É ainda sob o golpe da dor
profunda que nos causou a prematura partida do venerável fundador da Doutrina
Espírita, que nos abalançamos a uma tarefa, simples e fácil para suas mãos
sábias e experientes, mas cujo peso e gravidade nos esmagariam, se não
contássemos com o auxílio eficaz dos Espíritos bons e com a indulgência dos
nossos leitores.
Quem, dentre nós, poderia, sem
ser tachado de presunçoso, lisonjear-se de possuir o espírito de método e
organização de que se mostram iluminados todos os trabalhos do mestre? Só a sua
pujante inteligência podia concentrar tantos materiais diversos, triturá-los e
transformá-los, para os espalhar em seguida, como orvalho benfazejo, sobre as
almas desejosas de conhecer e de amar.
Incisivo, conciso, profundo,
sabia agradar e se fazer compreendido numa linguagem simples e elevada, ao
mesmo tempo, tão distanciada do estilo familiar quanto das obscuridades da
metafísica.
Multiplicando-se
incessantemente, pudera até agora bastar a tudo. Entretanto, o cotidiano
alargamento de suas relações e o contínuo desenvolvimento do Espiritismo lhe
faziam sentir a necessidade de reunir em torno de si alguns auxiliares
inteligentes e preparava simultaneamente a nova organização da Doutrina e de
seus labores, quando nos deixou, para ir, num mundo melhor, receber a sanção da
missão que desempenhara e coletar elementos para uma nova obra de devotamento e
sacrifício.
Era sozinho!... Chamar-nos-emos legião
e, por muito fracos e inexperientes que sejamos, nutrimos a convicção íntima de
que nos conservaremos à altura da situação, se, partindo dos princípios
estabelecidos e de incontestável evidência, nos consagrarmos a executar, tanto
quanto nos seja possível e de acordo com as necessidades do momento, os
projetos que ele pretendia realizar no futuro.
Enquanto nos mantivermos nas
suas pegadas e todos os de boa vontade se unirem, num esforço comum pelo
progresso e pela regeneração intelectual e moral da Humanidade, conosco estará
o Espírito do grande filósofo a nos secundar com a sua influência poderosa,
dado lhe seja possível suprir à nossa insuficiência e nos possamos mostrar
dignos do seu concurso, dedicando-nos à obra com a mesma abnegação e a mesma
sinceridade que ele, embora sem tanta ciência e inteligência.
Em sua bandeira, inscrevera o
mestre estas palavras: Trabalho, solidariedade, tolerância.
Sejamos, como ele, infatigáveis;
sejamos acordemente com os seus anseios, tolerantes e solidários e não temamos
seguir-lhe o exemplo, reconsiderando, quantas vezes forem precisas, os
princípios ainda controvertidos. Apelemos ao concurso e às luzes de todos.
Tentemos avançar, antes com segurança e certeza, do que com rapidez, e não
ficarão infrutíferos os nossos esforços se, como estamos persuadidos, e seremos
os primeiros a dar disso exemplo, cada um cuidar de cumprir o seu dever, pondo
de lado todas as questões pessoais, a fim de contribuir para o bem geral.
Sob auspícios mais favoráveis
não poderíamos entrar na nova fase que se abre para o Espiritismo, do que dando
a conhecer aos nossos leitores, num rápido escorço, o que foi, durante toda a
sua vida, o homem íntegro e honrado, o sábio inteligente e fecundo, cuja
memória se transmitirá aos séculos vindouros com a auréola dos benfeitores da
Humanidade.
Nascido em Lyon, a 3 de outubro
de 1804, de uma família antiga que se distinguiu na magistratura e na
advocacia, Allan Kardec (Hippolyte Léon Denizard Rivail) não seguiu
essas carreiras. Desde a primeira juventude, sentiu-se inclinado ao estudo das
ciências e da filosofia.
Educado na Escola de Pestalozzi,
em Yverdun (Suíça), tornou-se um dos mais eminentes discípulos desse célebre
professor e um dos zelosos propagandistas do seu sistema de educação, que tão
grande influência exerceu sobre a reforma do ensino na França e na Alemanha.
