terça-feira, 3 de dezembro de 2024

OS GRITOS NA NOITE DE SÃO BARTOLOMEU[1]

 

François Dubois - Massacre do Dia de São Bartolomeu


Allan Kardec

 

De Saint-Foy, em sua Histoire de l’ordre du Saint-Esprit, edição de 1778, cita a seguinte passagem, retirada de uma coletânea escrita pelo marquês Christophe Juvénal des Ursins, tenente-general do governo de Paris, lá pelos fins do ano de 1572, e imprimida em 1601.

“No dia 31 de agosto de 1572, oito dias após o massacre de São Bartolomeu, eu havia ceado no Louvre, nas dependências da senhora Fiesque. O calor tinha sido grande durante todo o dia.

Assentamo-nos sob uma pequena latada, às margens do rio Sena, para aspirar o ar fresco; de repente, ouvimos no ar um barulho horrível, de vozes tumultuosas e de gemidos misturados a gritos de raiva e de furor; ficamos imóveis, tomados de pavor, olhando-nos de instante em instante, mas sem coragem de falar. Creio que esse barulho tenha durado cerca de meia hora. Por certo o rei Carlos IX também o ouviu, ficou apavorado, não dormiu mais durante o resto da noite e, embora não comentasse o fato no dia seguinte, perceberam-lhe o ar sombrio, pensativo, alucinado.

Se algum prodígio não deve encontrar incrédulos, seguramente este é um deles, atestado por Henrique IV. Conforme d’Aubigné, no livro I, capítulo 6, página 561, esse príncipe várias vezes nos contou, entre seus familiares e cortesãos mais chegados – e tenho várias testemunhas vivas que jamais relataram o fato, sem se sentirem ainda tomadas de pavor – que oito dias após o massacre de São Bartolomeu viu uma grande quantidade de corvos empoleirar-se e crocitar sobre o pavilhão do Louvre; que nessa mesma noite, duas horas após haver deitado, Carlos IX saltou de sua cama, fez se levantarem os que estavam em seu quarto e ordenou verificassem o que por ali se passava, pois ouvia no ar um grande barulho de vozes a gemer, em tudo semelhante ao que percebera na noite do massacre; que todos esses gritos eram tão impressionantes, tão marcantes e de tal forma articulados que Carlos IX, julgando que os inimigos dos Montmorency e de seus partidários os haviam surpreendido e os atacavam, enviou um destacamento de seus guardas para impedir esse novo massacre; que os guardas informaram que Paris estava tranquila e que o barulho que se ouvia permanecia no ar.

 

Observação – O fato narrado por Saint-Foy e Juvénal des Ursins tem muita analogia com a história do fantasma da senhorita Clairon, relatado em nosso número do mês de fevereiro, com a diferença de que, nessa ocasião, um único Espírito se manifestou durante dois anos e meio, ao passo que, depois da noite de São Bartolomeu, uma quantidade inumerável de Espíritos teria feito o ar retinir apenas por alguns instantes. Aliás, esses dois fenômenos têm, evidentemente, o mesmo princípio que o dos demais fatos contemporâneos e da mesma natureza que já relatamos, deles não diferindo senão pelo detalhe da forma. Interrogados sobre a causa dessa manifestação, vários Espíritos responderam que era uma punição de Deus, o que é fácil de compreender.



[1] REVISTA ESPÍRITA – setembro/1858 – Allan Kardec

segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

JORGE GODINHO BARRETO NERY[1]

 


 

            Nascido em Alagoinhas (Bahia), possui larga experiência administrativa no Brasil e Exterior, com 48 anos de serviços na Força Aérea Brasileira, tendo sido conselheiro militar da representação do Brasil junto à Conferência do Desarmamento Mundial da ONU.

Ao longo da carreira, ocupou cargos como a chefia da Secretaria de Conselho e Comissões do Gabinete do Ministro; foi delegado do Brasil na Junta Interamericana de Defesa; chefe do Centro de Comunicação Social da Aeronáutica e do Estado-Maior da Aeronáutica; presidente do Conselho de Administração da INFRAERO; secretário-Executivo do Conselho de Aviação Civil (CONAC) e assessor Especial Militar do Ministro de Estado da Defesa.

Tenente Brigadeiro do Ar, é praça desde 1º de março de 1966. Pós-Graduado em Análise Organizacional pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), possui quatro mil horas de voo e os cursos operacionais de Piloto de Caça, Líder de Esquadrilha, Líder de Grupo e Piloto de Transporte.

De família espírita, sempre teve em mente o objetivo da caminhada tendo o Evangelho como roteiro. Na década de 1970, foi presidente do Centro Espírita Discípulos de Léon Denis, no Rio de Janeiro. É expositor e monitor espírita desde 1983, divulgando o Espiritismo em diversos países.

Contribui, há mais de três décadas, com a Federação Espírita Brasileira – FEB. Membro do Conselho Superior da Instituição e Presidente eleito em 21 de março de 2015.

Participou do Movimento Espírita nos Estados Unidos, nos anos de 1998 a 2000, em Washington e Baltimore. Colaborou com a União dos Centros de Estudos Espíritas da Suíça, no processo de Unificação do Movimento Espírita daquele país, que culminou com a assinatura do Pacto de Unificação pelas Instituições Espíritas da Suíça, em 2012.

 Veio ao Paraná ofertar a sua palavra, por primeira vez, em 14 de março de 2017, participando, em Cornélio Procópio, como conferencista da 19ª Conferência Estadual Espírita do Interior, retornando, desde então, anualmente, para abrilhantar a Conferência Estadual Espírita.



[1] FEDERAÇÃO ESPÍRITA DO PARANÁ - https://www.feparana.com.br/topico/?topico=2502

sexta-feira, 29 de novembro de 2024

PRESA DOS MAUS ESPÍRITOS[1]

 


Orson Peter Carrara

 

Não se assuste o leitor. Maus espíritos são aqueles ainda iludidos ou seduzidos por paixões variadas, em que se incluem a vulgaridade, o orgulho, o egoísmo e a vaidade em seus inúmeros e lamentáveis desdobramentos. Estão entre os que habitam o mundo espiritual e também entre nós, encarnados, nos aprendizados próprios. É uma estação temporária porque a Lei de Progresso fará com que todos alcancem sublimidade e plena integração com a Lei de Amor que rege a vida.

Allan Kardec faz uma extraordinária e atualíssima apreciação no capítulo 19 – A fé transporta montanhas, em O Evangelho Segundo o Espiritismo, no item 10, incluído no subtítulo Parábola da Figueira Seca, que está transcrita e comentada pelo Codificador no referido capítulo.

