terça-feira, 10 de março de 2020

O ESPIRITISMO E A CÓLERA[1]



Allan Kardec

Sabe-se de que acusações eram vítimas os primeiros cristãos em Roma. Não havia crimes de que não fossem capazes, nem desgraças públicas que, no dizer de seus inimigos, eles não fossem os autores voluntários ou a causa involuntária, porque sua influência era perniciosa. Dentro de alguns séculos ter-se-á dificuldade em crer que espíritos fortes do século dezenove tenham tentado ressuscitar essas ideias no que concerne aos espíritas, declarando-os autores de todas as perturbações da sociedade, comparando sua doutrina à peste e estimulando a sua perseguição.
Isto é história impressa; estas palavras foram despejadas de mais de uma cátedra evangélica; mas o que é mais surpreendente, é que são encontradas nos jornais, que dizem falar em nome da razão e se arvoram em campeões de todas as liberdades e, em particular, da liberdade de consciência. Já possuímos uma coleção assaz curiosa, de amenidades desse gênero, que nos propomos mais tarde reunir num volume, para maior glória de seus autores e para edificação da posteridade. Assim, seremos gratos aos que nos ajudarem a enriquecer essa coleção, enviando-nos tudo o que, em seu conhecimento, apareceu ou aparecerá a respeito. Comparando esses documentos da história do Espiritismo com os da história dos primeiros séculos da Igreja, ficar-se-á surpreso de neles encontrar pensamentos e expressões idênticos. Aí só falta uma coisa: as feras do circo, o que já é um progresso.
Sendo, pois, o Espiritismo uma peste eminentemente contagiosa, uma vez que, segundo seus adversários, invade com terrível rapidez todas as classes da sociedade, tem certa analogia com a cólera. Assim, neste último levante, certos críticos o chamaram jocosamente de Spirito-morbus, e nada haveria de surpreendente se o acusassem de haver importado o flagelo; porque é notável que dois campos diametralmente opostos se deem as mãos para o combater. Em um, ao que nos disseram, cunharam uma medalha com a efígie de São Bento, que basta usar para se preservar do contágio espírita. Não se diz se esse meio cura os que são atingidos pelo mal.
Realmente há uma analogia entre o Espiritismo e a cólera: é o medo que um e outro causam a certa a gente. Mas consideremos a coisa de um ponto de vista mais sério. Eis o que nos escreveram de Constantinopla:
“...Os jornais vos informaram do rigor com que o terrível flagelo acaba de assolar nossa cidade e seus arredores, posto atenuasse seus efeitos desastrosos. Algumas pessoas, que se dizem bem informadas, elevam o número de coléricos mortos a setenta mil, e outros a cerca de cem mil. A verdade é que fomos rudemente provados, e podeis imaginar as dores e o luto geral de nossas populações. É principalmente nestes tristes momentos dessa horrenda epidemia que a fé e a crença espíritas dão coragem; acabamos de dar a mais verídica das provas. Quem sabe se não devemos a essa calma da alma, a essa persuasão da imortalidade, a essa certeza das existências sucessivas, em que os seres são recompensados segundo seu mérito e seu grau de adiantamento; quem sabe, digo eu, se não é por essas crenças, bases de nossa bela doutrina, que nós todos, espíritas de Constantinopla que, como sabeis, somos bastante numerosos, devemos ter sido preservados do flagelo que se espalhou e ainda se espalha à nossa volta! Digo isto tanto mais quanto foi constatado, aqui e alhures, que o medo é o prenúncio mais perigoso da cólera, como a ignorância infelizmente se torna uma fonte de contágio...”
Repos Filho, advogado