Dotado de notável inteligência e
atraído para o ensino, pelo seu caráter e pelas suas aptidões especiais, já aos
quatorze anos ensinava o que sabia àqueles dos seus condiscípulos que haviam
aprendido menos do que ele. Foi nessa escola que lhe desabrocharam as ideias
que mais tarde o colocariam na classe dos homens progressistas e
livres-pensadores.
Nascido sob a religião católica,
mas educado num país protestante, os atos de intolerância que por isso teve de
suportar, no tocante a essa circunstância, cedo o levaram a conceber a ideia de
uma reforma religiosa, na qual trabalhou em silêncio durante longos anos com o
intuito de alcançar a unificação das crenças.
Faltava-lhe, porém, o elemento
indispensável à solução desse grande problema.
O Espiritismo veio, a seu tempo,
imprimir-lhe especial direção aos trabalhos.
Concluídos seus estudos, voltou
para a França.
Conhecendo a fundo a língua
alemã, traduziu para a Alemanha diferentes obras de educação e de moral e, o
que é muito característico, as obras de Fénelon,
que o tinham seduzido de modo particular.
Era membro de várias sociedades
sábias, entre outras, da Academia Real de Arras, que, em o concurso de 1831,
lhe premiou uma notável memória sobre a seguinte questão: Qual o sistema de
estudos mais de harmonia com as necessidades da época?
De 1835 a 1840, fundou, em sua
casa, à rua de Sèvres, cursos gratuitos de Química, Física, Anatomia Comparada,
Astronomia etc., empresa digna de encômios em todos os tempos, mas, sobretudo,
numa época em que só um número muito reduzido de inteligências ousava enveredar
por esse caminho.
Preocupado sempre em tornar
atraentes e interessantes os sistemas de educação, inventou, ao mesmo tempo, um
método engenhoso de ensinar a contar e um quadro mnemônico da história de
França, tendo por objetivo fixar na memória as datas dos acontecimentos de
maior relevo e as descobertas que celebrizaram cada reinado.
Entre as suas numerosas obras de
educação, citaremos as seguintes: Plano proposto para melhoramento da
Instrução pública (1828); Curso prático e teórico de Aritmética, segundo
o método de Pestalozzi, para uso dos professores e das mães de família
(1824)15; Gramática francesa clássica(1831); Manual dos Exames para
os títulos de capacidade; Soluções racionais das questões e problemas de
Aritmética e de Geometria (1846); Catecismo gramatical da língua
francesa(1848); Programa dos cursos usuais de Química, Física,
Astronomia, Fisiologia, que professava no Liceu Polimático; Ditados
normais dos exames da Municipalidade e da Sorbona, seguidos de Ditados
especiais sobre as dificuldades ortográficas (1849), obra muito apreciada
na época do seu aparecimento e da qual ainda recentemente eram tiradas novas
edições.
Antes que o Espiritismo lhe
popularizasse o pseudônimo Allan Kardec, já ele se ilustrara, como se vê, por
meio de trabalhos de natureza muito diferente, porém tendo todos, como
objetivo, esclarecer as massas e prendê-las melhor às respectivas famílias e países.
“Pelo ano de 1855, posta em foco
a questão das manifestações dos Espíritos, Allan Kardec se entregou a
observações perseverantes sobre esse fenômeno, cogitando principalmente de lhe
deduzir as consequências filosóficas.
Entreviu, desde logo, o
princípio de novas leis naturais: as que regem as relações entre o mundo
visível e o mundo invisível.
Reconheceu, na ação deste
último, uma das forças da Natureza, cujo conhecimento haveria de lançar luz
sobre uma imensidade de problemas tidos por insolúveis, e lhe compreendeu o
alcance, do ponto de vista religioso.
“Suas obras principais sobre
esta matéria são: O Livro dos Espíritos, referente à parte filosófica, e
cuja primeira edição[3],
[4] apareceu a 18 de abril de 1857; O Livro
dos Médiuns, relativo à parte experimental e científica (janeiro de 1861); O
Evangelho segundo o Espiritismo, concernente à parte moral (abril de 1864);
O Céu e o Inferno, ou a Justiça de Deus segundo o Espiritismo (agosto de
1865); A Gênese, os milagres e as predições (janeiro de 1868); a Revista
Espírita, jornal de estudos psicológicos, periódico mensal começado a 1º de
janeiro de 1858. Fundou em Paris, a 1º de abril de 1858, a primeira Sociedade
espírita regularmente constituída, sob a denominação de Sociedade Parisiense
de Estudos Espíritas, cujo fim exclusivo era o estudo de quanto possa
contribuir para o progresso da nova ciência. Allan Kardec se defendeu, com
inteiro fundamento, de coisa alguma haver escrito debaixo da influência de ideias
preconcebidas ou sistemáticas. Homem de caráter frio e calmo, observou os fatos
e de suas observações deduziu as leis que os regem. Foi o primeiro a apresentar
a teoria relativa a tais fatos e a formar com eles um corpo de doutrina,
metódico e regular.