Antes, no item 9, ele já inicia e forma direta: “A figueira seca é o símbolo das pessoas que não tem senão as aparências do bem, mas em realidade não produzem nada de bom (...)” e, a partir do citado item 10, refere-se aos médiuns. Pela importância e atualidade do texto, transcrevo na íntegra, negritando (de minha iniciativa) alguns trechos parciais:

“10. Os médiuns são os intérpretes dos Espíritos; suprem, nestes últimos, a falta de órgãos materiais pelos quais transmitam suas instruções. Daí vem o serem dotados de faculdades para esse efeito. Nos tempos atuais, de renovação social, cabe-lhes uma missão especialíssima; são árvores destinadas a fornecer alimento espiritual a seus irmãos; multiplicam-se em número, para que abunde o alimento; há-os por toda a parte, em todos os países, em todas as classes da sociedade, entre os ricos e os pobres, entre os grandes e os pequenos, a fim de que em nenhum ponto faltem e a fim de ficar demonstrado aos homens que todos são chamados. Se, porém, eles desviam do objetivo providencial a preciosa faculdade que lhes foi concedida, se a empregam em coisas fúteis ou prejudiciais, se a põem a serviço dos interesses mundanos, se em vez de frutos sazonados dão maus frutos, se se recusam a utilizá-la em benefício dos outros, se nenhum proveito tiram dela para si mesmos, melhorando-se, são quais a figueira estéril. Deus lhes retirará um dom que se tornou inútil neles: a semente que não sabem fazer que frutifique, e consentirá que se tornem presas dos Espíritos maus”. (transcrito do portal www.kardecpedia.com )

O comentário é muito claro, não deixa qualquer dúvida. Há uma tarefa a executar e se negligenciada ou desviada em seus objetivos – igualmente claros –, sujeita seu portador tornar-se presa dos Espíritos maus. Como uma figueira seca (da parábola de Jesus) que nada produz.

E Emmanuel, o sábio instrutor, no capítulo 64 – Médiuns de toda parte – de seu Livro da Esperança, afirma quase no final do texto: “(...) todos são convocados a servir com sinceridade e desinteresse, na construção do bem, com base no burilamento de si próprios. (...)”.

Inspirado por essas belas lições, o amigo Marcus Amaral (de Porto Velho- RO) produziu o vídeo Parábola da figueira que secou - A fé mãe da esperança e da caridade, em palestra on-line que proferiu para o Centro Espírita Fé e Caridade, de Juiz de Fora (MG), ampliando as considerações, inclusive com exemplo de atuação de médiuns distraídos que se perdem em vaidades e vazias discussões. Precioso material. O leitor poderá ver o vídeo na íntegra clicando neste LINK.

O que mais impressiona é a atualidade de Kardec, aliada à oportuna advertência de Emmanuel e o estudo de Marcus. Sugiro ao leitor não perder a oportunidade de, pelo menos, reler o item 10 acima citado, de O Evangelho Segundo o Espiritismo, que poderá ser ampliado com o capítulo no livro de Emmanuel, também referido, e as considerações do amigo Marcus.



[1] O CONSOLADOR - Ano 18 - N° 899 - 24 de Novembro de 2024 - https://www.oconsolador.com.br/ano18/899/ca6.html

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

SOFRIMENTOS DEPOIS DA MORTE[1]

 


Miramez

 

 Têm alguma coisa de material as penas e gozos da alma depois da morte?

Não podem ser materiais, diz o bom-senso, pois que a alma não é matéria. Nada têm de carnal essas penas e gozos; entretanto, são mil vezes mais vivos do que os experimentais na Terra, porque o Espírito, uma vez liberto, é mais impressionável. Então, já a matéria não lhe embota as sensações. (237 a 257)

Questão 965 / O Livro dos Espíritos

 

Não podem ser puramente físicas as penas e gozos da alma. A mudança de mundos influi, a nos dizer que estes haverão de ser de conformidade com o plano que habita. Desde quando ela mude de faixa, tudo que a cerca tem afinidade com o seu modo de viver.

A matéria, podemos dizer, se purifica, alterando-se as suas propriedades pelas quais a conhecemos, e tomando nomes diferentes. O próprio Espírito também passou por várias nomenclaturas, já pertenceu a muitas divisões, para chegar à condição de Espírito imortal consciente. A alma propriamente dita não é matéria, nem a matéria é alma no seu termo definido, no entanto, uma se confunde com a outra por serem interdependentes para manifestarem suas qualidades. Esse assunto tem outros aspectos que os homens ainda não podem notar. A vida tem seus segredos para que possas buscar sempre o melhor entendimento sobre as leis naturais.

Nada têm de carnal as penas e gozos dos Espíritos, a não ser quando estão revestidos da carne, com outros tipos de sensações. O mundo dos Espíritos tem variadas faixas de vida e cada uma com a sua específica sensibilidade, em que o Espírito assegura para viver cada vez que subir mais, que elevar-se, por sentir e saber dos que já foram. Quanto mais crescimento, mais felicidade.

O Espírito, quanto mais livre das paixões inferiores, mais sensível fica para sentir e registrar o mundo que o cerca. Ele compreende, pois, que a alma tem poderes que nós mesmos, no plano de vida no mundo espiritual, ignoramos, quanto mais os que se encontram na Terra, envolvidos nas paixões terrenas, aturdindo seus sentidos com coisas que para nós são ilusórias.

A matéria, para os Espíritos ignorantes e endividados, se assim podemos dizer, é uma bênção de Deus, por lhes fazer esquecer as suas artimanhas. Já o Espírito livre, este é mais sensível, e tudo que ele pensa já vive. A carne é um esconderijo para a alma, servindo-lhe de amparo para a limpeza do seu carma. Deus não iria criar a lei de reencarnação por brincadeira, mas no sentido de despertar valores que o Espírito conduz na sua intimidade. E quando despertada a fé no coração humano, ela lhe faz grandes prodígios.

Então lhe disse Jesus:

Oh! Mulher, grande é a tua fé! Faça-se contigo como queres. E desde aquele momento sua filha ficou sã.

Mateus, 15:28

A fé tem poderes a que a natureza divina obedece sobremodo, nos planos ensinados por Jesus Cristo, como quando Ele disse: "A tua fé te curou".

No plano do Espírito, as sensibilidades são da maior importância, de modo que o que pensas logo será obedecido. É necessário, então, que tenhamos muito controle nos pensamentos, porque eles são reais, e a natureza responde imediatamente a nossa vontade. Para o Espírito educado, isto é ótimo, mas, para o Espírito cheio de paixões inferiores, é melhor ficar escondido na carne até assimilar e viver a educação espiritual.

O ser humano ainda não tem condições de viver bem na área do Espírito puro. Ele ainda vive na teoria; somente depois irá passar para a vivência das realidades espirituais. Esta máxima deve ser meditada e conhecida em todo o mundo: "Quando o discípulo está pronto, o Mestre aparece." É por isso que a atmosfera da Terra se encontra cheia de Espíritos, esperando assimilar a educação cristã, para depois ingressarem em outra faixa de vida, melhor que a atual.



[1] FILOSOFIA ESPÍRITA – Volume 19 – João Nunes Maia

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

LAMAS TIBETANOS REENCARNADOS NO OCIDENTE[1]

 

Tenzin Sherab Tulku

Karen Wehrstein

 

É comum no budismo tibetano que novas encarnações de lamas (monges) falecidos proeminentes sejam buscadas, por uma combinação de meios psíquicos e testes objetivos. Quando alguém é confirmado, ele é "entronizado" em sua posição anterior. Mais notoriamente, o atual Dalai Lama afirma ser a décima quarta encarnação desse papel, tendo passado por esse processo quando era um jovem garoto todas as vezes.

