terça-feira, 5 de março de 2024

TEORIA DO MÓVEL DE NOSSAS AÇÕES[1]

 


Allan Kardec

 

O Sr. R..., correspondente do Instituto de França e um dos membros mais eminentes da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, desenvolveu as seguintes considerações na sessão do dia 14 de setembro, como corolário da teoria que acabava de ser dada a propósito do Mal do Medo, e que relatamos mais acima.

Resulta de todas as comunicações que nos são dadas pelos Espíritos, que eles exercem uma influência direta sobre nossas ações, uns nos induzindo ao bem, outros ao mal. São Luís acaba de dizer-nos:

Os Espíritos malévolos adoram rir; acautelai-vos; quem julga dizer uma coisa agradável àqueles que o cercam, divertindo uma sociedade com suas brincadeiras ou atitudes, por vezes se engana, o que frequentemente acontece, quando pensa que tudo isso vem de si próprio. Os Espíritos levianos que o rodeiam com ele se identificam e pouco a pouco o enganam a respeito de seus próprios pensamentos, dando-se o mesmo com aqueles que o ouvem.

Disso se segue que aquilo que dizemos nem sempre vem de nós; que muitas vezes não somos, como os médiuns falantes, mais que intérpretes do pensamento de um Espírito estranho, que com o nosso se identificou. Os fatos vêm apoiar essa teoria, provando, também, que muito frequentemente nossos atos são a consequência desse pensamento que nos é sugerido. O homem que pratica o mal cede, pois, a uma sugestão quando é bastante fraco para não resistir e quando cerra os ouvidos à voz da consciência, que pode ser a sua própria voz, ou a de um Espírito bom que, por seus avisos, combate a influência de um Espírito mau.

Segundo a doutrina vulgar, o homem tiraria de si mesmo todos os seus instintos. Proviriam esses instintos tanto de sua organização física, da qual não poderia ser responsável, quanto de sua própria natureza, na qual pode encontrar uma desculpa a seus próprios olhos, dizendo que não é culpa sua ter sido assim criado. A Doutrina Espírita, evidentemente, é mais moral; admite no homem o livre-arbítrio em toda a sua plenitude.

Dizendo que se fizer o mal estará cedendo a uma má sugestão, deixa-lhe toda a responsabilidade, desde que lhe reconhece o poder de resistir, coisa evidentemente mais fácil do que se tivesse de lutar contra sua própria natureza. Assim, segundo a Doutrina Espírita, não há arrastamento irresistível: o homem pode sempre fechar os ouvidos à voz oculta que, em seu foro íntimo, o convida ao mal, da mesma forma que os pode fechar à voz material daquele que lhe fala; e o pode por sua vontade, pedindo a Deus a força necessária e reclamando, para isso, a assistência dos Espíritos bons. É o que Jesus nos ensina em sua sublime oração do Pater, quando nos faz dizer: “Não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal”.

Quando tomamos para texto de uma de nossas perguntas a pequena anedota que acabamos de relatar, não imaginávamos os desdobramentos que iria ter. Estamos duplamente feliz pelas belas palavras que ela mereceu de São Luís e de nosso honrado colega. Se, desde muito tempo, não tivéssemos consciência quanto à elevada capacidade deste último, e sobre seus profundos conhecimentos em matéria de Espiritismo, seríamos tentados a crer que se deve a ele a aplicação daquela teoria, e que dele se serviu São Luís para completar o seu ensinamento. Vamos acrescentar nossas próprias reflexões:

Essa teoria da causa excitadora de nossos atos evidentemente ressalta de todo o ensino dado pelos Espíritos; não apenas é de sublime moralidade, mas ainda reabilita o homem aos seus próprios olhos; mostra-o livre para sacudir o jugo do obsessor,  da mesma forma que também é livre para fechar sua casa aos importunos: já não se assemelha a uma máquina, agindo por um impulso independente da vontade; é um ser que raciocina, ouve, julga e escolhe livremente entre dois conselhos. Acrescentemos que, a despeito disto, o homem não está privado de sua iniciativa, não deixando de utilizá-la por movimento próprio desde que, em última análise, nada mais é que um Espírito encarnado, conservando, sob o envoltório corporal, as qualidades e os defeitos que possuía como Espírito. As faltas que cometemos têm, pois, sua fonte primeira na imperfeição de nosso Espírito, que ainda não alcançou a superioridade moral que terá um dia, mas que, nem por isso, deixa de ter o seu livre-arbítrio; a vida corporal é-lhe concedida para se purgar das imperfeições através das provas que nela sofre, e são precisamente essas imperfeições que o tornam mais frágil e mais acessível às sugestões de outros Espíritos imperfeitos, que se aproveitam para tentar fazê-lo sucumbir na luta que empreende. Se sair vencedor, elevar-se-á; se fracassar, continuará o que era, nem pior, nem melhor: é uma prova a recomeçar, podendo durar, assim, muito tempo. Quanto mais se depurar, mais diminuirão seus lados fracos e menos se entregará àqueles que o instigam ao mal; sua força moral crescerá em razão de sua elevação e os Espíritos maus se afastarão.

Quais são, pois, esses Espíritos maus? Serão aqueles que chamamos demônios? Não são demônios, na acepção vulgar do termo, desde que por isso se entende uma classe de seres criados para o mal, e perpetuamente votados ao mal. Ora, dizem os Espíritos que todos melhoram num tempo mais ou menos longo, conforme sua vontade; porém, enquanto são imperfeitos podem fazer o mal, assim como a água que, não purificada, pode espalhar miasmas pútridos e mórbidos. Na condição de Espíritos encarnados eles se depuram, desde que, para isso, façam aquilo que for necessário; como desencarnados, sofrem as consequências do que fizeram ou deixaram de fazer para se melhorarem, consequências que também experimentam quando estão na Terra, porquanto as vicissitudes da vida constituem, ao mesmo tempo, expiações e provas. Quando encarnados, todos os Espíritos, mais ou menos bons, constituem a espécie humana. Como nossa Terra é um dos mundos menos adiantados, aqui se encontram mais Espíritos maus do que bons; daí por que nela vemos tanta perversidade. Empreguemos, pois, todos os nossos esforços para não regressarmos a ela depois desta estação, e para merecermos habitar um mundo melhor, num desses orbes privilegiados onde o bem reina absoluto e onde não nos lembraremos de nossa passagem na Terra senão como um sonho mau.



[1] Revista Espírita – outubro/1858 – Allan Kardec

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