terça-feira, 25 de abril de 2017

Médiuns sem Saber[1]


 
Na sessão da Sociedade, de 16 de setembro de 1859, foram lidos diversos trechos de um poema do Sr. de Porry, de Marselha, intitulado Urânia. Como então se observou, nesse poema abundam as ideias espíritas, que parecem ter sido hauridas na própria fonte de O Livro dos Espíritos. Entretanto, constatou-se que na época em que foi escrito seu autor não tinha nenhum conhecimento da Doutrina Espírita. Nossos leitores certamente ficarão gratos se lhes dermos alguns fragmentos (ver Urânia – Fragmentos de um Poema Espírita – Revista Espírita – Novembro/ 1859).
Por certo se recordam do que a respeito foi dito da maneira pela qual o Sr. De Porry escreveu seu poema, maneira que parece denunciar uma espécie de mediunidade involuntária (Ver neste blog, Médiuns Inertes, publicado em 11/04/2017).
Aliás, os Espíritos que nos cercam exercem sobre nós, mal grado nosso, uma influência incessante, aproveitando as disposições que encontram em certos indivíduos para transformá-los em instrumentos das ideias que querem exprimir e levar ao conhecimento dos homens. Esses indivíduos são, pois, sem o saber, verdadeiros médiuns e, para isso, não necessitam possuir a mediunidade mecânica. Todos os homens de gênio, poetas, pintores e músicos estão neste caso; certamente seu próprio Espírito pode produzir por si mesmo, se é assaz avançado para isso. Entretanto, muitas ideias lhe podem vir de uma fonte estranha; pedindo inspiração, não parece que estejam fazendo um apelo? Ora, o que é essa inspiração, senão uma ideia sugerida?
Aquilo que tiramos do nosso próprio íntimo não é inspirado: nós o possuímos e não temos necessidade de recebê-lo.
Se o homem de gênio tirasse tudo de si mesmo, por que, então, lhe faltariam ideias no momento em que as procura?
Não seria capaz de extraí-las do cérebro, como aquele que tem dinheiro o retira do bolso? Se nada encontra em dado momento, é porque nada tem. Por que, então, quando menos espera, as ideias brotam como por si mesmas? Poderiam os fisiologistas esclarecer esse fenômeno? Acaso já procuraram resolvê-lo? Dizem eles: o cérebro produz hoje, mas amanhã não produzirá. Mas por que não produzirá amanhã? Limitam-se a dizer que é porque produziu na véspera. Segundo a Doutrina Espírita, o cérebro pode sempre produzir o que está dentro dele, razão por que o mais inepto dos homens sempre acha alguma coisa a dizer, mesmo que seja uma tolice. Mas as ideias das quais não somos os donos, não são nossas: elas nos são sugeridas. Quando a inspiração não vem é porque o inspirador não está presente ou não julga conveniente inspirar.
Parece-nos que esta explicação é melhor do que a outra. Contudo, poderíamos objetar que o cérebro, não produzindo, não deveria fatigar-se. Isso seria um erro; o cérebro não deixa de ser o canal por onde passam as ideias estranhas, o instrumento que executa. O cantor não fatiga suas cordas vocais, embora a música não seja dele? Por que, então, não se fatigaria o cérebro, ao exprimir as ideias de que está encarregado de transmitir, embora não as tenha produzido? Por certo é para dar-lhe o repouso necessário à aquisição de novas energias que o inspirador lhe impõe um intervalo.
Poder-se-ia ainda objetar que esse sistema tira ao produtor o seu mérito pessoal, porquanto atribui às suas ideias uma fonte estranha. A isso respondemos que, se as coisas assim se passassem, não saberíamos o que fazer e não veríamos muita necessidade em tirar partido do mérito alheio. Mas essa objeção não é séria: primeiro, porque não dissemos que o homem de gênio não possa haurir alguma coisa de seu próprio íntimo; em segundo lugar, porque as ideias que lhe são sugeridas se confundem com as suas próprias e nada as distingue. Assim, ele não é censurável por se atribuir tais ideias, a menos que, tendo-as recebido a título de comunicação espírita constatada, quisesse assumir a glória das mesmas, o que poderia levar os Espíritos a fazê-lo passar por algumas decepções.
Diremos, enfim, que se os Espíritos sugerem grandes ideias a um homem, dessas ideias que caracterizam o gênio, é porque o julgam capaz de compreendê-las, de elaborá-las e transmitir; não tomariam um imbecil para seu intérprete. Podemos, portanto, sentir-nos honrados de receber uma grande e bela missão, principalmente se o orgulho não a desviar do seu objetivo louvável e não nos fizer perder o seu mérito.
Quer os pensamentos seguintes sejam do Espírito pessoal do Sr. de Porry, quer tenham sido sugeridos por via mediúnica indireta, menor não será o mérito do poeta, porquanto, se a ideia primitiva lhe foi dada, jamais lhe poderão contestar a honra de tê-la elaborado.




[1] Revista Espírita – Novembro/1859 – Allan Kardec

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