Allan Kardec
Em nosso último número
apresentamos o quadro
da vida espírita em conjunto; seguimos os Espíritos desde o instante em que
deixam o corpo terreno e fizemos um rápido esboço de suas ocupações.
Propomo-nos hoje mostrá-los em ação, reunindo num mesmo quadro diversas cenas
íntimas, cujo testemunho nos foi dado através das comunicações. As numerosas
conversas familiares de além-túmulo, já publicadas nesta revista, podem dar uma
ideia da situação dos Espíritos, conforme o seu grau de adiantamento, mas aqui
há um caráter especial de atividade, que nos faz conhecer ainda melhor o papel
que, mal grado nosso, representam entre nós. O tema do estudo, cujas peripécias
vamos relatar, se nos ofereceu espontaneamente; apresenta interesse maior
porque tem, como herói principal, não um desses Espíritos superiores que
habitam mundos desconhecidos, mas um desses que, por sua própria natureza,
ainda estão presos à Terra, um contemporâneo que nos deu provas manifestas de
sua identidade.
É entre nós que a ação se passa
e cada um de nós nela representa um papel.
Além disso, esse estudo dos
costumes espíritas tem de particular o fato de nos mostrar a progressão dos
Espíritos na erraticidade e como podemos concorrer para a sua educação.
Um de nossos amigos, após longas
experiências infrutíferas, das quais triunfou a sua paciência, de repente tornou-se
excelente médium escrevente e audiente. Certa vez ele estava ocupado a
psicografar com outro médium, seu amigo, quando, a uma pergunta dirigida a um
Espírito, obteve resposta bastante estranha e pouco séria, na qual não
reconhecia o caráter do Espírito evocado. Tendo interpelado o autor da
resposta, depois de o haver intimado em nome de Deus para se dar a conhecer,
aquele assinou Pierre Le Flamand, nome completamente desconhecido do
médium. Estabeleceu-se, então, entre ambos, e mais tarde entre nós e esse
Espírito, uma série de conversas que passaremos a relatar.
Primeira Conversa
1. Quem és? Não conheço ninguém com esse nome.
– Um de teus antigos camaradas de colégio.
2. Não tenho a menor lembrança.
– Lembra-te da surra que um dia levaste?
3. É possível; entre escolares isso acontece algumas vezes.
Realmente, lembro-me de algo assim, mas também me recordo de ter pago com a
mesma moeda.
– Era eu; mas não te quero mal.
4. Obrigado. Tanto quanto me recordo, tu eras um biltre
bastante mau.
– Eis tua memória que volta. Enquanto vivi não mudei. Eu
tinha a cabeça dura, mas no fundo não era mau; batia-me com o primeiro que
aparecesse: em mim isso era uma necessidade. Depois, ao dar as costas, já não
pensava em nada.
5. Quando e com que idade morreste?
– Há quinze anos; eu tinha cerca de vinte anos.
6. De que faleceste?
– Uma leviandade de rapaz... consequência de minha falta
de juízo...
7. Ainda tens família?
– Perdi meus pais há muito tempo; morava com um tio, meu
único parente...; se fores a Cambrai promete procura-lo; é um bravo homem, a
quem muito aprecio, embora me tenha tratado duramente; mas eu o merecia.
8. Ele tem o teu mesmo nome?
– Não; em Cambrai não há mais ninguém com o meu nome; ele
se chama W...; mora na rua... no...; verás que sou eu mesmo que te falo.
Observação – O fato foi verificado pelo
próprio médium numa viagem que empreendeu algum tempo depois. Encontrou o Sr.
W... no endereço indicado; disse-lhe este que realmente havia tido um sobrinho
com esse nome, bastante estouvado e inconveniente, falecido em 1844, pouco
tempo depois de ter sido sorteado para o serviço militar. Esta circunstância
não havia sido indicada pelo Espírito; mais tarde ele o fez espontaneamente.
Veremos em que ocasião.
9. Por obra de que acaso vieste à minha casa?
– Por acaso, se quiseres; creio, porém, que foi o meu bom
gênio que me impeliu a ti, por me parecer que só teremos a ganhar com o
restabelecimento de nossas relações... Eu estava aqui ao lado, na casa do teu
vizinho, ocupado em olhar os quadros... nada de retratos de igreja...; de
repente eu te avistei e vim. Percebi que estavas ocupado, a conversar com outro
Espírito, e quis intrometer-me na conversa.
