quarta-feira, 2 de agosto de 2023

A TRANSIÇÃO[1]

 



Allan Kardec

 

1 — A confiança na existência da vida futura não exclui as apreensões pela transição desta vida para a outra. Muitas pessoas não temem propriamente a morte, o que temem é o momento da transição. Sofremos ou não ao fazer essa passagem? É isso o que as inquieta e com tanto mais razão quanto ninguém pode escapar a esse momento. Podemos deixar de fazer qualquer outra viagem, mas quanto a esta, tanto os ricos como os pobres terão de fazê-la e se ela for dolorosa, nem a posição e nem a fortuna poderiam suavizar a sua amargura.

2 — Ao ver a tranquilidade de algumas mortes e as terríveis convulsões da agonia em outras, já podemos perceber que as sensações não são sempre as mesmas, mas quem pode nos esclarecer a respeito? Quem nos descreverá o fenômeno fisiológico da separação da alma e do corpo? Quem nos relatará as sensações desse instante supremo? Sobre isso, a Ciência e a Religião se calam.

Mas por que se calam? Porque falta a uma e a outra o conhecimento das leis que regem as relações do Espírito com a matéria. Uma para no limiar da vida espiritual, a outra no da vida material. O Espiritismo é o traço de união entre as duas. Somente ele pode revelar como se opera a transição, seja em virtude das noções positivas que oferece sobre a natureza da alma, seja com as informações dadas pelos que deixaram a vida. O conhecimento do elemento fluídico que une a alma ao corpo é a chave desse fenômeno, como de muitos outros.

3 — A matéria inerte é insensível: este é um fato positivo. Só a alma experimenta as sensações de prazer e dor. Durante a vida qualquer desagregação da matéria repercute na alma através de uma impressão mais ou menos dolorosa. É a alma que sofre e não o corpo, pois este é apenas o instrumento da dor e a alma é o paciente. Após a morte, estando o corpo separado da alma, pode ser livremente mutilado que nada sente. A alma, estando isolada do corpo, não é atingida por nenhum efeito da destruição deste. Ela tem as suas próprias sensações, cuja fonte não está na matéria tangível.

O perispírito é o envoltório físico da alma, da qual não se separa nem antes nem depois da morte, e com a qual se pode dizer que forma um todo. Porque não se pode conceber um sem a outra. Durante a vida o fluido perispiritual impregna todo o corpo, servindo de veículo das sensações físicas para a alma. É também por esse intermediário que a alma age sobre o corpo e dirige os seus movimentos[2].

4 — A extinção da vida orgânica produz a separação da alma e do corpo pelo rompimento da ligação fluídica, mas essa separação nunca se verifica de maneira brusca. O fluido perispiritual se desprende pouco a pouco de todos os órgãos, de maneira que a separação só se completa quando não resta mais um único átomo do perispírito unido a uma molécula do corpo.  A sensação dolorosa que a alma experimenta nesse momento está na razão da quantidade de pontos de contato existentes entre o corpo e o perispírito, determinando a maior ou menor dificuldade ou lentidão da separação . Não se deve pois querer dissimular que, segundo as circunstâncias, a morte pode ser mais ou menos penosa. São essas diversas circunstâncias que vamos examinar.

5 — Coloquemos primeiramente, em princípio, os quatro casos seguintes, que podemos encarar como as situações extremas entre as quais existe uma infinidade de variações:

1)       Se no momento de extinção da vida orgânica o desprendimento do perispírito já se tiver completado, a alma não sentirá absolutamente nada;

2)       Se nesse momento a união dos dois elementos ainda estiver em toda a sua força, se verificará uma espécie de ruptura;

3)       Se a união já estiver enfraquecida, a separação será fácil e se dará sem choque;

4)       Se, após a completa extinção da vida orgânica ainda existirem numerosos pontos de contato entre o corpo e o perispírito, a alma poderá sentir os efeitos da decomposição do corpo até que as ligações sejam completamente rompidas.

Disso resulta que o sofrimento que acompanha a morte decorre do estado de aderência do perispírito ao corpo, e que tudo o que possa facilitar a diminuição desse estado e acelerar a separação torna a passagem menos penosa. Enfim, que se o desprendimento se verificar sem nenhuma dificuldade, a alma não experimenta nenhuma sensação desagradável.

6 — Na passagem da vida corpórea para a vida espiritual ocorre ainda outro fenômeno de capital importância: o da perturbação. Nesse momento a alma experimenta um entorpecimento que paralisa momentaneamente as suas faculdades e neutraliza, pelo menos em parte, as suas sensações. Ela fica, por assim dizer, em estado cataléptico, de maneira que quase nunca tem consciência do seu derradeiro suspiro. Dizemos quase nunca porque há um caso em que ela pode ter consciência desse último instante, como logo veremos.

