me nos recantos abismais qual trapo inútil, embora consciente,
vencida pelo trio nefasto. Muitos anos partilhei o desencanto da soledade quase
absoluta.
Dia houve, no entanto, em que fui visitada por nobre missionária do
bem, que me contou, carinhosamente, o romance que lhe dizia respeito.
Estivera em minha posição degradante, mas superara os obstáculos,
utilizando o concurso de entidades infelizes. Depois de aventuras
extravagantes, no curso das quais fora invariavelmente derrotada, voltou à
Terra, na qualidade de mãe de filhos monstruosos, e tão rijos lhe foram os
testemunhos de abnegação que chegou ao admirável triunfo sobre a tríade tenebrosa,
dominando o ciúme, o egoísmo e a vaidade no decurso de setenta anos de sacrifício
incessante.
Aconselhou-me, assim, a visitar as furnas do sofrimento purgatorial e a
rogar a colaboração dos dirigentes daqueles que estacionam nas províncias da
angústia, candidatando-me à maternidade dolorosa na Terra.
Aceitei o alvitre, jubilosa.
Que representavam setenta anos de esforço e paciência para conseguir
uma realização que me escapara durante milênios?
A presença amiga conduziu-me às retaguardas das trevas e, horrorizada,
percebi a existência de infortunados irmãos nossos, em estágios longos de
loucura, cegueira e deformação. Agitavam-se em torvelinho de padecimentos
indescritíveis. Acovardei-me ante o quadro triste, mas a piedosa mensageira que
me custodiava reanimou-me e, afinal, solicitei a concessão.
Quando meu fervor se exteriorizou em lágrimas de esperança, fez-se
visível um dos vigilantes da atormentada região, acolhendo-me a súplica.
Aceitar-me-ia o compromisso e designou-me quatro crianças monstruosas que me
caberia adotar.
Reunir-se-iam à minh’alma, dentro de algum tempo, nos círculos carnais.
Foi assim que, entre o pavor e ansiedade, regressei ao renascimento
terrestre.
Vi-me, desde cedo, em condições dolorosas e precárias.
Nos rudimentos da infância, observei que meu corpo estava em formal
desacordo com meus sentimentos íntimos.
A princípio, vigorosa rebeldia dominou-me o coração, mas fui lavando as
manchas da revolta com lágrimas benfazejas e, porque a orfandade me colhera nos
primeiros anos, fui compelida a desposar um homem terrivelmente disforme, que
me impôs quatro filhos desventurados. Logo após o nascimento do último deles,
meu infeliz esposo, companheiro de quedas noutra época, veio a desencarnar,
legando-me pobreza e viuvez irremediáveis.
Tentei a conquista do trabalho digno; entretanto, o infortúnio dos
filhos não mo permitiu. Um era cego, outro leproso e dois aleijados.
Muita vez, a vaidade me inclinou à prostituição, mas o instinto de mãe
não me separava dos filhinhos e toda gente me evitava a presença com manifesta
repugnância. O egoísmo procurou vendar-me os olhos, sugerindo os enjeitasse;
contudo, a maternidade sofredora me ajudava a vencer no combate do coração. O
ciúme alvitrava o desespero e o crime, mormente quando surgiam as mães tranquilas
e afortunadas, ao meu olhar; todavia, o beijo de minhas pobres crianças
atormentadas convidava-me à gratidão pela caridade pública, a humildade e ao
entendimento. Nunca tive pouso certo,
como nunca dispus de parentes que me solucionassem as necessidades. Vagueei
mendigando nos caminhos, errando sem direção, invariavelmente acompanhada pelos
quatro meninos desditosos, que se transformaram em sentenciados adultos, cheios
de necessidades.
Ambos os aleijados partiram mais cedo para o sepulcro, o leproso
desencarnou algum tempo depois e o cego andou comigo, por mais de quarenta
anos. Suportei sede, fome, privações e conheci de perto a enfermidade e a
aflição, com os filhos amargurados, agonizantes ou insepultos...
Ao completar, porém, os setenta anos, achava-me liberta do trio
maldito. A morte surpreendeu-me totalmente renovada e, com as bênçãos divinas,
pude entoar o meu cântico de vitória.
Silenciou a nobre Diana, sob a
nossa viva emoção.
A sublime narrativa revelava
nova interpretação da luta terrestre.
Ante a quietude que nos
assaltara, concluiu a mensageira do bem, com vibrante expressão:
— Segundo verificam, sou devedora insolvável para com os nossos irmãos do
purgatório escuro. Em companhia deles, na reencarnação terrestre, aprendi
lições que muitos séculos de aprendizado pacífico não me puderam ensinar, à
vista de minha rebeldia e viciação; e tão grande é a minha alegria e tão bela a
minha noção de vitória individual que, se rastejasse nas trevas, por alguns
milênios, a fim de servi-los, não lhes pagaria, em hipótese alguma, quanto lhes
fiquei a dever para a eternidade.
[1] Pontos e
Contos – Francisco C. Xavier