Entrevistado: Miguel Reale
Júnior - julho/2010
“A doutrina da reencarnação é a meu ver a
maior expressão da justiça. A reencarnação não é castigo, é oportunidade de
evolução”.
A afirmação é do jurista Miguel
Reale Júnior, ex-ministro da Justiça (2002); professor titular de Direito Penal
na Universidade de São Paulo (USP); Secretário de Administração do Estado de
São Paulo (governo de Mário Covas Jr. – 1995/2001); Secretário de Segurança
Pública do Estado (governo Franco Montoro – 1983/1987), entre outros títulos,
além de escritor e membro da Academia Paulista de Letras.
Com doutorado pela mesma USP em
1971, o professor Reale Júnior foi autor de texto publicado no jornal O Estado
de São Paulo, em 3 de janeiro de 2009, no qual, sob o título “Razão e
religião”, expôs as mudanças conceituais de Cesare Lombroso, cujo centenário de
desencarnação ocorre em 2009, provocadas pelo estudo do Espiritismo. Lombroso
notabilizou-se pela formulação da hipótese de que o criminoso seria fruto de um
atavismo, demonstrado em suas feições físicas.
Na entrevista, Miguel Reale
Júnior revela que frequenta reuniões mediúnicas há 30 anos; dá dados e raízes
familiares em torno do meio, outras de ordem política e fala de sua atuação no
campo do direito e especificamente da luta para levar a justiça a maior número
de brasileiros.
“Venho lutando para se dotarem
os presídios de oficinas de trabalho, a fim de que o preso possa sentir que, se
perdeu a liberdade, não perdeu a dignidade, a ser mantida pelo trabalho”, diz.
Acrescenta que:
“A evolução espiritual não
encontra terreno fértil no meio prisional, onde vigora a lei do cão, dos
chefetes de cadeia, enquanto o regulamento administrativo e a Lei de Execução
Penal são apenas para inglês ver”.
O senhor mostra em seu artigo ter uma leitura acurada dos livros de
Allan Kardec, com expressões típicas, como livre-arbítrio e determinismo. Como
e por que se deu esse interesse?
Posso dizer que tenho grande
interesse religioso. A história das religiões e as religiões em geral são
objeto de minhas indagações. O meu interesse pelo Espiritismo e por Kardec, que
conheço apenas pela rama, vem desde a juventude. Meu interesse pelo Espiritismo
nasceu pelo exemplo de meu avô materno, o engenheiro José Pucci, que realizava
sessões de mesa branca em sua casa da Avenida Paulista. Sua morte, aos 98 anos,
foi uma lição. Certa manhã, pediu para ser inteiramente despido. Logo que
estava sem roupa, sorriu e disse que iria morrer como nascera. Em seguida
faleceu.
Na troca de correspondência virtual que mantivemos, o senhor revela
“ter continuamente experiências que firmam minha convicção”. Poderia nos
aclarar quais são essas experiências?
Há 30 anos frequento
regularmente a casa de uma senhora já com seus 80 anos, na Mooca,
extraordinária pessoa e médium que recebe Espírito integrante de corrente
liderada pelo Espírito de um jovem tenente da Força Pública de S. Paulo.
Tenho por padrinho espiritual a
figura de eminente e combativo homem público e jurista brasileiro falecido no
primeiro quartel do século passado.
Tenho tido experiências
reveladoras e mesmo comoventes.
Ademais, recebi, anos atrás, de
amigo penalista de Curitiba o aviso para se possível visitar a Instituição Lar
Escola Doutor Leocádio José Correia, do Dr. Maury Rodrigues da Cruz, presidente
da Sociedade Brasileira de Estudos Espíritas. Lá estive em três oportunidades,
tendo tido a possibilidade de ser atendido pelo médium Dr. Maury e me aconselhado
com o Dr. Leocádio.
Em Brasília, estando à frente do
Ministério da Justiça, estive no centro espírita no qual atendia o ministro
general Cardoso[2] ,
que como médium recebia o Espírito de um médico. O general Cardoso, quando de
minha saída, em vista do recuo do presidente quanto à intervenção no Estado do
Espírito Santo[3],
prestou-me aberta solidariedade.