A perturbação pode, pois, ser considerada como um fato normal no momento da morte. Sua duração é indeterminada, pois ela varia de algumas horas para alguns anos. A medida que ela se dissipa a alma se sente na situação de um homem que acorda de um sono profundo. Suas ideias são confusas, vagas e incertas, a sua visão é como se ela estivesse num nevoeiro; pouco a pouco a visão vai-se esclarecendo, a memória se reaviva, mas isso de acordo com as situações individuais. Para uns, esse despertar é calmo e proporciona uma sensação deliciosa, mas para outros é bem diferente, cheio de terror e angústia, semelhante a horrível pesadelo.

7 — O momento do derradeiro suspiro não é, pois, o mais penoso, porque em geral a alma não chega a percebê-lo. Mas antes ela sofre os efeitos da desagregação da matéria durante as convulsões da agonia, e depois as angústias da perturbação. Apressemo-nos a esclarecer que essa situação não é generalizada. A intensidade e a duração de sofrimento, como dissemos, estão na razão da afinidade existente entre o corpo e o perispírito. Quanto maior for essa afinidade, mais demorados e penosos serão os esforços do Espírito para se libertar. Mas há casos em que a união é tão fraca que a libertação se realiza naturalmente, sem dificuldades. O Espírito se separa do corpo como um fruto maduro que cai do ramo. É o caso das mortes tranquilas que levam a um despertar pacífico.

8 — O estado moral da alma é a causa principal que determina a maior ou menor facilidade de desprendimento. A afinidade entre o corpo e o perispírito decorre do apego do Espírito à matéria. Chega ao máximo no homem que concentra todas as suas preocupações na vida e nos prazeres materiais que ela oferece. É quase nula naquele cuja alma purificada se identifica por antecipação com a vida espiritual. Como a lentidão e a dificuldade da separação resultam do grau de depuração e desmaterialização da alma, depende de cada um tornar mais fácil ou mais penoso, agradável ou doloroso o momento de sua passagem.

Assim posta a questão, ao mesmo tempo no plano teórico e como resultado da observação, resta-nos examinar a influência do gênero de morte sobre as sensações da alma no derradeiro momento.

9 — Na morte natural, a que resulta da extinção das forças vitais pela idade ou pela doença, o desprendimento se opera gradualmente. No homem cuja alma se desmaterializou e cujos pensamentos se desprenderam da atração das coisas terrenas, o desprendimento quase que se completa antes da morte real. O corpo vive ainda a vida orgânica, mas a alma já penetrou na vida espiritual e somente a ligam ao corpo liames tão frágeis que se rompem sem dificuldade com a última pancada do coração. Nessa situação o Espírito já pode haver recobrado a lucidez e testemunhar conscientemente a extinção da vida no seu próprio corpo, do qual se sente feliz por se livrar. Para ele quase não existe perturbação. Este não é mais do que um momento de sono tranquilo do qual ele acorda com uma indizível sensação de felicidade e de esperança.

No homem material e sensual, que viveu mais para o corpo do que para as coisas espirituais, para quem a vida espiritual nada era, que nem mesmo a admitia em pensamento, tudo contribui para estreitar os laços que ligam a alma à matéria, pois nada contribuiu para os relaxar durante a vida. À aproximação da morte, o desprendimento se opera também de maneira gradual, mas através de contínuos esforços. As convulsões da agonia revelam a luta que o Espírito sustenta, tentando às vezes romper os laços que o seguram e de outras vezes apegando-se ao corpo do qual uma força irresistível o vai arrancando com violência, mas parte a parte.

10 — O Espírito se apega tanto mais à vida material quando nada vê além dela. Sente que ela lhe escapa e quer retê-la. Ao invés de se entregar às forças que o arrastam, resiste com todas as suas energias. Essa luta pode se prolongar por dias, semanas e meses. Não há dúvida, nesse momento o Espírito não goza de toda a sua lucidez. A perturbação já terá começado bem antes da morte, mas nem por isso é menor o seu sofrimento, e o estado de vacuidade mental em que se encontra, a incerteza quanto ao que lhe acontecerá depois aumentam as suas angústias. A morte chega e nada se acabou, pois a perturbação continua. Ele sente que está vivo, mas não sabe se essa vida é a material ou a espiritual. Luta ainda até que as últimas ligações do perispírito com o corpo sejam rompidas. A morte pôs termo à moléstia que ele sofria, mas não sustou as suas consequências, de maneira que enquanto existirem pontos de contato entre o corpo e o perispírito, o Espírito é atingido por essas consequências e sofre com elas.

Bem diferente a situação do Espírito que já se desmaterializou, mesmo no caso das doenças mais cruéis. As ligações fluídicas com o corpo tendo se enfraquecido, rompem-se sem nenhuma dificuldade, e além disso a sua confiança no futuro, que ele já entrevê mentalmente e às vezes mesmo de maneira real, o leva a encarar a morte como uma libertação e os seus males como uma prova. Daí a tranquilidade moral e a resignação que suavizam os seus sofrimentos. Após a morte, tendo as ligações sido rompidas de maneira instantânea, ele não sente nenhuma reação dolorosa. Pelo contrário, ao despertar sente-se livre, disposto, aliviado de um grande peso e muito feliz por não estar mais sofrendo.

