Lacordaire - Constantina,
1863
Venho, meus irmãos, meus amigos,
trazer-vos meu humilde auxílio, para ajudar-vos a marchar corajosamente na vida
de aperfeiçoamento em que entrastes. Somos devedores uns dos outros, somente
por uma união sincera e fraternal, entre os Espíritos e os encarnados, a
regeneração será possível.
Vosso apego aos bens terrenos é
um dos mais fortes entraves ao vosso adiantamento moral e espiritual. Em
virtude desse desejo de aquisição, destruís as vossas faculdades afetivas,
voltando-as inteiramente para as coisas materiais. Sede sinceros: a fortuna
proporciona uma felicidade sem manchas? Quando os vossos cofres estão cheios,
não há sempre um vazio em vossos corações? No fundo dessa cesta de flores, não
há sempre um réptil oculto?
Compreendo que um homem que
conquistou a fortuna, por um trabalho constante e honrado, experimente por isso
uma satisfação, aliás, muito justa. Mas, um apego que absorve os demais
sentimentos e paralisa os impulsos do coração, há uma distância, igual e que
vai da sórdida avareza à prodigalidade exagerada, dois vícios entre os quais
Deus colocou a caridade, santa e salutar virtude, que ensina o rico a dar sem
ostentação, para que o pobre receba sem humilhação.
Que a fortuna provenha da vossa
família, ou que a tenhais ganho pelo vosso trabalho, há uma coisa que jamais
deveis esquecer: é que tudo vem de Deus, e tudo a Deus retorna. Nada vos
pertence na Terra, nem sequer o vosso corpo: a morte vos despoja dele, como de
todos os bens materiais. Sois depositários e não proprietários. Não vos
enganeis sobre isto. Deus vos emprestou e tereis que restituir, mas ele vos
empresta sob a condição de que, pelo menos o supérfluo, reverta para aqueles
que não possuem o necessário.
Um dos vossos amigos vos
empresta uma soma. Por menos honesto que sejais, tereis o escrúpulo de pagá-la,
e lhe ficareis agradecido. Pois bem: eis a posição de todo homem rico! Deus é o
amigo celeste que lhe emprestou a riqueza, não lhe pedindo mais do que o amor e
o reconhecimento, mas exigindo, por sua vez, que o rico dê aos pobres, que são
também seus filhos, tanto quanto ele.
O bem que Deus vos confiou
excita em vossos corações uma ardente e desvairada cobiça. Já refletistes,
quando vos apegais loucamente a uma fortuna perecível, e tão passageira como
vós mesmos, que um dia tereis de prestar contas ao Senhor daquilo que ele vos
concedeu?
Esqueceis que, pela riqueza,
fostes investidos na sagrada condição de ministros da caridade na Terra, para
serdes os seus dispensadores inteligentes? O que sereis, pois, quando usais
somente em vosso proveito o que vos foi confiado, senão depositários infiéis?
Que resulta desse esquecimento voluntário dos vossos deveres? A morte
inflexível, inexorável, virá rasgar o véu sob o qual vos escondeis, forçando-vos
a prestar contas ao amigo que vos favoreceu, e que nesse momento reveste aos
vossos olhos a toga de juiz.
É em vão que procurais
iludir-vos na vida terrena, colorindo com o nome de virtude o que
frequentemente é apenas egoísmo. É em vão que chamais economia e previdência
aquilo que é simples cupidez e avareza, ou generosidade o que não passa de
prodigalidade a vosso proveito. Um pai de família, por exemplo, deixando de
fazer a caridade, economizará, amontoará ouro sobre ouro, e tudo isso, diz ele,
para deixar a seus filhos o máximo de bens possível, evitando-lhes a queda na
miséria. É bastante justo e bem paternal, convenhamos, e não se pode
censurá-lo. Mas será sempre esse o único objetivo que o orienta? Não é antes, e
o mais das vezes, uma desculpa para a própria consciência, a fim de justificar
aos seus próprios olhos e aos olhos do mundo o seu apego pessoal aos bens
terrenos? Não obstante, admito que o amor paterno seja o seu único móvel: será
esse um motivo para fazê-lo esquecer dos seus irmãos perante Deus? Quando ele
mesmo já vive no supérfluo, deixará os seus filhos na miséria, simplesmente por
deixar-lhes um pouco menos desse supérfluo? Com isso, não estará lhes dando uma
lição de egoísmo, que lhes endurecerá o coração? Não será asfixiar neles o amor
do próximo? Pais e mães, estais num grande erro, se acreditais que com isso
aumentais o afeto de vossos filhos por vós: ensinando-lhes a ser egoístas para
com os outros, ensinai- lhes a sê-lo para vós mesmos.