Certamente seria absurdo acreditar que a fé espírita fosse um diploma de garantia contra a cólera. Mas, como está cientificamente reconhecido, o medo, ao mesmo tempo enfraquecendo o moral e o físico, torna as pessoas mais impressionáveis e mais susceptíveis de serem acometidas pelas doenças infecciosas; evidente, assim, que toda causa tendente a fortalecer o moral é um preservativo. Isto hoje é tão bem compreendido que se evita, tanto quanto possível, quer nos relatórios, quer nas disposições materiais, aquilo que possa ferir a imaginação por seu aspecto lúgubre.
Sem dúvida os espíritas podem morrer de cólera, como todo o mundo, porque seu corpo não é mais imortal que o dos outros e porque, quando chegar a hora, é preciso partir, seja por esta ou por outra causa. A cólera é uma das causas que não tem como particularidade senão levar maior número de pessoas ao mesmo tempo, o que produz mais sensação. Parte-se em massa, em vez de individualmente – eis toda a diferença. Mas a certeza que têm do futuro e, sobretudo, o conhecimento desse futuro, que corresponde a todas as aspirações e satisfaz à razão, fazem que absolutamente não lamentem a Terra, onde se consideram em exílio passageiro. Enquanto em presença da morte o incrédulo só vê o nada, ou pergunta o que vai ser de si, o espírita sabe que, se morrer, apenas será despojado de um invólucro material, sujeito aos sofrimentos e às vicissitudes da vida, mas será sempre ele, com um corpo etéreo, inacessível à dor; que gozará de percepções novas e de maiores faculdades; que vai encontrar aqueles a quem amou e que o esperam no limiar da verdadeira vida, da vida imperecível.
Quanto aos bens materiais, sabe que deles não mais necessitará, e que os prazeres que proporcionam serão substituídos por outros mais puros e mais invejáveis, que não deixam em seu rasto nem amarguras nem pesares. Assim, abandona-os sem dificuldade e com alegria, lamentando os que, ficando na Terra, ainda irão precisar deles. É como aquele que, tornando-se rico, abandona seus trajes velhos aos infelizes. Por isso, ao deixar os amigos, lhes diz: não me lastimeis; não choreis minha morte; antes me felicitai, por estar livre das preocupações da vida e por entrar num mundo radioso, de onde vos esperarei.
Quem quer que tenha lido e meditado nossa obra O Céu e o Inferno segundo o Espiritismo e, sobretudo, o capítulo sobre o temor da morte, compreenderá a força moral que os espíritas haurem em sua crença, diante do flagelo que dizima as populações.
Segue-se daí que devam negligenciar as precauções necessárias em casos semelhantes e baixar a cabeça ante o perigo? De modo algum: tomarão todas as cautelas exigidas pela prudência e uma higiene racional, porque não são fatalistas e porque, se não temem a morte, sabem que não devem procurá-la. Ora, não levar em conta as medidas sanitárias que os podem preservar seria verdadeiro suicídio, cujas consequências conhecem muito bem para a elas se exporem. Consideram como um dever velar pela saúde do corpo, porque a saúde é necessária para a realização dos deveres sociais. Se buscam prolongar a vida corporal, não é por apego à Terra, mas para ter mais tempo para progredir, melhorar-se, depurar-se, despojar-se do velho homem e adquirir mais soma de méritos para a vida espiritual. Mas, se a despeito de todos os cuidados, devem sucumbir, tomam o seu partido sem queixa, sabendo que todo progresso traz os seus frutos, que nada do que se adquire em moralidade e em inteligência fica perdido, e que se não desmereceram aos olhos de Deus, serão sempre melhores no outro mundo do que neste, ainda mesmo que ali não ocupem o primeiro lugar. Apenas dizem: Vamos um pouco mais cedo aonde iríamos um pouco mais tarde.
Crê-se que com tais pensamentos não se esteja nas melhores condições de tranquilidade de espírito recomendada pela Ciência? Para o incrédulo ou para o que duvida, a morte tem todos os seus terrores, porque perde tudo e nada espera. Que pode dizer um médico materialista para acalmar nos doentes o medo de morrer? Nada do que certo dia um deles dizia a pobre coitado que tremia à simples palavra cólera: “Ah! enquanto não se está morto, há esperança; depois, em última análise, só se morre uma vez e logo tudo passa; quando se está morto, tudo está acabado; não se sofre mais”. Tudo está acabado quando se está morto, eis o supremo consolo que ele dá.
Ao contrário, o médico espírita diz ao que vê a morte à sua frente:
“Meu amigo, vou empregar todos os recursos da Ciência para vos restabelecer a saúde e vos conservar o maior tempo possível; espero que sejamos bem-sucedidos. Mas a vida do homem está nas mãos de Deus, que nos chama quando terminado nosso tempo de prova na Terra; se a hora de vossa libertação tiver chegado, rejubilai-vos, como o prisioneiro que vai sair da prisão. A morte nos desembaraça do corpo que nos faz sofrer e nos restitui à verdadeira vida, vida isenta de perturbações e misérias. Se deveis partir, não penseis que estejais perdido para os vossos parentes e amigos que ficaram. Não, não estareis menos no meio deles; vê-los-eis e os ouvireis melhor do que podeis fazê-lo neste momento. Vós os aconselhareis, os dirigireis, os inspirareis para o bem. Se, pois, aprouver a Deus vos chamar a Ele, agradecei-lhe por vos restituir a liberdade; se prolongar a vossa estada aqui, agradecei-lhe ainda por vos dar tempo de concluir a vossa tarefa. Na dúvida, submetei-vos sem murmurar à sua santa vontade”.