A escritora britânica Vicki Mackenzie, uma devota do budismo tibetano, narrou as mortes e as subsequentes reencarnações, oficialmente confirmadas, de três lamas tibetanos que decidiram viver suas próximas vidas no Ocidente, para espalhar os ensinamentos e a prática de sua antiga tradição. Aparentemente, isso cumpriu uma profecia tibetana do oitavo século:

Quando os pássaros de ferro voarem e os cavalos correrem sobre rodas, o povo tibetano será espalhado como formigas pela face da terra e o Dharma chegará à terra dos peles-vermelhas[2].

 

Tenzin Osel Hita

O livro de Mackenzie de 1988, The Boy Lama, é a história da vida de seu próprio mestre espiritual por oito anos, Lama Thubten Yeshe, e seu renascimento como Osel Hita Torres, agora conhecido como Tenzin Osel Hita. O livro é a fonte de todas as informações nesta seção, exceto onde indicado de outra forma.

Lama Yeshe nasceu perto de Lhasa em 1935, filho de camponeses que foi reconhecido por um lama psíquico como a reencarnação da abadessa de um convento tibetano. A abadessa havia rezado para que ela renascesse em uma posição de levar o budismo para aqueles na escuridão espiritual. O menino Yeshe expressou interesse na vida espiritual desde muito jovem, e quando ele tinha seis anos seus pais o colocaram em um complexo de monastério. Ele passou dezenove anos meditando e aprendendo na expectativa de que viveria sua vida inteira lá, quando seu mundo foi virado de cabeça para baixo pela invasão chinesa.

Em meio ao saque de templos, destruição de obras de arte inestimáveis ​​e massacre de lamas por soldados chineses, Yeshe, agora com vinte e cinco anos, fugiu através do Himalaia para a Índia. Em um campo de refugiados tibetanos lotado, ele começou a ensinar novamente, aprendeu inglês e conheceu duas pessoas que permitiriam seu trabalho de vida: outro monge, Lama Zopa Rinpoche, e Zina Rachevsky, uma jovem socialite russo-americana rica em busca de uma vida espiritual.

Os três começaram um centro espiritual no Nepal que atendia ocidentais. Com o tempo, tornou-se um movimento global, chamado Foundation for the Preservation of the Mahayana Tradition (FPMT). Yeshe passou o resto da vida viajando pelo mundo dando ensinamentos e abrindo centros.

Sua abordagem era pouco ortodoxa, projetada para modernizar a prática espiritual e sobreposta por sua personalidade amorosa e exuberante. Yeshe era conhecido por sua insistência intransigente na excelência de seus alunos, sua risada alegre e atos extremos de generosidade. Quando viajava, ele usava roupas ocidentais e tentava experiências locais, incluindo jogos de azar em Las Vegas, o Dia do Orgulho Gay em São Francisco, os passeios na Disneylândia e uma caminhada pela Austrália.

Yeshe sofria de problemas cardíacos congênitos e, em 3 de março de 1984, morreu aos 49 anos na Califórnia. Ele permaneceu alegre até o fim, tendo previsto o tempo aproximado de sua morte.

Em 12 de fevereiro de 1985, um filho nasceu de um casal espanhol que se interessava pelo budismo tibetano, conheceu Lama Yeshe e liderou a criação de um retiro remoto, chamado 'Osel-Ling' pelo Dalai Lama, no topo da montanha mais alta da Espanha. Quando engravidou, Maria Hita Torres brincou que talvez Lama Yeshe estivesse procurando uma mãe.

O filho deles, Osel, foi supostamente uma criança atípica desde o começo, estranhamente fácil de cuidar quando bebê, e mostrando maturidade incomum conforme crescia. Seus comportamentos lembravam os de lamas tibetanos proeminentes em geral, e Yeshe em particular. Muitas pessoas que conheceram Yeshe tiveram intuições ou sonhos de que Osel era sua reencarnação. O Dalai Lama, meditando sobre os candidatos para a reencarnação de Yeshe, descobriu que o nome de Osel continuava surgindo. Por essas razões, a família viajou para a Índia para que a criança pudesse ser testada, embora Osel tivesse pouco mais de um ano de idade, e esses testes geralmente são realizados apenas quando a criança tem quatro ou cinco anos. Osel passou nos testes, reconhecendo os pertences de Lama Yeshe, e foi oficialmente "entronizado" aos 23 meses.

Osel foi renomeado Tenzin Osel Rinpoche pelo Dalai Lama e, aos três anos, começou a viver a vida de um lama em Kopan, Nepal, em um centro que havia sido construído por Lama Yeshe (sua família morava perto).

Ele também começou a visitar os centros que Yeshe havia estabelecido em nações ocidentais. Questionado diretamente por Mackenzie se ele era Lama Yeshe, ele respondeu: 'Não, eu sou Tenzin Osel. Antes, eu sou Lama Yeshe[3].'

Aos seis anos, Osel entrou no Monastério Sera (realocado para a Índia após a invasão chinesa), no qual Lama Yeshe havia sido treinado. No entanto, durante os próximos anos, ele começou a se comportar de forma rebelde contra sua situação e, quando jovem, deixou o monastério. Ele empreendeu uma educação ocidental e explorou várias saídas criativas, incluindo música e produção cinematográfica. Ele agora afirmava que não se considerava budista, mas um "agnóstico científico[4]". No entanto, ele não rompeu completamente com seu passado e, em 2017, aos 32 anos, permaneceu como diretor da organização fundada por Lama Yeshe, dando palestras e liderando peregrinações[5].

 

Tenzin Sherab Tulku

Tenzin Tulku escreve em seu site:

As aparências podem enganar. A princípio, provavelmente pareço apenas mais um canadense de quase trinta anos. Fico estressado quando meu trabalho está atrasado, assisto a vídeos virais, jogo videogame, hóquei no gelo e toco guitarra base em uma banda de rock. Mas para amigos próximos e familiares, também sou a reencarnação de um monge budista tibetano[6].

Tenzin Sherab Tulku nasceu em 1972 e recebeu o nome de Elijah Ary de seus pais, originalmente protestantes e judeus, que haviam fundado um pequeno centro budista tibetano em Vancouver, Canadá.

Aos três anos de idade, Elija começou a falar sobre uma vida passada no Tibete e deu muitos detalhes. Isso chamou a atenção de um lama proeminente, que reconheceu os nomes mencionados pelo menino como sendo de lamas no Tibete. A habilidade de Elija de conscientemente relembrar eventos e associados de sua vida passada é rara, mesmo entre os budistas tibetanos[7].