10. Mas por que respondeste às perguntas que eu fazia a
outro Espírito? Isso não parece provir de um bom camarada.
– Encontrava-me na presença de um Espírito sério e que
não parecia disposto a responder; respondendo em seu lugar, eu imaginava que
ele soltasse a língua, mas não tive êxito. Não dizendo a verdade, eu queria
obrigá-lo a falar.
11. Isto não é certo, pois poderia ter resultado em coisas
desagradáveis, caso eu não tivesse percebido o embuste.
– Haverias de o saber sempre, mais cedo ou mais tarde.
12. Dize-me mais ou menos como entraste aqui.
– Bela pergunta! Acaso temos necessidade de puxar o
cordão da campainha?
13. Podes, então, ir a toda parte, entrar em qualquer lugar?
– Claro!... E sem me fazer anunciar! Não somos Espíritos
a troco de nada.
14. Entretanto eu julgava que certos Espíritos não tivessem
o poder de penetrar em todas as reuniões.
– Acreditas, por acaso, que teu quarto é um santuário e
que eu seja indigno de nele penetrar?
15. Responde com seriedade à minha pergunta e deixa de lado
as graçolas de mau gosto. Vês que não tenho humor para suportá-las e que os
Espíritos mistificadores são mal recebidos em minha casa.
– É verdade que há reuniões onde Espíritos tratantes,
como nós outros, não podem entrar; mas são os Espíritos superiores que nos
impedem e não os homens. Aliás, quando vamos a algum lugar, sabemos muito bem
manter-nos calados e afastados, se necessário. Escutamos e, quando nos
aborrecemos, vamo-nos embora... Ah!... sim! Parece que não estás satisfeito com
a minha visita.
16. É que não recebo de bom grado o primeiro que aparece e,
francamente, não fiquei satisfeito por vires perturbar uma conversa séria.
– Não te zangues..., não desejo perturbar-te... sou sempre
um bom rapaz...; de outra vez far-me-ei anunciar.
17. Lá se vão quinze anos que estás morto...
– Entendamo-nos. Quem está morto é meu corpo; mas eu, que
te falo, não estou morto.
Observação – Muitas vezes, mesmo entre os
Espíritos levianos e brincalhões, encontram-se palavras de grande profundidade.
Esse eu que não está morto é absolutamente filosófico.
18. É bem assim que compreendo. A propósito, conta-me uma
coisa: tal como agora te encontras, podes ver-me com tanta clareza como se
estivesses em teu corpo?
– Vejo-te ainda melhor; eu era míope; foi por isso que
quis me livrar do serviço militar.
19. Lá se vão, dizia eu, quinze anos que estás morto e me
pareces tão estouvado quanto antes; não avançaste, pois?
– Sou o que era antes: nem melhor, nem pior.
20. Como passas o tempo?
– Não tenho outras ocupações, a não ser divertir-me e
informar-me dos acontecimentos que podem influenciar o meu destino. Vejo muito.
Passo parte do tempo ora em casa de amigos, ora no teatro... Por vezes
surpreendo coisas muito engraçadas... Se as pessoas soubessem que têm
testemunhas quando pensam estar sós!... Enfim, procedo de maneira que o tempo
me seja o menos pesado possível... Dizer quanto tempo isso haverá de durar, eu
não o saberia e, entretanto, há algum tempo que vivo assim... Tens explicações
convincentes para isso?
21. Em suma, és mais feliz do que eras quando estavas vivo?
– Não.
22. O que te falta? Não tens necessidade de coisa alguma;
não sofres mais; não temes ser arruinado; vais a toda parte e tudo vês; não
temes as preocupações, nem as doenças, nem as enfermidades da velhice. Não será
isto uma existência feliz?
– Falta-me a realidade dos prazeres; não sou bastante
evoluído para fruir uma felicidade moral; desejo tudo que vejo, e é isso que me
tortura; aborreço-me e procuro matar o tempo como posso!... Mas, até quando?...
Experimento um mal-estar que não posso definir...; preferia sofrer as misérias
da vida a esta ansiedade que me oprime.
Observação – Não está aqui um quadro eloquente
dos sofrimentos morais dos Espíritos inferiores? Invejar tudo quanto veem; ter
os mesmos desejos e realmente nada desfrutar, deve ser verdadeira tortura.
23. Disseste que ias ver os amigos; não será uma distração?
– Meus amigos não percebem que estou com eles; aliás, nem
mesmo pensam em mim. Isso me faz mal.