Tais palavras não são propícias a trazer serenidade à alma, e esta serenidade não secunda a eficácia dos remédios, enquanto a perspectiva do nada mergulha o moribundo na ansiedade do desespero?
Além desta influência moral, o Espiritismo tem outra mais material. Sabe-se que os excessos de todo gênero são uma das causas que mais predispõem para a epidemia reinante. Assim, os médicos recomendam sobriedade em tudo, prescrição salutar, à qual muita gente tem dificuldade de se submeter. Admitindo que o façam, é sem dúvida um ponto importante, mas é de crer-se que uma abstenção momentânea possa reparar instantaneamente as desordens orgânicas causadas por abusos inveterados, degenerados em hábito, que consumiram o corpo e, por isto mesmo, o tornaram acessível aos miasmas deletérios?[2] Fora da cólera, não se sabe quanto é pernicioso o hábito da intemperança nos climas tórridos, e naqueles onde a febre amarela é endêmica? Pois bem! O espírita – por efeito de suas crenças e da maneira pela qual encara o objetivo da vida presente e o resultado da vida futura – modifica profundamente os seus hábitos; em vez de viver para comer, come para viver; não pratica nenhum excesso; não vive como cenobita. Assim, usa de tudo, mas não abusa de nada. Isto deve ser, com certeza, uma consideração preponderante a acrescentar à que faz valer o nosso correspondente de Constantinopla.
Eis, pois, um dos resultados desta doutrina, sobre a qual a incredulidade lança a injúria e o sarcasmo; que ridiculariza, tacha de loucura e, segundo ela, traz perturbação à sociedade. Guardai vossa incredulidade, se ela vos apraz, mas respeitai uma crença que torna felizes e melhores os que a possuem. É loucura acreditar que nem tudo se acaba com a vida? Que depois da morte vivemos uma vida melhor, isenta de preocupações? Que voltamos ao meio daqueles a quem amamos? Que ao morrer não somos mergulhados nas chamas eternas, sem esperança de sair, o que equivaleria ao nada, nem perdidos na ociosa e beatífica contemplação do infinito?
Ah! Quisera Deus fossem loucos todos os homens! Haveria entre eles muito menos crimes e suicídios.
Numerosas comunicações foram dadas sobre a cólera; várias o foram na Sociedade de Paris ou no nosso círculo íntimo.
Reproduzimos apenas duas, fundidas numa só, para evitar as repetições, e porque resumem o pensamento dominante da maioria.

