Allan Kardec
Há alguns meses um dos nossos
médiuns, o Sr. T..., que frequentemente cai em sonambulismo espontâneo, sob a
magnetização dos Espíritos, nos disse que naquele momento a ilha Maurício
estava sendo devastada por uma terrível epidemia, que dizimava a população.
Esta previsão realizou-se, até com circunstâncias agravantes. Acabamos de
receber de um dos nossos correspondentes da ilha Maurício uma carta, datada de
8 de maio, da qual extraímos as passagens seguintes.
Vários Espíritos nos anunciaram, uns claramente, outros
em termos proféticos, um flagelo destruidor prestes a nos fulminar. Tomamos
estas revelações do ponto de vista moral, e não do ponto de vista físico. De
repente uma moléstia estranha irrompe nesta pobre ilha; uma febre sem nome, que
reveste todas as formas, começa suavemente, hipocritamente, depois aumenta e
derruba a todos os que pode atingir. É agora uma verdadeira peste; os médicos
não a entendem; até agora, nenhum dos que foram atingidos se curaram. São
terríveis acessos que vos prostram e vos torturam durante doze horas no mínimo,
atacando, cada um por sua vez, cada órgão importante; depois o mal cessa
durante um ou dois dias, deixando o doente acabrunhado até o próximo acesso, e
assim se vai, mais ou menos rapidamente, para o termo fatal.
Para mim, vejo em tudo isto um desses flagelos
anunciados, que devem retirar do mundo uma parte da geração presente, e
destinados a operar uma renovação tornada necessária. Vou dar-vos um exemplo
das infâmias que aqui se passam.
O quinino em dose muito forte detém os acessos apenas
por alguns dias; é o único específico capaz de interromper, pelo menos
momentaneamente, os progressos da cruel moléstia que nos dizima.
Os negociantes e os farmacêuticos o tinham em certa
quantidade, e lhes custava cerca de 7 fr. a onça. Ora, como esse remédio era
forçosamente comprado por todo o mundo, aqueles senhores aproveitaram a ocasião
para elevar o preço da poção de um indivíduo, de 1 fr., preço ordinário, até 15
fr. Depois o quinino veio a faltar; isto é, os que o tinham, ou o recebiam pelo
correio, o vendiam ao preço fabuloso de 2 fr. 50 c. o grão, a retalho, e a 675
e 800 fr. a onça, no atacado. Numa poção entram pelo menos 30 grãos,
totalizando 75 fr. a poção. Assim, só os ricos podiam comprar e aqueles
negociantes viam com indiferença milhares de infelizes morrendo ao seu redor,
por falta do dinheiro necessário para adquirir o medicamento.
Que dizeis disto? Ah! É história! Ainda neste momento o
quinino chega em quantidade; as farmácias o têm em abundância, mas não querem
vender a dose por menos de 12 fr. 50 c. Por isso os pobres morrem sempre,
olhando desolados esse tesouro que não podem alcançar!
Eu mesmo fui atingido pela epidemia e estou na quarta
recaída. Arruíno-me com o quinino. Isto prolonga a minha existência, mas, como
receio, se as recaídas continuarem, caro senhor, palavra de honra! É muito
provável que em pouco tempo terei o prazer de assistir como Espírito às vossas
sessões parisienses e nelas tomar parte, se Deus o permitir. Uma vez no mundo
dos Espíritos, estarei mais perto de vós e da Sociedade do que estou na ilha
Maurício. Num pensamento transporto-me às vossas sessões, sem fadiga e sem
temer o mau tempo. Aliás, não tenho o menor receio, eu vo-lo juro; sou muito
sinceramente espírita para isto. Todas as minhas precauções estão tomadas; e se
vier a deixar este mundo, sereis avisado.
Enquanto espero, caro senhor, tende a bondade de pedir
aos meus irmãos da Sociedade Espírita que unam as suas às nossas preces pelas
infelizes vítimas da epidemia, pobres Espíritos muito materiais, na maioria, e
cujo desprendimento deve ser penoso e longo. Oremos também por aqueles, muito
mais infelizes que, ao flagelo da moléstia, juntam o da desumanidade.
Nosso pequeno grupo está disperso há três meses; todos
os membros foram mais ou menos atingidos, mas, até agora, nenhum morreu.
Recebei etc.