Aos sete anos de idade, Elijah foi reconhecido à primeira vista pelo Dalai Lama como a reencarnação de Geshe Jatse, um lama que havia deixado uma posição de destaque para meditar em uma caverna antes que os chineses invadissem o Tibete, e uma vez disse que renasceria em um lugar onde seria necessário um "barco do céu" para chegar. Nada mais se ouviu falar dele desde então[8]. Renomeado Tenzin Sherab pelo Dalai Lama, ele tem uma semelhança física com Geshe Jatse, com olhos fundos e uma sobrancelha distintamente saliente, como Mackenzie observou quando Tenzin lhe mostrou uma fotografia de Geshe Jatse[9].   Mais tarde, ele foi reconhecido por Lama Thubten Yeshe, que seria reencarnado como Tenzin Osel Hita[10].

Permanecendo no Canadá quando menino e jovem, Elijah teve dificuldades na escola, em parte devido ao que ele via como a inutilidade das aulas, e em parte devido a ser provocado e intimidado por falar de uma vida passada. Aos quatorze anos, tendo abandonado a escola, ele decidiu ir para a Índia e entrar no Monastério Sera para educação como lama. Aqui ele sentiu uma sensação de voltar para casa e que ele estava finalmente aprendendo algo relevante – como a mente funciona.

Aos vinte anos, Tenzin retornou ao Ocidente e conseguiu um emprego em uma banca de jornal em uma área difícil de Montreal. Ele fez estudos religiosos lá, depois foi para Paris para seguir estudos tibetanos em Paris e, aos 35 anos, obteve um doutorado em Harvard. Ele agora mora em Paris com sua esposa Emmanuelle, ensinando budismo, história religiosa tibetana, religião e política em várias instituições acadêmicas. Ele também lidera sessões de meditação para grupos e indivíduos. Ele escreve:

Acho que o maior desafio até agora na minha vida no Ocidente tem sido viver minha vida como um Tulku e como um ocidental. Nem sempre foi simples; muitas vezes, há momentos em que um lado parece mais privilegiado do que o outro, quando sinto que não estou meditando o suficiente ou que não estou praticando esportes o suficiente. Até agora, porém, parece que consegui fazer isso e casar minhas labutas cotidianas com a vida no Ocidente e minha espiritualidade e prática budista[11].

Mackenzie cita Tenzin dizendo:

Eu renasci como um ocidental para unir as duas culturas. Mas não é tão simples assim... Eu senti que tinha que pegar o que o budismo tibetano tem a oferecer e colocá-lo em termos ocidentais[12].

 

Trinlay Tulku Rinpoche

Trinlay Tulku Rinpoche nasceu na Suíça em 1975, filho de pai francês e mãe americana, devotos do budismo tibetano, originários de Santa Bárbara, Califórnia[13].

Segundo seu próprio relato, ele sempre quis ser monge: ele era fascinado pelas vestes dos monges e pedia constantemente para ser levado a um monastério. Cuidando de uma babá tibetana, ele conseguia falar tibetano aos dezoito meses de idade. Enquanto brincava no centro de seus pais, ele foi reconhecido por um lama proeminente visitante como a reencarnação do lama Khashap Rinpoche, que liderou um monastério na Índia e morreu muito jovem de tuberculose. Ele teria dito que queria renascer no Ocidente e que ele e aqueles ao seu redor se encontrariam novamente no Ocidente[14].

Um ano depois, Trinlay mudou-se com sua família para Darjeeling, Índia, para o treinamento tradicional de tulku por um dos lamas que o reconheceram, o Venerável Kalu Rinpoche. Aluno e professor viajaram pelo mundo pelos próximos dez anos, com o aluno frequentemente servindo como tradutor do professor. Aos doze anos, Trinlay continuou sua educação budista em um monastério nos Alpes Franceses e, aos dezessete, começou uma educação ocidental simultânea em filosofia, humanidades e tibetologia na Sorbonne e outras instituições francesas e inglesas, trabalhando para um doutorado. Ele teria dito

Se eu puder ajudar os europeus a entender o budismo, eu gostaria de fazer isso. É novo aqui, e a maioria das pessoas não entende o verdadeiro dharma. Elas gostam de coisas engraçadas como as pinturas, os tronos, os objetos religiosos. Mas a filosofia budista, que pode fazer uma diferença profunda na sua vida – isso eu gostaria de explicar[15]'.

Atualmente, Trinlay viaja pela Europa, Ásia e América para ensinar filosofia e prática budista[16].    Ele também transmite ensinamentos budistas por meio de vídeo[17].

Em uma mensagem sobre a abertura de um novo centro budista, Trinlay revela novamente sua dedicação em levar a prática e a filosofia budista ao Ocidente:

Tal lugar é de grande importância, pois fornecerá a base e a estrutura necessárias para continuar a transmissão de ensinamentos budistas genuínos nos Estados Unidos. Numerosos mestres e professores autênticos se reunirão lá para compartilhar sua sabedoria. Tesouros da literatura budista compostos em várias línguas ao longo dos últimos vinte e cinco séculos serão coletados, traduzidos e disponibilizados a todos. O Centro será um lugar onde as pessoas poderão aprender sobre meditação, discernimento e gentileza — qualidades tão essenciais para o bem-estar de todos. Estou confiante de que este Centro contribuirá para uma maior conscientização e paz no mundo[18].

 

Outros Tulkus

Mackenzie observa que Lama Osel, Tenzin Sherab Tulku e Trinlay Tulku Rinpoche não são os únicos lamas tibetanos renascidos no Ocidente. Ela escreve:

Outros lamas surgiram nos EUA, Nova Zelândia, França e vários outros países ocidentais e estão sendo silenciosamente nutridos pelas comunidades budistas ocidentais às quais são afiliados[19].

 

Fontes

§  Mackenzie, V. (1988). Reincarnation: The Boy Lama. London: Bloomsbury.

§  Mackenzie, V. (1996). Reborn in the West: The Reincarnation Masters. New York: Marlowe.

§  Pontones, D. (2009). Osel’s awakening: A kid against his destiny. Babylon Magazine, June 14, 56-63.

§  Tenzin Ösel Hita, per FPMT. http://fpmt.org/fpmt/osel/  [Web page.]

§  Trinlay Rinpoche. http://www.bodhipath.org/trinlay/  [Web page.]

§  Trinlay Tulku Rinpoche. http://www.sfi-usa.org/california-center/trinlay-tulku-rinpoche/  [Web page.]

§  Tulku, T, ‘My Story.’ http://www.tenzintulku.com/index.php/en/my-story  [Web page.]

 

Traduzido com Google Tradutor



[2] Mackenzie (1988), 47. ‘Dharma’ refers to Buddhist teachings, ‘redskins’ to Westerners.

[3] Mackenzie (1988), 177.

[4] Pontones (2009), 56-63.

[5] Tenzin Ösel Hita http://fpmt.org/fpmt/osel/

[6] Tulku, T, ‘My Story.’  http://www.tenzintulku.com/index.php/en/my-story

[7] Mackenzie (1996), 11-40.

[8] Mackenzie (1996), 14.

[9] Mackenzie (1996), 12.

[10] Mackenzie (1996), 22-23.

[12] Mackenzie (1996), 141-42.