“Demonstrando que os fatos
erroneamente qualificados de sobrenaturais se acham submetidos a leis, ele os incluiu
na ordem dos fenômenos da Natureza, destruindo assim o último refúgio do
maravilhoso e um dos elementos da superstição.
“Durante os primeiros anos em
que se tratou de fenômenos espíritas, estes constituíram antes objeto de curiosidade,
do que de meditações sérias. O Livro dos Espíritos fez que o assunto
fosse considerado sob aspecto muito diverso.
Abandonaram-se as mesas
girantes, que tinham sido apenas um prelúdio, e começou-se a atentar na
doutrina, que abrange todas as questões de interesse para a Humanidade.
“Data do aparecimento de O
Livro dos Espíritos a fundação do Espiritismo que, até então, só contara
com elementos esparsos, sem coordenação, e cujo alcance nem toda gente pudera apreender.
A partir daquele momento, a doutrina prendeu a atenção dos homens sérios e
tomou rápido desenvolvimento. Em poucos anos, aquelas ideias conquistaram
numerosos aderentes em todas as camadas sociais e em todos os países. Esse
êxito sem precedentes decorreu sem dúvida da simpatia que tais ideias despertaram,
mas também é devido, em grande parte, à clareza com que foram expostas e que é
um dos característicos dos escritos de Allan Kardec.
“Evitando as fórmulas abstratas
da Metafísica, ele soube fazer que todos o lessem sem fadiga, condição
essencial à vulgarização de uma ideia. Sobre todos os pontos controversos, sua argumentação,
de cerrada lógica, poucas ensanchas oferece à refutação e predispõe à
convicção. As provas materiais que o Espiritismo apresenta da existência da
alma e da vida futura tendem a destruir as ideias materialistas e panteístas.
Um dos princípios mais fecundos dessa doutrina e que deriva do precedente é o
da pluralidade das existências, já entrevisto por uma multidão de
filósofos antigos e modernos e, nestes últimos tempos, por Jean Reynaud,
Charles Fourier, Eugène Sue e outros. Conservara-se, todavia, em estado
de hipótese e de sistema, enquanto o Espiritismo lhe demonstra a realidade e
prova que nesse princípio reside um dos atributos essenciais da Humanidade.
Dele promana a explicação de todas as aparentes anomalias da vida humana, de
todas as desigualdades intelectuais, morais e sociais, facultando ao homem saber
donde vem, para onde vai, para que fim se acha na Terra e por que aí sofre.
“As ideias inatas se explicam
pelos conhecimentos adquiridos nas vidas anteriores; a marcha dos povos e a da Humanidade,
pela ação dos homens dos tempos idos e que revivem, depois de terem progredido;
as simpatias e antipatias, pela natureza das relações anteriores. Essas
relações, que religam a grande família humana de todas as épocas, dão por base,
aos grandes princípios de fraternidade, de igualdade, de liberdade e de solidariedade
universal, as próprias leis da Natureza e não mais uma simples teoria.
“Em vez do postulado: Fora da
Igreja não há salvação, que alimenta a separação e a animosidade entre as
diferentes seitas religiosas e que há feito correr tanto sangue, o Espiritismo
tem como divisa: Fora da Caridade não há salvação, isto é, a igualdade
entre os homens perante Deus, a tolerância, a liberdade de consciência e a
benevolência mútua.
“Em vez da fé cega, que anula a liberdade de pensar,
ele diz: Fé inabalável só o é a que pode encarar face a face a razão, em todas as
épocas da Humanidade. À fé, uma base se faz necessária e essa base é a
inteligência perfeita daquilo em que se tem de crer. Para crer, não basta ver,
é preciso, sobretudo, compreender. A fé cega já não é para este século.