(Sociedade de Paris – Médiuns: Srs. Desliens e Morin)

Já que a cólera é uma questão de atualidade e cada um traz o seu remédio para rechaçar o terrível flagelo, eu me permitirei, se o quiserdes, dar também a minha opinião, embora me pareça pouco provável que tenhais de temer os doentes de maneira cruel.
Entretanto, como é bom que na ocasião não faltem os meios, ponho minha pouca luz à vossa disposição.
Dizem que essa afecção não é imediatamente contagiosa, e os que se acham numa localidade onde ela se alastra, não devem temer cuidar dos doentes.
Não existe remédio universal contra essa moléstia, seja preventivo, seja curativo, considerando-se que o mal se complica de uma porção de circunstâncias que ora se devem ao temperamento dos indivíduos, ora ao seu estado moral e aos seus hábitos, ora às condições climáticas, o que faz que tal remédio dê resultado em certos casos e não em outros. Pode dizer-se que a cada período de invasão e conforme as localidades, o mal deve ser objeto de estudo especial e requer uma medicação diferente. É assim, por exemplo, que em 1832 e 1849 o gelo e o remédio caseiro puderam curar numerosos casos de cólera em certas regiões, mas deram resultados negativos em outras épocas e em países diferentes. Há, pois, uma imensidão de remédios bons, mas nenhum que seja específico. É essa diversidade nos resultados que tem confundido, e ainda confundirá por muito tempo a Ciência, e faz que nós mesmos não possamos dar um remédio aplicável a todo o mundo, porque a natureza do mal não o comporta. Há, contudo, regras gerais, frutos da observação, das quais importa não se afastar.
O melhor preservativo consiste nas precauções de higiene sabiamente recomendadas em todas as instruções dadas a respeito; passam pela limpeza, pelo afastamento de toda causa de insalubridade e dos focos de infecção, e pela abstenção de todos os excessos. A par disto, deve evitar-se a mudança de hábitos alimentares, a não ser para coibir as coisas debilitantes. É preciso evitar também os resfriados, as transições bruscas de temperatura e abster-se, salvo necessidade absoluta, de toda medicação violenta que possa trazer perturbação à economia.
Em casos semelhantes, sabeis que o medo, muitas vezes, é pior que o mal. Infelizmente o sangue-frio não se impõe; mas vós, espíritas, não precisais de nenhum conselho sobre este ponto, pois encarais a morte sem pestanejar e com a calma dada pela fé.
Em caso de ataque, importa não negligenciar os primeiros sintomas. O calor, a dieta, uma transpiração abundante, as fricções, a água de arroz, acrescida de algumas gotas de láudano, são medicamentos pouco custosos e cuja ação é muito eficaz, se aí vierem juntar-se a energia moral e o sangue-frio. Como muitas vezes é difícil conseguir o láudano na ausência de médico, pode-se substitui-lo, em caso de urgência, por qualquer outra composição calmante, especialmente pelo suco de alface, empregado em dose fraca. Aliás, basta ferver algumas folhas de alface em água de arroz.
A confiança em si e em Deus é, em tais circunstâncias, o primeiro elemento da saúde.
Agora, que a vossa saúde material está em segurança, permiti-me pensar em vosso temperamento espiritual, ao qual uma epidemia de outro gênero parece querer atacar. Nada temais desse lado; o mal só poderia atingir os seres a quem falta a verdadeira vida espiritual, porquanto, embora vivos, na verdade já estão mortos. Ao contrário, todos os que se devotarem à doutrina, para sempre e sem segundas intenções, nela colherão novas forças, para fazer frutificar os ensinos cuja transmissão consideramos um dever. Seja qual for, a perseguição é sempre útil; torna conhecidos os corações sólidos e, se alguns galhos mal presos se destacarem do tronco, os jovens rebentos, amadurecidos pelas lutas nas quais triunfarão, haverão de tornar-se homens sérios e prudentes. Assim, pois, muita coragem; marchai intimoratos na via que vos é traçada, e contai com aquele que, na medida de suas forças, jamais vos faltará.
Doutor Demeure




[1] Revista Espírita – Novembro/1865 – Allan Kardec
[2] N. do T.: Grifos nossos. Isto se aplica particularmente às doenças infectocontagiosas, cuja manifestação é facilitada pela queda da imunidade celular, que tem, como parte de sua gênese, o depauperamento do organismo, provocado pelos excessos de toda ordem, de que a síndrome da imunodeficiência adquirida – AIDS – é um dos exemplos mais patentes. Embora utilizando terminologia em voga na época, Allan Kardec captou perfeitamente o espírito da questão; seu pensamento, também neste campo, é judicioso e pleno de atualidade.

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