[14] Mackenzie (1996), 29.

[15] Mackenzie (1996), 143.              

[19] Mackenzie (1988), 155.

terça-feira, 26 de novembro de 2024

HABITAÇÕES DO PLANETA JÚPITER[1]

 


Allan Kardec

 

Se há um fato que gera perplexidade entre certas pessoas convencidas da existência dos Espíritos – não nos ocuparemos aqui das outras – é seguramente a existência de habitações em suas cidades, tal como ocorre entre nós. Não me pouparam de críticas:

Casas de Espíritos em Júpiter!... Que gozação!... Que seja, nada tenho a ver com isso. Se o leitor aqui não encontra, na verossimilhança das explicações, uma prova suficiente de sua veracidade; se, como nós, não se surpreende com a perfeita concordância das revelações espíritas com os dados mais positivos da ciência astronômica; numa palavra, se não vê senão uma hábil mistificação nos detalhes que se seguem e no desenho que os acompanha, eu o convido a pedir explicação aos Espíritos, de quem sou apenas o instrumento e o eco fiel. Que ele evoque Palissy ou Mozart, ou outro habitante desse mundo bem-aventurado; que sejam interrogados, que minhas afirmações sejam controladas pelas suas; que, enfim, discutam com eles. Quanto a mim, apenas apresento o que me foi dado, repetindo somente o que me foi dito. E, por esse papel absolutamente passivo, creio-me ao abrigo tanto da censura quanto do elogio.

Feita essa ressalva, e uma vez admitida a confiança nos Espíritos, se se aceitar como verdadeira a única doutrina realmente bela e sábia que a evocação dos Espíritos nos revelou até aqui, isto é, a migração das almas de planeta em planeta, suas encarnações sucessivas e seu progresso incessante pelo trabalho, as habitações de Júpiter não nos deverão mais causar admiração. Desde que o Espírito se encarna num mundo submetido, como o nosso, a uma dupla revolução, isto é, à alternativa de dias e noites e ao retorno periódico das estações; desde que tenha um corpo, por mais frágil seja esse envoltório material, não reclama apenas alimentação e vestuário, mas, também, um abrigo ou, pelo menos, um local de repouso, consequentemente uma casa. Com efeito, foi exatamente isso que nos disseram. Como nós, e melhor que nós, os habitantes de Júpiter têm seus lares comuns e suas famílias, grupos harmoniosos de Espíritos simpáticos, unidos no triunfo depois de o haverem sido na luta. Daí as moradas tão espaçosas, que podemos chamar, merecidamente, de palácios. Como nós, ainda, esses Espíritos têm suas festas, suas cerimônias, suas reuniões públicas, o que explica a existência de edifícios especialmente destinados a essas finalidades.

Finalmente, devemos encontrar nessas regiões superiores toda uma Humanidade, ativa e laboriosa como a nossa, como nós submetida a leis, necessidades e deveres, com a só diferença de que o progresso, rebelde aos nossos esforços, torna-se conquista fácil para os Espíritos que já se despojaram de nossos vícios terrestres.

Não deveria ocupar-me aqui senão da arquitetura de suas habitações; contudo, para a exata compreensão dos detalhes que se seguem, uma palavra de explicação não será inútil. Se Júpiter só é acessível aos Espíritos bons, daí não se segue que sejam excelentes no mesmo grau todos os seus habitantes: entre a bondade do simples e o homem de gênio, é permitido contar vários matizes.

Ora, toda a organização social desse mundo superior repousa precisamente sobre as variedades de inteligência e de aptidões, cabendo aos Espíritos superiores, aos mais depurados, por efeito de leis harmoniosas cuja explicação seria muito longa apresentar aqui, a alta direção de seu planeta. Essa supremacia não se detém aí, estendendo-se até os mundos inferiores, onde esses Espíritos, por sua influência, favorecem e ativam incessantemente o progresso religioso, gerador dos demais. É preciso acrescentar que para esses Espíritos depurados não haveria senão trabalhos intelectuais, pois suas atividades só se exercem no domínio do pensamento e eles já conquistaram bastante império sobre a matéria para não serem senão debilmente entravados por ela no livre exercício de sua vontade. O corpo desses Espíritos, como aliás o de todos os que habitam Júpiter, é de uma densidade tão leve que só encontra termo de comparação nos fluidos imponderáveis: um pouco maior do que o nosso, do qual reproduz exatamente a forma, embora mais pura e mais bela, ele se nos apresentaria sob a aparência de um vapor, termo que emprego a contragosto, por designar uma substância ainda muito grosseira; de um vapor, dizia eu, impalpável e luminoso... luminoso sobretudo nos contornos do rosto e da cabeça, porquanto ali a inteligência e a vida irradiam-se como um foco muito ardente. E é justamente esse brilho magnético, entrevisto pelos visionários cristãos, que nossos pintores traduziram pelo nimbo ou auréola dos santos.

Compreende-se que um tal corpo em nada dificulte as comunicações extramundanas desses Espíritos, permitindo-lhes, em seu planeta, um deslocamento pronto e fácil. Ele se subtrai tão facilmente à atração planetária, e sua densidade difere tão pouco daquela da atmosfera, que nela pode agitar-se, ir e vir, descer ou subir ao capricho do Espírito e sem outro esforço senão a vontade.

Assim, alguns dos personagens que Palissy teve a gentileza de me fazer desenhar estão representados tocando o solo levemente ou a superfície das águas, ou ainda bastante elevadas no ar, com inteira liberdade de ação e de movimentos que atribuímos aos anjos.

Quanto mais depurado o Espírito, tanto mais fácil é essa locomoção, o que se concebe sem dificuldade; nada também é mais fácil aos habitantes do planeta do que avaliar, logo à primeira vista, o valor de um Espírito que passa; dois sinais falarão por ele: a altura de seu voo e a luz mais ou menos brilhante de sua auréola.

Em Júpiter, como em toda parte, os que alçam voos mais altos são os mais raros; abaixo deles, é preciso contar várias camadas de Espíritos inferiores, tanto em virtude quanto em poder, mas naturalmente livres para os igualarem um dia, quando se aperfeiçoarem. Escalonados e classificados conforme os seus méritos, estes se dedicam mais particularmente aos trabalhos que interessam ao próprio planeta, não exercendo, sobre os mundos inferiores, a autoridade toda poderosa dos primeiros. É verdade que respondem a uma evocação, através de revelações sábias e boas, mas, pela presteza que demonstram em nos deixar e pelo laconismo de suas palavras, é fácil compreender que têm muito o que fazer em outra parte, e que não se encontram ainda suficientemente desprendidos para se fazerem irradiar simultaneamente em dois pontos tão distantes um do outro. Enfim, seguindo os menos perfeitos desses

Espíritos, mas deles separados por um abismo, vêm os animais que, como únicos serviçais e únicos trabalhadores do planeta, merecem uma menção toda especial.