24. Não tens amigos entre os Espíritos?
– Estouvados e tratantes como eu, que como eu se
aborrecem. Sua companhia não é muito agradável; aqueles que são felizes e
raciocinam afastam-se de mim.
25. Pobre rapaz! Eu te lamento e, se te pudesse ser útil, o
faria com prazer.
– Se soubesses o quanto essas palavras me fazem bem! É a
primeira vez que as ouço.
26. Não poderias encontrar ocasião de ver e ouvir coisas
boas e úteis que contribuiriam para o teu progresso?
– Sim, mas para isso é necessário que eu saiba aproveitar
as lições. Confesso que prefiro assistir às cenas de amor e de deboche, que não
têm influenciado o meu Espírito para o bem. Antes de entrar em tua casa, lá me
achava a considerar quadros que despertavam em mim certas ideias...; mas,
deixemos isso de lado... No entanto eu soube resistir à vontade de pedir para reencarnar,
a fim de desfrutar os prazeres de que tanto abusei. Vejo, agora, quanto teria
errado. Vindo à tua casa, sinto que fiz bem.
27. Muito bem! Espero, futuramente, que me dês o prazer,
caso queiras a minha amizade, de não mais concentrar a atenção nesses quadros
que podem despertar más ideias e que, ao contrário, possas pensar naquilo que
aqui ouvirás de bom e de útil para ti. Tu te sentirás bem, podes crer.
– Se esse é o teu pensamento, também será o meu.
28. Quando vais ao teatro experimentas as mesmas emoções que
sentias quando vivo?
– Várias emoções diferentes; a princípio, aquelas; depois
me misturo nas conversas... e escuto coisas singulares.
29. Qual o teu teatro predileto?
– “Les Variétés”. Muitas vezes acontece que eu os veja
todos na mesma noite. Também vou aos bailes e às reuniões onde há divertimento.
30. De modo que, enquanto te divertes, te instruis, visto ser
impossível observar bastante na tua posição.
– Sim, mas o que mais aprecio são certos colóquios. É
realmente curioso ver a manobra de algumas criaturas, sobretudo das que ainda
querem passar por jovens. Em toda essa lengalenga ninguém diz a verdade: assim
como o rosto, o coração se maquia, de modo que ninguém se entende. Acerca disso
realizei um estudo dos costumes.
31. Pois bem! Não vês que poderíamos ter boas conversas,
como esta, da qual ambos podemos tirar proveito?
– Sempre; como dizes, a princípio para ti; depois, para
mim. Tens ocupações necessárias ao teu corpo; quanto a mim, posso dar todos os
passos possíveis para instruir-me sem prejudicar a minha existência.
32. Já que é assim, continuarás as tuas observações ou, como
dizes, teus estudos sobre os costumes; até o momento não os aproveitaste muito.
É preciso que eles sirvam ao teu esclarecimento e, para isso, é necessário que
o faças com um objetivo sério, e não como diversão e para matar o tempo.
Dir-me-ás o que viste, raciocinaremos e tiraremos as conclusões para a nossa
mútua instrução.
– Será realmente bastante interessante. Sim, com certeza
estou a teu serviço.
33. Não é tudo. Gostaria de proporcionar-te ocasião para
praticares uma boa ação. Queres?
– De todo o coração! Dir-se-á que poderei servir para
alguma coisa. Fala-me logo o que é preciso que eu faça.
34. Nada de pressa! Não confio missões tão delicadas assim
àqueles a quem não tenho confiança. Tens boa vontade, não há dúvida; mas terás
a perseverança necessária? Eis a questão. É preciso, pois, que eu te ensine a
te conheceres melhor, para saber de que és capaz e até que ponto posso contar
contigo. Conversaremos sobre isso uma outra vez.
– Tu o verás.
35. Adeus, pois, por hoje.
– Até breve.
Segunda Conversa
36. Então, meu caro Pierre, refletiste seriamente naquilo
que conversamos o outro dia?
– Mais seriamente do que imaginas, pois faço questão de
te provar que valho mais do que pareço. Sinto-me mais à vontade, desde que
tenho algo a fazer. Agora tenho um objetivo e não mais me aborreço.
37. Falei de ti ao Sr. Allan Kardec; comuniquei-lhe nossas
conversas e ele ficou muito contente; deseja entrar em contato contigo.
– Já o sei; estive em sua casa.
38. Quem te conduziu até lá?
– Teu pensamento. Voltei aqui depois daquele dia. Vi que
querias falar-lhe a meu respeito e disse a mim mesmo: Vamos lá primeiro;
provavelmente encontrarei material de observação e, quem sabe, uma ocasião de
ser útil.