É preciso ser espírita de
verdade para encarar a morte com este sangue-frio e essa indiferença, quando
ela estende seus malefícios em redor de nós e quando se sentem os seus ataques.
É que, em semelhante caso, a fé séria no futuro, tal qual só o Espiritismo pode
dar, proporciona uma força moral que, ela mesma, é um poderoso preservativo,
como foi dito a propósito da cólera. (Revista
de novembro de 1865). Isto não quer dizer que nas epidemias os
espíritas sejam necessariamente poupados, mas, em tais casos eles têm sido, até
agora, os menos atingidos. Escusado dizer que se trata de espíritas de coração,
e não dos que só o são em aparência.
Os flagelos destruidores, que
devem causar danos à Humanidade, não sobre um ponto do globo, mas em toda
parte, são em toda parte pressentidos pelos Espíritos.
A seguinte comunicação, verbal e
espontânea, foi dada sobre o assunto, logo após a leitura da carta acima:
(Sociedade de Paris, 21 de junho de 1867 – Médium: Sr.
Morin, em sonambulismo espontâneo)
Avança a hora, a hora marcada no grande e perpétuo relógio
do infinito, a hora na qual vai começar a operar-se a transformação de vosso
globo, para o fazer gravitar rumo à perfeição. Muitas vezes vos foi dito que os
mais terríveis flagelos dizimariam as populações; não é preciso que tudo morra
para se regenerar? Mas, o que é isto? A morte não é senão a transformação da
matéria; o Espírito não morre, apenas muda de habitação. Observai e vereis
começar a realização de todas essas previsões. Oh! Como são felizes aqueles que
nessas terríveis provações foram tocados pela fé espírita sincera! Permanecem
calmos no meio da tormenta, como o marinheiro aguerrido em meio à tempestade.
Eu, neste momento personalidade espiritual, muitas vezes
sou acusado de brutalidade, de dureza e de insensibilidade pelas personalidades
terrestres!... É verdade, contemplo com calma todos esses flagelos
destruidores, todos esses terríveis sofrimentos físicos. Sim, atravesso sem me
comover todas essas planícies devastadas, juncadas de restos humanos! Mas se o
posso fazer, é que minha visão espiritual vai além desses sofrimentos e, antecipando-se
ao futuro, ela se apoia no bem-estar geral que será a consequência desses males
passageiros para a geração futura, para vós mesmos, que fareis parte dessa
geração e que, então, recolhereis os frutos que tiverdes semeado.
Espírito de conjunto, olhando do alto de uma esfera onde
habita (muitas vezes ele fala de si na terceira pessoa), seu olhar fica em
branco; entretanto, sua alma palpita, seu coração sangra em face de todas as
misérias que a Humanidade deve atravessar, mas a visão espiritual repousa do
outro lado do horizonte, contemplando o resultado que será a sua consequência
certa.
A grande emigração é útil e aproxima-se a hora em que deve
efetuar-se... ela já começa... A quem será fatal ou proveitosa? Olhai bem,
observadores; considerai os atos desses exploradores dos flagelos humanos, e
distinguireis, mesmo com os olhos do corpo, os homens predestinados à
decadência. Vede-os ávidos de honras, inflexíveis no ganho, presos, como sua
vida, a todas as posses terrenas, e sofrendo mil mortes pela perda de uma
parcela do que, entretanto, precisarão deixar... Como será terrível para eles a
pena de talião, porquanto, no exílio que os espera, lhes recusarão um copo de
água para estancar a sede!... Olhai-os e neles reconhecereis, sob as riquezas
que acumulam à custa dos infelizes, os futuros humanos decaídos! Considerai
seus trabalhos, e vossa consciência vos dirá se esses trabalhos devem ser pagos
lá no alto, ou aqui embaixo! Olhai-os bem, homens de boa vontade, e vereis que
o joio começa, desde esta Terra, a ser separado do bom grão.
Minha alma é forte, minha vontade é grande! – Minha alma
é forte porque sua força é o resultado de um trabalho coletivo de alma a alma;
minha vontade é grande porque tem como ponto de apoio a imensa coluna formada
por todos os sentimentos de justiça e de bem, de amor e de caridade. Eis por
que sou forte, eis por que sou calmo para olhar; eis por que seu coração, que
bate quase a estourar em seu peito, não se comove. Se a decomposição é o
instrumento necessário da transformação, assiste ó minha alma, calma e
impassível, a essa destruição!”
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