Se designamos pelo nome de animais os seres bizarros que ocupam a base da escala, é porque os próprios Espíritos o utilizaram e também em razão de nossa língua não dispor de melhor termo para nos oferecer. Essa designação os avilta bastante; chamá-los, porém, de homens seria conceder-lhes muita honra; de fato, são Espíritos votados à animalidade, talvez por muito tempo ou, quem sabe, para sempre. Contudo, nem todos os Espíritos são concordes com esse ponto e a solução do problema parece pertencer a mundos mais elevados que Júpiter; seja qual for o seu futuro, entretanto, não há equívocos sobre o seu passado. Antes de ir para lá, esses Espíritos emigraram sucessivamente em nossos mundos inferiores, do corpo de um ao de outro animal, através de uma escala de aperfeiçoamento perfeitamente graduada. O estudo atento de nossos animais terrestres, seus costumes, suas características individuais, sua ferocidade longe do homem e sua domesticação lenta, mas sempre possível, tudo indica suficientemente a realidade dessa ascensão animal.

Desse modo, para qualquer lado que nos voltemos, a harmonia do Universo se resume sempre em uma única lei: o progresso, por toda parte e para todos, para o animal como para a planta, para planta como para o mineral; progresso puramente material, a princípio, nas moléculas insensíveis do metal ou do calhau, para tornar-se cada vez mais inteligente à medida que ascendemos à escala dos seres e que a individualidade tende a desembaraçar-se da massa, a afirmar-se, a conhecer-se.

Pensamento elevado e consolador, jamais imaginado antes, porquanto nos prova que nada é sacrificado, que a recompensa é sempre proporcional ao progresso realizado; o devotamento do cão, por exemplo, que morre pelo dono, não é estéril para o seu Espírito, cujo salário justo haverá de receber além deste mundo.

É o caso dos Espíritos animais que povoam Júpiter; eles se aperfeiçoaram ao mesmo tempo que nós, conosco e com o nosso auxílio. A lei é mais admirável ainda: faz tão bem de seu devotamento ao homem a primeira condição de sua ascensão planetária, que a vontade de um Espírito de Júpiter pode chamar a si todo animal que, numa de suas vidas anteriores, lhe haja dado provas de afeição. Essas simpatias, que lá no alto formam famílias de Espíritos, também agrupam em torno das famílias todo um cortejo de animais devotados. Em consequência, nosso apego neste mundo por um animal, o cuidado que tomamos de domesticá-lo e de humanizá-lo, tudo isso tem sua razão de ser, tudo será pago: é um bom ajudante que preparamos antecipadamente para um mundo  melhor.

Será assim um operário, porquanto aos seus semelhantes está reservado todo trabalho material, toda tarefa corporal: carga ou obras pesadas, semeadura ou colheita. E para tudo isso a Suprema Inteligência preparou um corpo que participa ao mesmo tempo das vantagens do animal e do homem. Podemos fazer uma avaliação pelo esboço de Palissy, representando alguns desses animais muito aplicados em jogar bola. Eu não os poderia melhor comparar senão aos faunos e aos sátiros da Fábula; o corpo, levemente peludo é, entretanto, aprumado como o nosso; entre alguns as patas desapareceram, dando lugar a certas pernas que ainda lembram a forma primitiva, os dois braços robustos, singularmente implantados e terminados por verdadeiras mãos, se levarmos em conta a oposição dos polegares. Coisa bizarra: a cabeça não é tão aperfeiçoada quanto o resto! Dessa forma, a fisionomia reflete bem alguma coisa de humano, mas o crânio, o maxilar e, sobretudo, a orelha não apresentam diferenças sensíveis em relação aos animais terrestres. É, pois, fácil distingui-los entre si: este é um cão, aquele é um leão.

Convenientemente vestidos com blusas e vestes muito semelhantes às nossas, eles só faltam falar para lembrar de bem perto certos homens daqui; eis precisamente o que lhes falta e que não poderiam fazer. Hábeis para se entenderem entre si, por meio de uma linguagem que nada tem da nossa, não mais se enganam sobre as intenções dos Espíritos que os comandam: basta um olhar, um gesto. A certos abalos magnéticos, dos quais nossos domadores de bestas já conhecem o segredo, o animal advinha e obedece sem murmurar e, melhor ainda, com boa vontade, porque está fascinado. É desse modo que lhe é imposta toda a tarefa pesada e que, com seu auxílio, tudo funciona regularmente de um extremo ao outro da escala social: o Espírito elevado pensa e delibera, o espírito inferior age com sua própria iniciativa e o animal executa. Assim, a concepção, a execução e o fato se unem numa mesma harmonia, levando todas as coisas a uma solução mais rápida, pelos meios mais simples e mais seguros.

Pedimos desculpas por essa digressão: ela era indispensável ao assunto que agora podemos abordar.

Enquanto aguardamos as cartas prometidas, que facilitarão singularmente o estudo de todo o planeta, podemos, pelas descrições feitas pelos Espíritos, fazer uma ideia de sua grande cidade, da cidade por excelência, desse foco de luz e de atividade que eles concordam estranhamente em designar pelo nome latino de Julnius.

No maior de nossos continentes – diz Palissy – em um vale de setecentas a oitocentas léguas de largura, para contar como vós, um rio magnífico desce das montanhas do norte e, engrossado por uma porção de torrentes e de ribeirões, forma em seu percurso sete ou oito lagos, dos quais o menor mereceria entre vós o nome de mar. Foi sobre as margens do maior desses lagos, por nós batizado com o nome de Pérola, que nossos antepassados lançaram os primeiros fundamentos de Julnius. Essa cidade primitiva ainda existe, venerada e guardada como preciosa relíquia. Sua arquitetura difere muito da vossa. Explicar-vos-ei tudo isso em seu devido tempo; por ora ficai sabendo que a cidade moderna está apenas a algumas centenas de metros abaixo da antiga. Limitado entre altas montanhas, o lago se derrama no vale por oito enormes cataratas, que formam outras tantas correntes isoladas e dispersas em todos os sentidos. Com o auxílio dessas correntes, cavamos na planície uma porção de riachos, canais e pequenos lagos, reservando a terra firme apenas para nossas casas e jardins. Disso resultou uma espécie de cidade anfíbia, como vossa Veneza e da qual, à primeira vista, não se poderia dizer se está construída na terra ou sobre a água. Nada vos direi hoje de quatro edifícios sagrados, construídos sobre a própria vertente das cataratas, de sorte que a água jorra aos borbotões de seus pórticos: são obras que vos pareceriam incríveis em grandeza e em ousadia.

É a cidade terrestre que descrevo aqui, de certo modo material, a cidade das ocupações planetárias, a que chamamos, enfim, de Cidade baixa. Tem suas ruas ou, melhor dizendo, seus caminhos traçados para o serviço interno; tem suas praças públicas, seus pórticos e suas pontes lançadas sobre canais para a passagem dos serviçais. Mas a cidade inteligente, a cidade espiritual, a verdadeira Julnius, finalmente, não se encontra na Terra: é preciso que se a procure no ar.