39. Gosto de ver-te com esses pensamentos sérios. Que impressão
tiveste da visita?
– Oh! Muito grande. Ali aprendi coisas que nem suspeitava
e que me esclareceram quanto ao futuro. É como uma luz que se fizesse em mim.
Agora compreendo tudo quanto tenho a ganhar no meu aperfeiçoamento... É
preciso...; é preciso.
40. Posso, sem cometer indiscrição, perguntar-te o que viste
na casa dele?
– Certamente. Lá, como na casa de outras pessoas, vi
tantas coisas que não falarei senão quando quiser... ou quando puder.
41. O que queres dizer com isso? Não podes dizer tudo quanto
queres?
– Não. Desde alguns dias vejo um Espírito que parece
seguir-me por toda parte, que me impele ou me contém; dir-se-ia que me dirige;
sinto um impulso, do qual não me dou conta e ao qual obedeço, mau grado meu. Se
quero dizer ou fazer algo inconveniente, posta-se à minha frente..., olha-me...
e eu me calo... e me detenho.
42. Quem é esse Espírito?
– Nada sei; mas ele me domina.
43. Por que não lhe perguntas?
– Não tenho coragem. Quando lhe quero falar ele me olha e
sinto a língua travada.
Observação – É evidente que aqui a palavra língua
é uma figura, já que os Espíritos não possuem linguagem articulada.
44. Deves ver se é bom ou mau.
– Deve ser bom, pois que me impede de dizer tolices; mas
é severo... Por vezes tem um ar irritado; doutras, parece olhar-me com
ternura... Veio-me a ideia de que poderia ser o Espírito de meu pai, que não
quer se dar a conhecer.
45. Isso parece plausível. Ele não deve estar muito satisfeito
contigo. Ouve-me bem. Vou dar-te um conselho a respeito. Sabemos que os pais
têm por missão educar os filhos e encaminhá-los na senda do bem. Consequentemente,
são responsáveis pelo bem ou pelo mal que eles praticam, conforme a educação
que receberam, com o que sofrem ou são felizes no mundo dos Espíritos. A
conduta dos filhos, pois, influi até certo ponto sobre a felicidade ou a
infelicidade dos pais após a morte.
Como tua conduta na Terra não foi muito edificante, e como
desde a tua morte não fizeste grande coisa de bom, teu pai deve sofrer por
isso, caso tenha algo a censurar-se por não te haver guiado bem...
– Se não me tornei um homem de bem, não foi por me ter
faltado, mais de uma vez, a corrigenda necessária.
46. Talvez não tivesse sido a melhor maneira de corrigir-te;
seja como for, sua afeição por ti é sempre a mesma e ele te prova
aproximando-se de ti, se de fato é ele, como presumo. Deve sentir-se feliz com
a tua mudança, o que explica a alternância de ternura e de irritação. Quer
auxiliar-te no bom caminho em que acabas de entrar e, quando te vir realmente
empenhado nisso, estou certo de que se dará a conhecer. Desse modo, trabalhando
por tua própria felicidade, trabalharás pela dele. Nem mesmo me surpreenderia
caso tivesse sido ele próprio quem te impeliu a vir à minha casa. Se não o fez
antes foi porque quis dar-te o tempo de compreender o vazio de tua existência
sem realizações e sentir-lhes os dissabores.
– Obrigado! Obrigado...! Ele lá está, atrás de ti...
Pôs a mão na tua cabeça, como se te ditasse as palavras que
acabas de proferir.
47. Voltemos ao Sr. Allan Kardec.
– Fui à sua casa anteontem à noite. Estava ocupado,
escrevendo em seu gabinete..., trabalhando numa nova obra em preparo... Ah! Ele
cuida bem de nós, pobres Espíritos; se não nos conhecem não é por sua culpa.
48. Estava só?
– Só, sim, isto é, não havia ninguém com ele; mas havia
ao seu redor uma vintena de Espíritos que murmuravam acima de sua cabeça.
49. Ele os escutava?
– Ouvia-os tão bem que olhava para todos os lados de onde
provinha o ruído, para ver se não eram milhares de moscas; depois abriu a
janela para olhar se não seria o vento ou a chuva.
Observação – O fato era absolutamente exato.
50. Entre tantos Espíritos reconheceste algum?
– Não; não são aqueles com quem me reunia. Eu tinha a
impressão de ser um intruso e pus-me a um canto a fim de observar.
