sábado, 22 de abril de 2017

DUPLO SUICÍDIO, POR AMOR E POR DEVER[1]

 

É de um jornal de 13 de junho de 1862 a seguinte narrativa:
A jovem Palmyre, modista, residindo com seus pais, era dotada de aparência encantadora e de caráter afável.
Por isso, era, também, muito requestada a sua mão. Entre todos os pretendentes ela escolheu o Sr. B..., que lhe retribuía essa preferência com a mais viva das paixões. Não obstante essa afeição, por deferência aos pais, Palmyre consentiu em desposar o Sr. D..., cuja posição social se afigurava mais vantajosa àqueles, do que a do seu rival. Os Srs. B... e D... eram amigos íntimos, e posto não houvesse entre eles quaisquer relações de interesse, jamais deixaram de se avistar. O amor recíproco de B... e Palmyre, que passou a ser a Sra. D..., de modo algum se atenuara, e como se esforçassem ambos por contê-lo, aumentava-se ele de intensidade na razão direta daquele esforço. Visando extingui-lo, B... tomou o partido de se casar, e desposou, de fato, uma jovem possuidora de eminentes predicados, fazendo o possível por amá-la.
Cedo, contudo, percebeu que esse meio heroico lhe fora inútil à cura. Decorreram quatro anos sem que B... ou a Senhora D... faltassem aos seus deveres.
O que padeceram, só eles o sabem, pois D..., que estimava deveras o seu amigo, atraía-o sempre ao seu lar, insistindo para que nele ficasse quando tentava retirar-se.
Aproximados um dia por circunstâncias fortuitas e independentes da própria vontade, os dois amantes deram-se ciência do mal que os torturava e acharam que a morte era, no caso, o único remédio que se lhes deparava. Assentaram que se suicidariam juntamente, no dia seguinte, em que o Sr. D... estaria ausente de casa mais prolongadamente.
Feitos os últimos aprestos, escreveram longa e tocante missiva, explicando a causa da sua resolução: para não prevaricarem. Essa carta terminava pedindo que lhes perdoassem e, mais, para serem enterrados na mesma sepultura.
De regresso a casa, o Sr. D... encontrou-os asfixiados. Respeitou-lhes os últimos desejos, e, assim, não consentiu fossem os corpos separados no cemitério.
Sendo esta ocorrência submetida à Sociedade de Paris, como assunto de estudo, um Espírito respondeu: “Os dois amantes suicidas não vos podem responder ainda. Vejo-os imersos na perturbação e aterrorizados pela perspectiva da eternidade. As consequências morais da falta cometida lhes pesarão por migrações sucessivas, durante as quais suas almas separadas se buscarão incessantemente, sujeitas ao duplo suplício de se pressentirem e desejarem em vão.
Completa a expiação, ficarão reunidos para sempre, no seio do amor eterno. Dentro de oito dias, na próxima sessão, podereis evocá-los. Eles aqui virão sem se avistarem, porque profundas trevas os separarão por muito tempo”.
Evocação da suicida — Vedes o vosso amante, com o qual vos suicidastes?
Nada vejo, nem mesmo os Espíritos que comigo erram neste mundo. Que noite! Que noite! E que véu espesso me circunda a fronte!
Que sensação experimentastes ao despertar no outro mundo?
Singular! Tinha frio e escaldava. Tinha gelo nas veias e fogo na fronte! Coisa estranha, conjunto inaudito! Fogo e gelo pareciam consumir-me! E eu julgava que ia sucumbir uma segunda vez!...
Experimentais qualquer dor física?
Todo o meu sofrimento reside aqui, aqui...
 Que quereis dizer por aqui, aqui?
Aqui, no meu cérebro; aqui, no meu coração... É provável que, visível, o Espírito levasse a mão à cabeça e ao coração.
Acreditais na perenidade dessa situação?
Oh! sempre! sempre! Ouço às vezes risos infernais, vozes horrendas que bradam: sempre assim!
Pois bem, podemos com segurança dizer-vos que nem sempre assim será. Pelo arrependimento obtereis o perdão.
Que dizeis? Não ouço.
Repetimos que os vossos sofrimentos terão um termo, que os podereis abreviar pelo arrependimento, sendo-nos possível auxiliar-vos com a prece.
Não ouvi além de sons confusos, mais que uma palavra. Essa palavra é:  graça! Seria efetivamente graça o que pronunciastes? Falastes em graça, mas sem dúvida o fizestes à alma que por aqui passou junto de mim, pobre criança que chora e espera.
Uma senhora, presente à reunião, declarou que fizera fervorosa prece pela infeliz, o que sem dúvida a comoveu, e que de fato, mentalmente, havia implorado em seu favor a graça de Deus.
Dissestes estar em trevas e nada ouvir?
Me é permitido ouvir algumas das vossas palavras, mas o que vejo é apenas um crepe negro, no qual de vez em quando se desenha um semblante que chora.
Mas uma vez que ele aqui está sem o avistardes, nem sequer vos apercebeis da presença do vosso amante?
Ah! não me faleis dele. Devo esquecê-lo presentemente para que do crepe se extinga a imagem retratada.
Que imagem é essa?
A de um homem que sofre, e cuja existência moral sobre a Terra aniquilei por muito tempo.
Da leitura dessa narrativa logo se depreende haver neste suicídio circunstâncias atenuantes, encarado como ato heroico provocado pelo cumprimento do dever. Mas reconhece-se, também, que, contrariamente ao julgado, longa e terrível deve ser a pena dos culpados por se terem voluntariamente refugiado na morte para evitar a luta. A intenção de não faltar aos deveres era, efetivamente, honrosa, e lhes será contada mais tarde, mas o verdadeiro mérito consistiria na resistência, tendo eles procedido como o desertor que se esquiva no momento do perigo.
A pena consistirá, como se vê, em se procurarem debalde e por muito tempo, quer no mundo espiritual, quer noutras encarnações terrestres; pena que ora é agravada pela perspectiva da sua eterna duração. Essa perspectiva, aliada ao castigo, faz que lhes seja defeso ouvirem palavras de esperança que porventura lhes dirijam. Aos que acharem esta pena longa e terrível, tanto mais quanto não deverá cessar senão depois de várias encarnações, diremos que tal duração não é absoluta, mas dependente da maneira pela qual suportarem as futuras provações. Além do que, eles podem ser auxiliados pela prece. E serão assim, como todos, os árbitros do seu destino. Não será isso, ainda assim, preferível à eterna condenação, sem esperança, a que ficam irrevogavelmente submetidos segundo a doutrina da Igreja, que os considera votados ao inferno e para sempre, a ponto.


[1] O Céu e o Inferno – Capítulo V – Suicídas – Allan Kardec

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