É precisamente ao dogma da fé cega que se deve o ser
hoje tão grande o número de incrédulos, porque ela quer impor-se e exige a
abolição de uma das mais preciosas faculdades do homem: o raciocínio e o
livre-arbítrio”.
O Evangelho segundo o Espiritismo
Trabalhador infatigável, sempre
o primeiro a tomar da obra e o último a deixá-la, Allan Kardec sucumbiu, a 31
de março de 1869, quando se preparava para uma mudança de local, imposta pela
extensão considerável de suas múltiplas ocupações. Diversas obras que ele
estava quase a terminar, ou que aguardavam oportunidade para vir a lume,
demonstrarão um dia, ainda mais, a extensão e o poder das suas concepções.
Morreu conforme viveu:
trabalhando. Sofria, desde longos anos, de uma enfermidade do coração, que só
podia ser combatida por meio do repouso intelectual e pequena atividade material.
Consagrado, porém, todo inteiro à sua obra, recusava-se a tudo o que pudesse
absorver um só que fosse de seus instantes, à custa das suas ocupações
prediletas. Deu-se com ele o que se dá com todas as almas de forte têmpera: a
lâmina gastou a bainha.
O corpo se lhe entorpecia e se
recusava aos serviços que o Espírito lhe reclamava, enquanto este último, cada
vez mais vivo, mais enérgico, mais fecundo, ia sempre alargando o círculo de sua
atividade.
Nessa luta desigual não podia a
matéria resistir eternamente. Acabou sendo vencida: rompeu-se o aneurisma e Allan
Kardec caiu fulminado. Um homem houve de menos na Terra; mas, um grande nome
tomava lugar entre os que ilustraram este século; um grande Espírito fora
retemperar-se no Infinito, onde de todos os que ele consolara e esclarecera lhe
aguardavam impacientes a volta!
“A morte, dizia, faz pouco tempo, redobra os seus golpes
nas fileiras ilustres!... A quem virá ela agora libertar?”
Ele foi, como tantos outros,
recobrar-se no Espaço, procurar elementos novos para restaurar o seu organismo
gasto por uma vida de incessantes labores. Partiu com os que serão os fanais da
nova geração, para voltar em breve com eles a continuar e acabar a obra deixada
em dedicadas mãos.
O homem já aqui não está; a
alma, porém, permanecerá entre nós. Será um protetor seguro, uma luz a mais, um
trabalhador incansável que as falanges do Espaço conquistaram. Como na Terra,
sem ferir a quem quer que seja, ele fará que cada um lhe ouça os conselhos
oportunos; abrandará o zelo prematuro dos ardorosos, amparará os sinceros e os
desinteressados e estimulará os tíbios. Vê agora e sabe tudo o que ainda há
pouco previa! Já não está sujeito às incertezas, nem aos desfalecimentos e nos
fará partilhar da sua convicção, fazendo-nos tocar com o dedo a meta, apontando-nos
o caminho, naquela linguagem clara, precisa, que o tornou aureolado nos anais
literários.
Já não existe o homem,
repetimo-lo. Entretanto, Allan Kardec é imortal e a sua memória, seus
trabalhos, seu Espírito estarão sempre com os que empunharem forte e
vigorosamente o estandarte que ele soube sempre fazer respeitado.
Uma individualidade pujante
constituiu a obra. Era o guia e o farol de todos. Na Terra, a obra substituirá
o obreiro. Os crentes não se congregarão em torno de Allan Kardec; congregar-se-ão
em torno do Espiritismo, tal como ele o estruturou e, com os seus conselhos,
sua influência, avançaremos, a passos firmes, para as fases ditosas prometidas
à Humanidade regenerada.
[1] Revista Espírita – maio/1869
[2]
N. do T.: Transcrita em Obras Póstumas, logo após o índice.
[3] N. do T.: Embora no original francês conste o
ano de 1829, o correto é como está grafado acima (1824).
[4] N. do T.: Foi em 1855, e não em 1850, como
consta no original, que Allan Kardec ouviu pela primeira vez, através de seu
amigo, o Sr. Carlotti, a explicação de que os fenômenos das mesas girantes se
deviam à intervenção de Espíritos desencarnados. (Obras Póstumas, 2ª
parte, “A minha primeira iniciação no Espiritismo”).
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