51. Esses Espíritos pareciam estar interessados por aquilo
que ele escrevia?
– Creio que sim. Dois ou três, sobretudo, sopravam o que
ele escrevia e davam a impressão de ouvir a opinião dos outros; quanto a
Kardec, acreditava piamente que as ideias eram suas, parecendo satisfeito com
isso.
52. Foi tudo o que viste?
– Depois chegaram oito ou dez pessoas que se reuniram num
outro aposento com Kardec. Puseram-se a conversar; faziam perguntas; ele
respondia e explicava.
53. Conheces as pessoas que lá estavam?
– Não; sei apenas que havia pessoas importantes, pois a
uma deles se referiam sempre como príncipe, e a outra como sr. duque. Os
Espíritos também chegaram em massa; havia pelo menos uma centena, dos quais
vários tinham sobre a cabeça uma espécie de coroa de fogo. Os outros se
mantinham afastados e ouviam.
54. E tu, que fazias?
– Eu também ouvia, mas sobretudo observava. Veio-me,
então, a ideia de fazer uma artimanha para ser útil a Kardec; dir-te-ei mais
tarde o que era, quanto eu tiver alcançado êxito. Então deixei a reunião e,
vagando pelas ruas, divertia-me em frente às lojas, misturando-me com a
multidão.
55. De sorte que, em vez de ir aos teus negócios, perdias o
tempo?
– Não o perdi, pois que impedi um roubo.
56. Ah! Tu te metes também em assuntos da polícia?
– Por que não? Passando defronte de uma loja fechada,
notei que lá dentro se passava algo estranho; entrei e vi um rapaz muito
agitado, indo e vindo, como se quisesse ir ao caixa do lojista. Com ele havia
dois Espíritos, um dos quais lhe soprava ao ouvido: Vamos, covarde! A gaveta
está cheia; poderás te divertir à vontade etc.; o outro tinha o semblante de
uma mulher, bela e cheia de nobreza, qualquer coisa de celeste e de bondade no
olhar; dizia-lhe: Vai embora, vai embora! Não te deixes tentar; e lhe soprava
as palavras: prisão, desonra. O rapaz hesitava. No momento em que se aproximava
do caixa, interpus-me à sua frente para o deter. O Espírito mau pediu-me que
não me metesse. Eu lhe disse que queria impedir o moço de cometer uma má ação
e, talvez, de ser condenado às galés. Então o Espírito bom aproximou-se de mim
e me disse: É preciso que ele sofra a tentação; é uma prova; se sucumbir,
será por sua culpa. O ladrão ia triunfar quando o Espírito mau empregou um
artifício abominável, que deu resultado: fez-lhe ver uma garrafa sobre uma mesinha:
era aguardente; inspirou-lhe a ideia de beber, para criar coragem. O infeliz
está perdido, pensei comigo... procuremos ao menos salvar alguma coisa. Eu não
tinha outro recurso, a não ser advertir o patrão... depressa! Num piscar de
olhos, eis-me em sua casa. Estava jogando cartas com a esposa; era preciso
encontrar um meio de fazê-lo sair.
57. Se ele fosse médium, ter-lhe-ias feito escrever o que quiséssemos.
Ele acreditaria pelo menos nos Espíritos?
– Não tinha bastante espírito para saber o que é isso.
58. Eu te ignorava o talento para fazer trocadilhos.
– Se me interrompes não direi mais nada. Provoquei-lhe um
violento espirro; ele quis aspirar rapé, mas havia deixado na loja a
tabaqueira. Chamou o filho, que dormia num canto, e disse-lhe para ir
buscá-la...; não era bem isso que eu desejava; o menino despertou
resmungando... Soprei à mãe, que dissesse: Não acorde a criança; tu podes muito
bem ir buscá-la. Finalmente ele se decidiu... e eu o acompanhei, para que fosse
mais depressa. Chegando à porta percebeu luz na loja e ouviu um ruído. Ficou
tomado de medo; tremiam-lhe as pernas; empurrei-o para que avançasse; se
tivesse entrado subitamente pegaria o ladrão como numa armadilha. Em vez disso,
o imbecil pôs-se a gritar: “Pega o ladrão!” O ladrão escapou, mas, em sua
precipitação, perturbado também pela aguardente, esqueceu de apanhar o boné. O
dono da loja entrou quando já não havia ninguém... O que acontecerá com o boné
não é da minha conta... Aquele sujeito está metido em maus lençóis. Graças a
mim não houve tempo de consumar-se o furto, do qual livrou-se o comerciante
pelo medo. Isso, porém, não o impediu de dizer, ao retornar à sua casa, que havia
derrubado um homem de seis pés de altura. – “Veja só – disse ele – como as
coisas acontecem! Se eu não tivesse tido a ideia de aspirar rapé!...” – “E se
eu não te houvesse impedido de mandar o menino!” – retrucou a mulher. – “É
preciso convir que tivemos sorte. Olha o que é o acaso!”