Quando um homem trabalhou
bastante, e com o suor do seu rosto acumulou bens, costuma dizer que o dinheiro
ganho a gente sabe quanto custou: nada é mais verdadeiro. Pois bem: que esse
homem, confessando conhecer todo o valor do dinheiro, faça a caridade segundo
as suas posses, e terá mais mérito do que outro que, nascido na abundância,
ignora as rudes fadigas do trabalho. Mas, se esse homem que recorda suas penas,
seus esforços, se fizer egoísta, duro para com os pobres, será muito mais
culpado que os outros. Porque, quanto mais conhecemos por nós mesmos as dores
ocultas da miséria, mais devemos interessar-nos pelo socorro aos outros.
Infelizmente, o homem de posses
carrega sempre consigo outro sentimento, tão forte como o apego à fortuna: é o
orgulho. Não é raro ver-se o novo rico aturdir o infeliz que lhe pede
assistência, com a história dos seus trabalhos e das suas habilidades, em vez
de ajudá-lo, e terminar por dizer: "Faça como eu fiz!" Segundo ele, a
bondade de Deus não influiu em nada na sua fortuna; somente a ele cabe o
mérito. Seu orgulho põe-lhe uma venda nos olhos e um tampão nos ouvidos. Não
compreende que, com toda a sua inteligência e sua capacidade, Deus pode
derrubá-lo com uma só palavra.
Esperdiçar a fortuna não é
desapegar-se dos bens terrenos, é descuido e indiferença. O homem, como
depositário dos bens que possui, não tem o direito de dilapidá-los ou de
confiscá-los para o seu proveito. A prodigalidade não é generosidade, mas quase
sempre uma forma de egoísmo. Aquele que joga ouro a mancheias na satisfação de
uma fantasia, não dará um centavo para prestar um auxílio. O desapego dos bens
terrenos consiste em considerar a fortuna no seu justo valor, em saber
servir-se dela para os outros e não apenas para si mesmo, a não sacrificar por
ela os interesses da vida futura, em perdê-la sem reclamar, se aprouver a Deus
retirá-la. Se, por imprevistos revezes, vos tornardes como Jô, dizei como ele:
"Senhor, vós me destes, vós me tirastes; que a Vossa vontade seja
feita". Eis o verdadeiro desprendimento. Sede submissos desde logo, tendo
fé naquele que, assim como vos deu e tirou, pode devolver-vos. Resisti
corajosamente ao abatimento, ao desespero, que paralisaria as vossas forças.
Nunca vos esqueçais, quando Deus vos desferir um golpe, que ao lado da maior
prova ele coloca sempre uma consolação. Mas pensai, sobretudo, que há bens
infinitamente mais preciosos que os da Terra, e esse pensamento vos ajudará a
desprender-vos deles. Quanto menos apreço damos a uma coisa, somos menos
sensíveis à sua perda. O homem que se apega aos bens terrenos é como a criança
que só vê o momento presente; o que se desprende é como o adulto, que conhece
coisas mais importantes, porque compreende estas palavras proféticas do
Salvador: meu reino não é deste mundo.
O Senhor não ordena que atiremos
fora o que possuímos, para nos tornarmos mendigos voluntários, porque então nos
transformaríamos numa carga para a sociedade. Agir dessa maneira seria
compreender mal os desprendimentos dos bens terrenos. É um egoísmo de outra
espécie, porque equivale a fugir à responsabilidade que a fortuna faz pesar
sobre aquele que a possui. Deus a dá a quem lhe parece bom para administrá-la
em proveito de todos. O rico tem, portanto, uma missão, que pode tornar bela e
proveitosa para si mesmo. Rejeitar a fortuna, quando Deus vo-la dá, é renunciar
aos benefícios do bem que se pode fazer, ao administrá-la com sabedoria. Saber
passar sem ela, quando não a temos; saber empregá-la utilmente, quando a
recebemos; saber sacrificá-la, quando necessário; isto é agir segundo os desígnios
do Senhor. Que diga, portanto, aquele que recebe o que o mundo chama uma boa
fortuna: "Meu Deus, enviastes-me um novo encargo; dai-me a força de o
desempenhar segundo a vossa vontade!"
Eis, meus amigos, o que eu
queria ensinar-vos, a respeito do desprendimento dos bens terrenos. Resumirei
dizendo: aprendei a contentar-vos com pouco. Se sois pobres, não invejeis os
ricos, porque a fortuna não é necessária à felicidade. Se sois ricos, não
esqueçais de que os vossos bens vos foram confiados, e que deveis justificar o
seu emprego, como numa prestação de contas de tutela. Não sejais depositários
infiéis, fazendo-os servir à satisfação do vosso orgulho e da vossa
sensualidade. Não vos julgueis no direito de dispor deles unicamente para vós,
pois não os recebestes como doação, mas como empréstimo. Se não sabeis pagar,
não tendes o direito de pedir, e lembrai-vos de que dar aos pobres é saldar a
dívida contraída para com Deus.
[1] KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. FEB.
Capítulo 16. Item 14.
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