sexta-feira, 4 de julho de 2025

O VOO DA LIBERDADE E AS TENSÕES NA GAVETA DO SILÊNCIO[1],[2]

 


Wilson Garcia[3]

 

O movimento espírita brasileiro, em sua vertente religiosa, tem longa tradição no estudo e aplicação cotidiana da ética cristã, especialmente centrada na mensagem moral transmitida por Jesus. Paulo de Tarso e os evangelistas figuram entre os protagonistas permanentes dessas abordagens, amplamente difundidas em livros, revistas e periódicos espíritas.

No entanto, é notável a pouca atenção que esse mesmo movimento dedica às questões históricas envolvendo Jesus e outras figuras do cristianismo nascente, como Paulo de Tarso. Os estudos históricos, entretanto, são frequentemente ignorados ou relegados ao silêncio institucional, assim como aqueles que, como Boberg, se lançam com força sobre o assunto. Os autores mais presentes na divulgação da moral cristã em espiritismo, comprometidos às vezes com cursos específicos, sequer consideram documentos, tal este livro, em suas menções bibliográficas.

José Lázaro Boberg constitui uma das exceções nesse panorama. Espírita e livre-pensador dedicado ao estudo profundo da história do cristianismo, ele se posiciona claramente numa perspectiva laica, afastada das visões dogmáticas tradicionais. Boberg enfrenta com coragem as fontes históricas e acadêmicas mais recentes, como os estudos desenvolvidos por pesquisadores renomados, entre eles John Dominic Crossan. Autor de obras fundamentais, como “O Cristo de Paulo de Tarso” (2020), Boberg acaba de lançar “O voo da liberdade – brilhe a vossa luz!”, reafirmando seu compromisso em unir espiritismo e pesquisa histórica.

Neste seu mais recente livro, Boberg marca com ênfase questões essenciais como a autonomia moral e o livre arbítrio dos indivíduos. Esses temas são abordados com clareza, ressaltando a importância da liberdade espiritual para a construção consciente do destino humano, alinhando-se plenamente à filosofia espírita.

Boberg destaca ainda a importância do conhecimento histórico como enriquecimento da racionalidade espírita, afastando-se das abordagens dogmáticas e incentivando uma compreensão mais profunda e humanizada de Jesus. Liberta a figura de Jesus dos tradicionais laços dogmáticos, posicionando-o como modelo universal de evolução moral e liberdade espiritual, fundamentos essenciais para o espiritismo genuinamente kardecista.

Um dos pontos centrais debatidos pelo autor é a conhecida afirmação: “O Espiritismo é o Cristianismo Redivivo”, que, embora amplamente difundida no movimento espírita brasileiro, não é originária da codificação kardequiana, mas fruto das obras psicografadas por Francisco Cândido Xavier através do espírito Humberto de Campos (Irmão X). Boberg recorda oportunamente que Allan Kardec, em “O Evangelho segundo o Espiritismo”, esclarece com precisão que a moral ensinada por Jesus transcende fronteiras religiosas, sendo aplicável universalmente a todas as tradições espirituais e filosóficas.

Boberg tem plena consciência das resistências internas e compreende que o silêncio espírita sobre os estudos históricos do cristianismo decorre, em grande parte, do impacto psicológico e existencial que essas revelações provocam em adeptos acostumados com uma visão consoladora, porém, às vezes, avessa a desafios intelectuais mais profundos. Ainda assim, acredita que confrontar essas questões com lucidez e coragem fortalece e legitima a razão espírita.

Ao final de “O voo da liberdade”, Boberg oferece uma valiosa síntese de mais de trinta teses aceitas pela academia contemporânea acerca do cristianismo primitivo. Uma delas destaca:

Os Evangelhos atualmente disponíveis são narrativas nas quais a memória de Jesus é embelezada por elementos místicos que exprimem a fé dos primeiros cristãos, e por ficções plausíveis que melhoram a história a ser contada para os ouvintes da época.

Esses estudos, que aproximam o Jesus histórico do contexto sociocultural em que viveu, contribuem significativamente para torná-lo mais humano e acessível, dialogando assim com a proposta espírita de um Cristo próximo, racional e profundamente ético.

Ao trazer tais discussões para a esfera pública espírita, Boberg presta um serviço inestimável à maturidade intelectual e espiritual do movimento, rompendo com o silêncio e incentivando uma reflexão crítica necessária e urgente.

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