O senhor tem defendido uma democratização da justiça, de modo a fazê-la
chegar a amplas camadas da população. Como se trata de um princípio de
igualdade, quais os principais obstáculos para se avançar mais rapidamente
nesse objetivo?
A maior dificuldade está na
falta de sensibilidade e de vontade política. Os caminhos para uma Política
Criminal de cunho social estão traçados. Sugerimos vários programas em nosso
Diagnóstico do Sistema Criminal Brasileiro elaborado a pedido do Ministério da
Justiça em 2000. Quando no ministério, em minha rápida passagem em 2002, deixei
prontos para serem implementadas iniciativas como criação de plantões sociais
nas delegacias de polícia, com a presença de estagiários de psicologia e de
serviço social. O programa seria financiado pela CNI (Confederação Nacional da
Indústria). Saí e nada foi feito pelo meu sucessor, nem por Márcio Thomaz
Bastos, ao qual dei toda a indicação do programa, denominado Indústria da Paz.
Outro programa consistia na
união de esforços dos ministérios da área social, na transformação das escolas
em centros de convivência, nas regiões pobres das grandes cidades. Houve por
nossa iniciativa a primeira reunião dos ministros da área social. Saíram
entusiasmados. Logo depois deixei o ministério e a ideia morreu.
Hoje me dedico à assistência às
mulheres vítimas de violência sexual. O nosso escritório dava assistência
jurídica às mulheres atendidas pela Casa da Mulher, instituição da Escola
Paulista de Medicina. A Casa agora fechou por serem encaminhadas as vítimas
exclusivamente ao hospital Pérola Bayton.
Tentamos apoio do governo
federal para assistir às 200 mulheres que mensalmente se apresentam no
hospital. Foi considerado irrelevante o programa.
Muito pode ser feito com pouco
dinheiro. Mas, repito, falta vontade política, até mesmo para o crescimento e
fortalecimento da Defensoria Pública.
O sistema judiciário e prisional carrega ainda a tendência da simples
aplicação da penalidade ao agente do crime. Sob os aspectos social e
espiritual, aqui no sentido espírita, aberto ao crescimento do Espírito, a
punição sem educação resolve o problema da Sociedade?
Como um dos autores da Lei de
Execução Penal e presidente da comissão que elaborou uma proposta de
modernização da lei, venho lutando para se dotar os presídios de oficinas de
trabalho a fim de que o preso possa sentir que, se perdeu a liberdade, não
perdeu a dignidade, a ser mantida pelo trabalho. Outro ponto essencial e muito
descurado é a assistência ao egresso. Em uma semana em liberdade, sem acolhida
e auxílio, desfaz-se todo o possível esforço de ensino, trabalho, e de eventual
assistência social, psicológica ou religiosa. Daí ser importante a ação dos
patronatos, também prevista na Lei de Execução Penal.
A punição não promove o
crescimento e a mudança, que devem partir do próprio condenado, mas desde que
lhe sejam abertos os caminhos para sua decisão de palmilhá-los. A evolução
espiritual não encontra terreno fértil no meio prisional, onde vigora a lei do
cão, dos chefetes de cadeia, enquanto o regulamento administrativo e a Lei de
Execução Penal são apenas “para inglês ver”.
As conclusões de Cesare Lombroso, na segunda fase de sua vida,
praticamente desfazendo o peso do atavismo no criminoso, têm sido consideradas
nos julgamentos forenses?
Os resquícios do critério de
periculosidade foram em grande parte eliminados na Nova Parte Geral do Código
Penal, de cuja elaboração participei.
O Código Penal de 1.969,
revogado antes de entrar em vigor, trazia a figura do criminoso por tendência.
Mantém-se a figura no Código Penal Militar, mas na prática sem efetividade. A
periculosidade, no entanto, retornou com a criação do Regime Disciplinar
Diferenciado, que enclausura o condenado e constitui um regime enlouquecedor.
Os aspectos antropológicos, no entanto, não são mais levados em conta. Faz-se
apenas um juízo de periculosidade real consistente na probabilidade da prática
de delitos no futuro, em uma avaliação livre com elevada discricionariedade.
