Ser ou não ser espírita?
Ermance Dufaux
“Nem todos os que me
dizem Senhor! Senhor! Entrará no reino dos céus”.
MATEUS, 7: 21 - 23
O EVANGELHO SEGUNDO O
ESPIRITISMO – Cap. XVIII, Item 6
Que conceito afinal devemos ter
sobre “ser espírita”? Será coerente e proveitoso admitimos, junto aos roteiros
educativos da Doutrina Espírita, a figura tradicional do “religioso não praticante”?
Será que devemos oficializar
essa expressão a fim de prestigiar aqueles que ainda não se julgam espíritas?
Essas são mais algumas indagações a cogitar na formação de uma ideia mais
lúcida sobre a natureza da proposta educativa do Espiritismo para a humanidade.
Ouve-se, com certa frequência
nos ambientes doutrinários, algumas frases que expressam dúbias interpretações
sobre o que seja “ser espírita”. Companheiros que ainda não se sentem
devidamente ajustados aos parâmetros propostos pelos roteiros da codificação
dizem: “ainda não sou espírita, estou tentando”, outros, desejosos em amealhar
algum crédito de aceitação nos grupos, dizem: “quem sou eu para ser espírita?”,
“Quem sabe um dia serei”!
Com todo respeito a quaisquer
formas de manifestar sobre o assunto, não podemos deixar de alertar que somente
uma incoerência de conceitos pode ensejar ideias dessa natureza, agravadas pela
possibilidade de estarmos prestigiando o indesejável perfil do “ativista não praticante”,
aquele que adere à filosofia mas não assume em si mesmo os compromissos que ela
propõe.
“Ser espírita” é algo muito
dinâmico e pluridimensional; tentar enquadrar esse conceito em padrões rígidos
é repetir velhos procedimentos das práticas exteriores do religiosismo milenar.
Nossas vivências nesse setor levaram-nos a adotar, como “critério de validade”,
alguns parâmetros muito vagos e dogmáticos para aferir quem seria
verdadeiramente seguidor do bem e da mensagem do Cristo.
Parâmetros com os quais,
procuramos fugir das responsabilidades através da criação de artifícios para a
consciência, gerando facilidades de toda espécie através de rituais e cerimônias
que entronizaram o menor esforço nos caminhos da espiritualização humana.
Ser espírita é ser melhor hoje
do que ontem, e buscar amanhã ser melhor do que hoje, é errar menos e acertar
mais, é esforçar pelo domínio das mas inclinações e transformar-se moralmente,
conforme destaca Kardec. Nessa ótica, temos que admitir uma classificação
muitíssimo maleável para considerar quem é e quem não é espírita.
Façamos assim algumas reflexões
puramente didáticas sobre esse tema, sem qualquer pretensão de concluí-lo, mas
com intenção cristalina de “problematizar” nossos debates fraternos. Tornemos
por base o tema da transformação íntima, o qual deve sempre ser a referência
prioritária na melhor assimilação do que propôs a finalidade do Espiritismo.
Em primeira etapa, a criatura
chega à casa espírita. Em uma segunda etapa, o conhecimento doutrinário penetra
os meandros da inteligência, e na terceira fase, a mais significativa, o
Espiritismo brota de dentro dela para espraiar-se no meio onde atua, gerando
crescimento e progresso. São três etapas naturais que obedecem ao espírito de
sequência da qual ninguém escapa. Fases para as quais jamais poderemos definir
critérios de tempo e expectativa para alguém, a não ser para nós próprios.
Fases que geram responsabilidades a cada instante de contato com as verdades
imortais, mas que são determinadas, única e exclusivamente, pela consciência
individual, não sendo prudente estabelecer o que se espera desse ou daquele
coração, porque cada qual enfrentará lutas muito diversificadas nos campos da
vida interior.
Portanto, o critério moral deve
preponderar a qualquer noção pela qual essa ou aquela pessoa utilize para se
considerar espírita. Nessa ótica encontramos “o espírito da ação”, aquele
batalhador, tarefeiro, doador de bênçãos, estudioso, que se movimenta em torno
das práticas. Temos também o “espírito da reação”, aquele que reage de modo
renovado aos testes da vida em razão de estar aplicando-se afanosamente à melhoria
de si mesmo sem desejar criar rótulos e limitação indesejáveis, digamos que o
primeiro está conectado com o movimento espírita, enquanto o segundo com a
mensagem espírita. O movimento é a ação dos homens na comunidade, enquanto a
mensagem é a essência daquilo que podemos fazer para a intimidade a partir
dessa movimentação com o meio. O ideal é que, através da “escola” da ação do
bem, se consolide o aprendizado das reações harmonizadas na formação da
personalidade ajustada com a lei natural do amor.
O espírita não é reconhecido
somente nos instantes em que encanta a multidão com a sua fala ou quando
arrecada gêneros na campanha do quilo, ou ainda por sua lavra inspirada na
divulgação, ou mesmo pela tarefa de direção. Essas são ações espíritas
salutares e preparatórias para o desenvolvimento de valores na alma, mas o
serviço transformador do campo íntimo, que qualifica o perfil moral do autêntico
espírita, é medido pelo modo de reagir a circunstâncias da existência pelo qual
testemunha a intensidade dos esforços renovadores de progresso e crescimento a
que se tem ajustado. Pelas reações mensuramos se estamos ou não assimilando no mundo
íntimo as lições preciosas da espiritualização. A ação avalia nossas disposições
periféricas da melhoria, todavia somente as reações são resultados das mudanças
profundas que, somente em situações adversas ou na convivência com os contrários,
temos como aquilatar em que níveis se encontram.
Melhor seria que não aderíssemos
à ideia incoerente do espírita não praticante para não estimular as fantasias
do menor esforço que ainda são fortes tendências em nossas vivências
espirituais. A definição por um posicionamento transparente nessa questão será
uma forma de estimular nossa caminhada. Razão pela qual devemos ser claros e
sem subterfúgios ao declarar nossa posição frente aos imperativos da vivência
espírita. A costumeira expressão: “estou tentando ser espírita” na maioria das
ocasiões, é mecanismo psicológico de fuga da responsabilidade, é a criatura que
sabe que não está fazendo tanto que deveria, conforme seus ditames
conscienciais, se justificando perante si mesmo e aos outros.
Libertemo-nos das capas e
máscaras e cultivemos nas agremiações kardequianas o mais límpido diálogo sobre
nossas necessidades e qualidades nas lutas pelo aperfeiçoamento. Formaremos
assim uma “corrente de autenticidade e luz” que se reverterá em rigorosa fonte
de estímulo e consolo às angústias do crescimento espiritual.
Deixemos de lado essa
necessidade insensata de definirmos conceitos estreitos e “padrões engessados”
que não auxiliam a sermos melhores do que somos.
Aceitemos nossas imperfeições e
devotemo-nos com sinceridade e equilíbrio ao processo renovador. Estejamos
convictos de um ponto em matéria de melhoria espiritual: só faremos e seremos
aquilo que conseguimos, nem mais nem menos. O importante é que sejamos o que
somos, sem a necessidade injustificável de ficar criando rótulos para nossos
estilos ou formas de ser.
Certamente em razão disso o
baluarte dos gentios asseverou em sua carta aos Coríntios, capítulo 15,
versículos 9 e 10: “Não sou digno de ser
chamado apóstolo, mas pela graça de Deus, já sou o que sou”.
[1] Reforma Íntima
sem Martírio – Wanderley S. de
Oliveira
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