Eis, meu amigo, como nos agradecem!
59. És um bravo rapaz, meu caro Pierre, parabéns! Não te
desanimes com a ingratidão dos homens; encontrarás muitos outros assim, agora
que te comprometes a lhes prestar serviço, até mesmo entre os que creem na
intervenção dos Espíritos.
– Sim, e sei que os ingratos um dia serão pagos com
ingratidão.
60. Vejo agora que posso contar contigo e que te tornas verdadeiramente
sério.
– Mais tarde verás que serei eu a te ensinar moral.
61. Como qualquer outro, eu o necessito e receberei de bom
grado os conselhos, venham de onde vierem. Eu te disse que queria que
praticasses uma boa ação; estás disposto?
– Podes duvidar disso?
62. Creio que um de meus amigos está ameaçado de grandes
decepções, se continuar seguindo o mau caminho em que se encontra; suas ilusões
poderão perdê-lo. Gostaria que tentasses reconduzi-lo ao bom caminho, por meio
de algo que o pudesse impressionar vivamente. Compreendes o meu pensamento?
– Sim; gostarias que eu lhe produzisse alguma manifestação
agradável, uma aparição, por exemplo; mas isso não depende de mim. Entretanto,
posso dar provas sensíveis da minha presença quando isso me for permitido. Bem
o sabes.
Observação – O médium ao qual este Espírito
parece estar ligado é advertido de sua presença por uma impressão muito sensível,
mesmo quando não pensa em chamá-lo. Reconhece-o por uma espécie de arrepio que
sente nos braços, no dorso e nas espáduas; mas algumas vezes os efeitos são
mais enérgicos. Numa reunião que ocorreu em nossa casa, no dia 24 de março
passado, este Espírito respondeu às perguntas através de outro médium.
Falava-se de sua força física; de repente, como que para dar
uma prova, ele agarrou um dos assistentes pela perna e, por meio de um abalo
violento, levantou-o da cadeira e o atirou, assombrado, do outro lado da sala.
63. Farás o que quiseres, ou melhor, o que puderes. Aviso-te
que ele possui alguma mediunidade.
– Tanto melhor; tenho meu plano.
64. Que esperas fazer?
– Primeiro vou estudar a situação; ver de que Espíritos
ele se acha cercado e se há meios de fazer algo com estes. Uma vez em sua casa
eu me anunciarei, como fiz na tua. Interpelar-me-ão e responderei: “Sou eu,
Pierre Le Flamand, mensageiro espiritual, que venho pôr-me ao vosso serviço e
que, ao mesmo tempo, desejaria vos agradecer. Ouvi dizer que acalentais certas esperanças
que vos transtornam a cabeça e já vos fazem virar as costas aos amigos; creio
de meu dever, em vosso próprio interesse, advertir-vos de quanto vossas ideias
estão longe de ser proveitosas à vossa felicidade futura. Palavra de Le
Flamand, posso garantir que vos venho visitar imbuído das melhores intenções.
Temei a cólera dos Espíritos e, mais ainda, a de Deus, e crede nas palavras de vosso
servidor, que garante que a sua missão é inteiramente voltada ao bem.” (sic) Se
me expulsarem, voltarei três vezes e depois verei o que terei a fazer. É isso?
65. Muito bem, meu amigo, mas não digas nem mais, nem menos.
– Palavra por palavra.
66. Mas se te perguntarem quem te encarregou dessa missão, o
que responderás?
– Que foram os Espíritos Superiores. Para o bem, posso
não dizer toda a verdade.
67. Tu te enganas; desde que agimos para o bem, é sempre por
inspiração dos Espíritos bons. Assim, tua consciência pode ficar tranquila,
porquanto os Espíritos maus jamais nos impelem a fazer boas coisas.
– Está entendido.
68. Agradeço-te e te felicito pelas tuas boas disposições. Quando
queres ser chamado para me dares conta do resultado de tua missão?
– Eu te avisarei.