terça-feira, 15 de outubro de 2024

O FALSO HOME[1]

 


Allan Kardec

 

Lia-se há pouco tempo, nos jornais de Lyon, o seguinte anúncio, veiculado igualmente em cartazes fixados nas paredes da cidade:

O Sr. Hume, o célebre médium americano, que teve a honra de fazer suas experiências perante S. M. o Imperador[2], a partir de quinta-feira, 1º de abril, dará sessões de espiritualismo no grande teatro de Lyon. Produzirá aparições etc., etc. Poltronas especiais serão dispostas no teatro para os senhores médicos e sábios, a fim de poderem assegurar-se de que nada foi preparado. As sessões serão variadas pelas experiências da célebre vidente, Sra..., sonâmbula extra lúcida, que reproduzirá sucessivamente todos os sentimentos, à vontade dos espectadores. Preço dos lugares: 5 francos – primeira classe; e 3 francos – segunda classe.

Os antagonistas do Sr. Home (alguns escrevem Hume) não quiseram perder essa ocasião de o expor ao ridículo. Em seu ardente desejo de fisgá-lo, acolheram essa grosseira mistificação com uma solicitude que bem atesta a sua má-fé e o seu desprezo pela verdade, porquanto, antes de atirar pedras nos outros é preciso assegurar-se de que elas não errarão o alvo. Mas a paixão é cega, não raciocina e, muitas vezes, engana-se a si mesma na tentativa de prejudicar os outros. “Eis, pois”, exclamaram jubilosos, “esse homem tão glorificado, reduzido a mostrar-se nos palcos, dando espetáculos a tanto por pessoa!” E os seus jornais a darem crédito ao fato sem maior exame. Infelizmente, para eles, sua alegria não durou muito.

Mais que depressa, nos escreveram de Lyon para obter informações que pudessem ajudar a desmascarar a fraude, e isso não foi difícil, graças, sobretudo, ao zelo de numerosos adeptos que o Espiritismo conta naquela cidade. Assim que o diretor do teatro soube de que negócio se tratava, imediatamente dirigiu aos jornais a carta seguinte:

Senhor redator: Apresso-me a informar que o espetáculo anunciado para quinta-feira, 1º de abril, no grande teatro, não mais será realizado. Eu julgava haver cedido a sala[3] ao Sr. Home, e não ao Sr. Lambert Laroche, que se diz Hume. As pessoas que antecipadamente obtiveram camarotes ou cadeiras numeradas na plateia poderão apresentar-se à bilheteria para serem reembolsadas.

Por outro lado, o acima mencionado Lambert Laroche (natural de Langres), interpelado acerca de sua identidade, achou por bem responder nos seguintes termos, que reproduzimos na íntegra, visto não desejarmos absolutamente que ele nos possa acusar da menor alteração:

“Vós me submeteste diverças extra de vossas correspondência de Paris, das quales resulta que um Sr. Home que dá cessão nalgum salão da capitale, se acha nesse momento na Intália e não pode por consequênça se achar em Lyon. Senhor, eu ingnoro 1º conhecer esse Sr. Home, 2º eu não cei quale é o seu talento, 3º eu nunca tive nada de comum cum esse Sr. Home, 4º eu trabaiei e trabaio cum nomi de guerra que é Hume do qual eu justifico pelos artigo de jornais du istrangeiro e francês que vos é submetido 5º viajo cum dois cumpanhêro meu gênero de isperiença consiste em espiritualismo ou evocação vizão, e numa palavra reprodução das idéa do ispectador por um sugeito, minha ispecialidade é de operá por esse procedimento sobre as pessoa istrangeiras, como se pude ver nos jornais que vein da espanha e da africa.

Assim Sr. redator, vos demonstro que eu não quinz tomar o nome desse pretendido Home que vós dizeis em reputassão, o meu é suficientemente conhesido por sua grande notoredade e pelas isperiença que possul. Recebei Sr. redator minhas saudassão atensiosa[4].

Cremos inútil dizer que o Sr. Lambert Laroche deixou Lyon com as honras da guerra. Por certo irá a outros lugares em busca de pessoas mais fáceis de enganar. Acrescentamos somente uma palavra para exprimir nosso pesar, por vermos com que deplorável avidez certas pessoas, que se dizem sérias, acolhem tudo quanto possa servir à sua animosidade. O Espiritismo goza hoje de muita reputação para temer a charlatanice; não é mais aviltado pelos charlatães do que a verdadeira ciência médica pelos curandeiros das encruzilhadas; por toda parte encontra, sobretudo entre as pessoas esclarecidas, zelosos e numerosos defensores, que sabem afrontar as zombarias. Longe de prejudicar, o caso de Lyon apenas serve à sua propagação, ao chamar a atenção dos indecisos para a realidade. Quem sabe até se não foi provocado com essa finalidade por um poder superior? Quem pode se vangloriar de sondar os desígnios da Providência? Quanto aos adversários do Espiritismo, permite-se-lhes rir, jamais caluniar; alguns anos ainda e veremos quem dará a última palavra. Se é lógico duvidar daquilo que não se conhece, é sempre imprudente inscrever-se em falso contra as ideias novas que, mais cedo ou mais tarde, podem dar um humilhante desmentido à nossa perspicácia: a História aí está para o provar. Aqueles que, no seu orgulho, aparentam piedade dos adeptos da Doutrina Espírita, estarão tão elevados quanto imaginam? Esses Espíritos, que ridicularizam, recomendam que se faça o bem e proíbem o mal, mesmo aos inimigos; eles nos dizem que nos rebaixamos pelo só desejo do mal. Qual é, pois, o mais elevado – o que procura fazer o mal ou aquele que não guarda em seu coração nem ódio nem rancor?

O Sr. Home regressou a Paris há pouco tempo; mas deve partir sem demora para a Escócia e, de lá, para São Petersburgo.



[1] REVISTA ESPÍRITA – maio/1858 – Allan Kardec

[2] N. do T.: Napoleão III. Último Imperador francês, o sobrinho de Napoleão Bonaparte não disfarçava seu interesse pela Doutrina Espírita. A pedido seu, o próprio Allan Kardec compareceu às Tulherias para tratar da doutrina exposta em O Livro dos Espíritos.

Sabe-se, inclusive, que memoráveis sessões espíritas de efeitos físicos foram realizadas no antigo palácio de Catarina de Médicis, na presença do Soberano e da Imperatriz Eugênia. Excessivamente modesto e discreto, traços marcantes de sua personalidade, jamais o Codificador fez alarde desse fato.

[3]

[4] N. do T.: Grifos nossos. A tradução aqui apresentada tenta reproduzir, embora sem muito sucesso, o linguajar e a escrita de uma pessoa semianalfabeta.

Torna-se bastante evidente a pouca cultura do missivista.

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