“O corpo material dos animais incapazes de voar[2] necessita de terra firme; mas o que o nosso corpo fluídico e luminoso exige é uma habitação aérea como ele, quase impalpável e móvel, a nosso bel-prazer. Nossa habilidade resolveu esse problema, auxiliada pelo tempo e pelas condições privilegiadas que o Grande Arquiteto nos havia concedido. Compreende bem que essa conquista dos ares era indispensável a Espíritos como os nossos. Nosso dia tem a duração de cinco horas, e nossa noite igualmente dura o mesmo tempo; mas tudo é relativo e, para seres aptos a pensar e a agir como o fazemos, para Espíritos que se compreendem pela linguagem dos olhos e que sabem comunicar-se magneticamente a distância, nosso dia de cinco horas já igualaria uma de vossas semanas. Em nossa opinião era ainda muito pouco; e a imobilidade da morada, o ponto fixo do lar eram um entrave para todas as nossas grandes obras. Hoje, pelo deslocamento rápido dessas moradas de pássaros, pela possibilidade de nos transportarmos, bem como os nossos, a tal ou qual endereço do planeta e à hora do dia que nos apraza, nossa existência pelo menos dobrou e, com ela, tudo quanto se possa conceber de útil e de grandioso.

Em determinadas épocas do ano – aduz o Espírito – em certas festas, por exemplo, verás aqui o céu obscurecido pela nuvem de habitações que nos vem de todos os pontos do horizonte. É um curioso agregado de moradias esbeltas, graciosas, leves, de todas as formas, de todas as cores, equilibradas em diferentes alturas e continuamente em marcha, da cidade baixa para a cidade celeste: alguns dias depois, faz-se o vácuo pouco a pouco e todos esses pássaros desaparecem.

Nada falta nessas moradas flutuantes, nem mesmo o encanto da verdura e das flores. Refiro-me a uma vegetação que não encontra paralelo entre vós, de plantas e até de arbustos que, pela natureza de seus órgãos, respiram, alimentam-se, vivem e se reproduzem no ar.

Temos – diz ainda o mesmo Espírito – esses tufos de flores enormes, cujas formas e matizes nem podeis imaginar, e de uma leveza de tecido tão delicada que os torna quase transparentes. Balançando no ar, sustentados por grandes folhas e munidos de gavinhas semelhantes às da videira, reúnem-se em nuvens de mil tonalidades ou se dispersam ao sabor do vento, oferecendo um espetáculo encantador aos viandantes da cidade baixa... Imagina a graça dessas jangadas de verdura, desses jardins flutuantes que nossa vontade pode fazer e desfazer e que, algumas vezes, duram toda uma estação! Longas fieiras de lianas e de ramos floridos destacam-se dessas alturas e se dependuram até o solo; cachos enormes se agitam, despetalando-se e liberando perfume... Os Espíritos que se deslocam no ar param à sua passagem: é um lugar de repouso e de encontro, ou, se quisermos, um meio de transporte para terminar a viagem sem fadiga e em boa companhia.

Um outro Espírito estava sentado sobre uma dessas flores quando o evoquei. Disse-me ele:

Neste instante  é noite em Julnius, e me encontro sentado à distância sobre uma dessas flores aéreas que aqui desabrocham somente à claridade de nossas luas. Sob meus pés, toda a cidade baixa está entregue ao sono; sobre minha cabeça e ao meu redor, contudo, e a perder de vista, não há senão movimento e alegria no espaço. Dormimos pouco: nossa alma encontra-se muito desprendida para que as necessidades do corpo a tiranizem, e a noite é feita mais para os nossos servos do que para nós. É a hora das visitas e das longas conversas, dos passeios solitários, dos devaneios, da música... Só vejo moradas aéreas, resplandecentes de luz, ou guirlandas de folhas e flores carregadas de bandos alegres... A primeira de nossas lua ilumina toda a cidade baixa: é uma luz suave, comparável à dos vossos luares; mas, ao lado do lago, a segunda se eleva, emitindo reflexos esverdeados que dão a todo o rio o aspecto de um vasto prado...

É sobre a margem direita desse rio, diz o Espírito, “cuja água te ofereceria a consistência de um leve vapor[3]”, que está construída a casa de Mozart, que por meu intermédio Palissy houve por bem reproduzir sobre o cobre. Só apresento aqui a fachada sul. A grande entrada fica à esquerda, dando para a planície; à direita fica o rio; os jardins estão localizados ao norte e ao sul. Perguntei a Mozart quais eram seus vizinhos.

Mais acima – disse ele – e mais embaixo, dois Espíritos que não conheces; mais à esquerda, apenas uma grande campina me separa do jardim de Cervantes.

Como as nossas, portanto, a casa tem quatro faces, laborando em erro se disso fizéssemos uma regra geral. É construída com certa pedra que os animais extraem das pedreiras do norte e cuja cor o Espírito compara a esses tons esverdeados que muitas vezes toma o azul do céu quando o sol se põe. Quanto à sua rigidez, podemos fazer uma ideia por essa observação de Palissy: “que ela se fundiria sob a pressão de nossos dedos humanos tão depressa quanto um floco de neve; mesmo assim, ainda é uma das matérias mais resistentes do planeta! Nessas paredes os Espíritos esculpiram ou incrustaram estranhos arabescos, que o desenho procura reproduzir. São ornamentos gravados na pedra e coloridos em seguida, ou incrustações que restabelecem a solidez da pedra verde, através de um processo que no momento desfruta de grande popularidade e que nos vegetais conserva toda a graça de seus contornos, toda a delicadeza de seus tecidos, toda a riqueza de seu colorido. E o Espírito acrescenta:

Uma descoberta que fareis qualquer dia e que entre vós mudará muita coisa.

A grande janela da direita apresenta um exemplo desse gênero de ornamentação: um de seus bordos nada mais é que uma enorme cana, cujas folhas foram conservadas. O mesmo ocorre no coroamento da janela principal, que afeta a forma da clave de sol: são plantas sarmentosas, enlaçadas e incrustadas. É por esse processo que eles obtêm a maior parte do coroamento dos edifícios, portões, balaústres etc. Muitas vezes a planta é colocada na parede com as raízes e em condições de crescer livremente. Cresce e se desenvolve; suas flores desabrocham ao acaso, e o artista não as incrustou no lugar senão quando adquiriram todo o desenvolvimento requerido para a ornamentação do edifício: a casa de Palissy é decorada quase inteiramente dessa maneira.

Destinados inicialmente apenas aos móveis, depois às molduras de portas e janelas, esse gênero de ornamentos aperfeiçoou-se pouco a pouco e acabou por invadir toda a arquitetura. Hoje, não se incrusta somente as flores e os arbustos, mas a própria árvore, da raiz até a copa; e os palácios, como os edifícios, praticamente não têm outras colunas.

Uma incrustação da mesma natureza serve também para decorar as janelas. Flores ou folhas muito grandes são habilmente despojadas de sua parte carnuda, restando apenas um feixe de fibras tão finas quanto a mais fina musselina. Cristalizam-nas; e dessas folhas reunidas com arte constrói-se uma janela inteira, que apenas filtra para o interior uma luz muito suave; ou, ainda, são revestidas de uma espécie de vidro liquefeito e colorido de todos os matizes que se cristaliza no ar, transformando a folha numa espécie de vidraça. Da disposição dessas folhas nas janelas resultam encantadores buquês, transparentes e luminosos!