“Nos tempos de barbárie são os mais fortes que fazem as leis e eles as
faziam para si. (…) As leis humanas são tanto menos instáveis quanto mais se
aproximam da verdadeira justiça, isto é, à medida que são feitas para todos e
se identificam com a lei natural” (O
Livro dos Espíritos). À luz do direito contemporâneo, o senhor identifica
progressos na legislação ou ainda há muito caminho a ser percorrido?
No campo penal há o que se
denomina “expansionismo penal”, criminalizando-se condutas sem maior relevo,
pois o Direito Penal não mais visa proteger bens jurídicos, buscando apenas
determinar condutas de modo simbólico, transformando-se em um direito de
ordenação, despreocupado em se limitar à tutela de valores fundamentais. A
desobediência a regras de interesse da Administração passa a ser crime.
Vulgariza-se a incriminação em uma sociedade sem controles informais (família,
escola, igreja, sindicato, vizinhança). O Direito Penal passa a ser a tábua de
salvação de uma sociedade sem exemplos, sem limites. O Direito Penal regride.
A 3ª Parte de O Livro dos
Espíritos, enfocando as chamadas Leis Divinas ou Naturais, é apontada por
pensadores espíritas como uma excelente proposta de jusnaturalismo[4],
onde Allan Kardec amplia o conceito de Direito Natural dando-lhe uma dimensão
transcendente, a partir do pressuposto da imortalidade do Espírito. Até que
ponto lhe parece que o aprofundamento dessa reflexão poderia enriquecer o
estudo da Filosofia do Direito, nos dias de hoje?
Tenho uma posição historicista
dos direitos humanos, mas não relativista. Pode-se dizer com Kardec: “A verdade
é como a luz: o homem precisa habituar-se a ela pouco a pouco”. Os Direitos do
Homem, desde 1.789, foram ganhando foro de verdade. Parece hoje que são
revelados, mas foram conquistados e se inserindo em nossa consciência em um
processo evolutivo. A questão atual não é falta de declaração dos direitos,
constantes tão claramente do art. 5° de nossa Constituição, e sim de dar
efetividade aos mesmos. Acrescidos no processo histórico à consciência dos
homens transformaram-se na expressão de meu pai em “invariantes axiológicas”.
Quando Allan Kardec indagou de seus interlocutores espirituais qual
seria o principal fundamento da teoria da reencarnação, estes lhe responderam
ser a Justiça. Admite o senhor que a tese da reencarnação, hoje expressamente
repelida pelo Cristianismo, pode melhor se adequar aos anseios humanos da
efetiva concretização da justiça e trazer uma visão menos catastrófica acerca
do futuro da sociedade humana?
A doutrina da reencarnação é a
meu ver a maior expressão da justiça. A reencarnação não é castigo, é
oportunidade de evolução. Seria injusta a condenação eterna por atos praticados
em uma vida plena de carências. Dar ao Espírito a possibilidade de
aprimoramento em situações diversas e experiências múltiplas me parece uma
justa busca de justiça.
O senhor foi transparente no trato da colaboração espírita, enquanto
coadjuvante no diagnóstico do criminoso. Não receia, com isso, ser vítima do
preconceito?
Nesta altura da vida, com 40
anos de docência, não temo preconceitos. Como disse, a Sociedade é adepta de
largo sincretismo. Isto não impede manifestações raivosas, como algumas que
recebi de pessoas ligadas à Igreja.
[2] Referência ao general Alberto Cardoso, ex-ministro
chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República,
governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2003).
[3] A intervenção foi solicitada por unanimidade pelo
Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, com anúncio em contrário, do
procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, por orientação do chefe do
governo. O motivo do pedido de intervenção visava o enfrentamento ao chamado
crime organizado no Estado do Espírito Santo. Com a negativa, Miguel Reale
Júnior pediu exoneração, após cerca de quatro meses, do cargo de Ministro da
Justiça.
[4] O mesmo que direito natural (em latim lex naturalis) ou
jusnaturalismo. Trata-se de uma teoria que postula a existência de um direito
cujo conteúdo é estabelecido pela Natureza e, portanto, é válido em qualquer
lugar.
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