Quanto às dimensões dessa aberturas e a mil outros detalhes que podem surpreender à primeira vista, vejo-me forçado a adiar a explicação: a história da arquitetura em Júpiter demandaria um volume inteiro. Renuncio também a falar sobre o mobiliário para aqui me ater tão-somente à disposição geral da casa.

O leitor deve ter compreendido, de tudo que precede, que a casa do continente não deve ser para o Espírito mais que uma espécie de pousada provisória. A cidade baixa quase que só é frequentada por Espíritos de segunda ordem, encarregados dos interesses planetários – da agricultura, por exemplo, ou das trocas, e da boa ordem que deve ser mantida entre os serviçais. Dessa forma, todas as casas situadas no solo só dispõem do térreo e do andar superior: um destinado aos Espíritos que atuam sob a direção do senhor, e acessível aos animais; o outro, reservado tão-somente ao Espírito, que aí reside apenas ocasionalmente. É isso que explica o fato de vermos, nas diversas habitações de Júpiter, nesta, por exemplo, e na de Zoroastro, uma escadaria e, até mesmo, uma rampa. Aquele que rasa a água, como a andorinha, e que pode correr sobre as hastes do trigo sem as curvar, passa muito bem sem a escadaria e sem a rampa para penetrar em sua casa; mas os Espíritos inferiores não têm o voo tão fácil; não se elevam senão aos solavancos e nem sempre a rampa lhes é inútil. Enfim, a escadaria é de absoluta necessidade para os animais-serviçais, que apenas caminham como nós. Estes últimos têm seus pavilhões, aliás muito elegantes, e que fazem parte de todas as grandes habitações; mas suas funções os chamam, constantemente, à casa do senhor: é necessário facilitar-lhes a entrada e o percurso interior.

Daí essas construções bizarras, cuja base lembra muito nossos edifícios terrestres, mas deles diferindo por completo na parte superior.

Esta se distingue, sobretudo, por uma originalidade que seríamos absolutamente incapazes de imitar. É uma espécie de flecha aérea que se balança no alto do edifício, acima da grande janela e de seu singular coroamento. Esse frágil mastaréu, fácil de ser deslocado, destina-se, no pensamento do artista, a não deixar o lugar que lhe está assinalado porque, sem se apoiar em coisa alguma na parte superior, complementa-lhe a decoração; lamento que a dimensão da prancha não lhe tenha permitido encontrar um lugar aí. Quanto à morada aérea de Mozart, apenas constato a sua existência: os limites deste artigo não permitem que me estenda sobre este assunto.

Não terminarei, entretanto, sem dar explicações a propósito do gênero de ornamentos que o grande artista escolheu para sua morada. Nele é fácil reconhecer a lembrança de nossa música terrestre: a clave de sol é ali frequentemente reproduzida e, coisa bizarra, jamais a clave de fá! Na decoração do térreo, encontramos um arco, uma espécie de tiorba ou bandolim, uma lira e uma pauta completa de música. Mais alto, é uma grande janela que lembra vagamente à forma de um órgão; as outras têm a aparência de grandes notas, enquanto notas menores são abundantes por toda a fachada.

Seria erro concluir que a música de Júpiter seja comparável à nossa, e que se represente pelos mesmos sinais: Mozart explicou-se sobre isso, de maneira a não deixar qualquer dúvida; mas na decoração de suas casas os Espíritos lembram, com prazer, a missão terrestre que lhes fez merecer a encarnação em Júpiter e que melhor resume o caráter de sua inteligência. Assim, na residência de Zoroastro, os astros e a chama constituem os únicos detalhes da decoração.

Há mais; parece que esse simbolismo tem suas regras e seus segredos. Nem todos esses ornamentos estão dispostos ao acaso: têm sua ordem lógica e sua significação precisa; mas é uma arte que os Espíritos de Júpiter renunciam a nos fazer entender, pelo menos até hoje, e sobre a qual não se explicam de bom grado.

Nossos velhos arquitetos também empregaram o simbolismo na decoração de suas catedrais; a torre de Saint-Jacques não passa de um poema hermético, a acreditarmos na tradição. Nada há, pois, para nos admirarmos da originalidade da decoração arquitetônica em Júpiter: se contradiz nossas ideias sobre a arte humana é que, com efeito, existe um completo abismo entre uma arquitetura que vive e fala, e o primitivismo da nossa, que nada exprime. Nisso, como em qualquer outra coisa, a prudência nos proíbe esse erro do relativo, que quer tudo reduzir às proporções e aos hábitos do homem terreno. Se os habitantes de Júpiter morassem como nós, comessem, vivessem, dormissem e andassem como nós, não haveria grande vantagem em ascender até lá. É justamente porque seu planeta difere bastante do nosso que desejamos conhecê-lo e com ele sonhar como nossa futura morada!

De minha parte, não terei perdido tempo e serei muito feliz por me haverem os Espíritos escolhido como intérprete, se seus desenhos e inscrições inspirarem a um só crente o desejo de subir mais rápido para Julnius, e a coragem de tudo fazer para o conseguir.

Victorien Sardou.

 

O autor dessa interessante descrição é um desses adeptos fervorosos e esclarecidos, que não temem confessar altivamente suas crenças e se colocam acima da crítica das pessoas que não acreditam em nada que escape do seu círculo de ideias.

Ligar o nome a uma doutrina nova, afrontando os sarcasmos, é uma coragem que não é dada a todo mundo; por isso, felicitamos o Sr. V. Sardou. Seu trabalho revela o distinto escritor que, embora ainda jovem, já conquistou um honroso lugar na literatura, aliando ao talento de escrever os conhecimentos profundos de um sábio, prova evidente de que o Espiritismo não recruta seus prosélitos entre os tolos e os ignorantes. Fazemos votos porque o Sr. Sardou complete o mais breve possível o seu trabalho, em tão boa hora iniciado. Se os astrônomos nos desvelam, por suas sábias pesquisas, o mecanismo do Universo, por suas revelações os Espíritos nos dão a conhecer o seu estado moral, e isso, como dizem, objetivando estimular-nos ao bem, a fim de merecermos uma existência melhor.

 

Allan Kardec



[1] REVISTA ESPÍRITA – agosto/1858 – Allan Kardec

[2] Entretanto, faz-se necessário excetuar certos animais providos de asas, reservados para os serviços aéreos e para as tarefas que, entre nós, exigiriam a utilização de vigamentos para construção. É uma transformação da ave, como os animais descritos acima resultam de uma transformação dos quadrúpedes.

[3] Sendo de 0,23 a densidade de Júpiter, isto é, pouco menos de um quarto da densidade da Terra, o Espírito nada diz que não seja verossímil. Concebe-se que tudo é relativo e que nesse globo etéreo, como ele próprio, tudo seja etéreo.