12 — Na morte violenta as condições não são sempre as mesmas. Nenhuma desagregação parcial tendo podido levar a uma separação antecipada entre o corpo e o perispírito, a vida orgânica é subitamente sustada, ainda na plenitude da sua força. O desprendimento do perispírito só começa depois da morte. Nesse caso como nos outros não pode realizar-se instantaneamente. O Espírito, colhido de surpresa, sente-se como aturdido, mas ao perceber que pensa ainda, acredita-se vivo. Essa ilusão dura até que ele possa tomar conhecimento de sua nova situação.

Esse estado intermediário entre a vida corpórea e a vida espiritual é um dos mais interessantes como objeto de estudo, pois apresenta a singular situação de um Espírito que toma o seu corpo fluídico pelo seu corpo material, experimentando todas as sensações da vida orgânica.

Apresenta-se uma variedade de nuanças que dependem do caráter, dos conhecimentos e do grau do desenvolvimento moral do Espírito. É de curta duração para aqueles de alma mais pura, porque nestes sempre há um desprendimento antecipado que a morte, mesmo a mais inesperada, vem apenas completar. Para outros pode prolongar-se durante anos. Esse estado é também muito frequente nos casos de morte ordinária, mas para alguns nada tem de penoso, dependendo das qualidades do Espírito, enquanto para outros representa uma situação terrível.

É sobretudo nos casos de suicídios que essa situação se faz penosa. O corpo continuando ligado ao perispírito por todas as suas fibras, faz que repercutam na alma todas as suas convulsões, produzindo-lhes sofrimentos atrozes.

13 — A situação do Espírito no momento da morte pode se resumir assim:

O Espírito sofre tanto mais, quanto mais lento for o desprendimento do perispírito. A presteza do desprendimento depende do grau de desenvolvimento moral do Espírito. Para o Espírito desmaterializado, cuja consciência é pura, a morte é apenas um sono passageiro, sem nenhum sofrimento, e o seu despertar é cheio de suavidade.

14 — Para que a gente se esforce pela própria purificação, reprimindo as más tendências e vencendo as paixões, é necessário conheceras vantagens do futuro . Para se identificar com a vida futura, desejando-a e preferindo-a à vida terrena, não basta acreditar que ela existe, mas é preciso compreendê-la. E para tudo isso é necessário apresentá-la sob um aspecto satisfatório para a razão, de pleno acordo com a lógica, o bom senso e a ideia que se faz da grandeza, da bondade e da justiça de Deus. De todas as doutrinas filosóficas, o Espiritismo é a que exerce, a respeito, a mais poderosa influência, graças à fé inabalável que proporciona.

O espírita sério não se contenta em crer: ele crê porque compreende, e só pode compreender recorrendo ao raciocínio. A vida futura é então uma realidade que se desenrola incessantemente aos seus olhos. Ele a vê e a toca, por assim dizer, a todos os instantes. A dúvida não pode penetrar na sua mente. A vida corpórea, demasiado limitada, se apaga para ele ante a vida espiritual que se apresenta como a verdadeira vida. Essa a razão da pouca importância que dá aos incidentes do caminho, e de enfrentar com resignação todas as vicissitudes, compreendendo as suas causas e a sua utilidade. As relações diretas que mantém com o mundo invisível elevam-lhe a alma. As ligações fluídicas que o ligam à matéria se enfraquecem. E é assim que vai se operando o desligamento parcial que facilita a sua passagem desta vida para a outra. A perturbação que é inseparável da transição torna-se de curta duração porque, tão pronto atravessou a fronteira logo se reconhece: nada lhe é estranho e ele compreende a sua nova situação.

15 — O Espiritismo não é certamente indispensável para se chegar a esse resultado. Nem tem a pretensão de ser o único a assegurar a salvação da alma. Mas a facilita, pelos conhecimentos que proporciona, pelos sentimentos que inspira e pelas disposições que dá ao espírito, fazendo-o compreender a necessidade de melhorar-se. Além disso, dá a cada um os meios de facilitar o desprendimento alheio na hora da partida e os meios de abreviar o tempo de perturbação através da prece e da evocação.

Por meio da prece sincera, que é uma forma de magnetização espiritual, provoca-se uma desagregação, mais rápida do fluido perispiritual. Por uma evocação dirigida com conhecimento e prudência, através de palavras de benevolência e encorajamento, tira-se o Espírito do entorpecimento em que se encontra e consegue-se ajudá-lo a compreender mais rapidamente o que se passa. Se for um Espírito sofredor, provoca-se o arrependimento que é o único meio de abreviar os seus sofrimentos[3].



[1] O CÉU E O INFERNO – 2ª Parte – Capítulo 1 – Allan Kardec

[2] Somente agora, mais de um século após a explicação cientifica do Espiritismo a esse respeito, as Ciências materiais conseguiram confirmá-la através de suas pesquisas. Apesar das provas obtidas, entretanto, a cegueira materialista levantou celeumas a propósito e os religiosos anti-espíritas, por mero sectarismo, fazem coro com os negativistas. A escola parapsicológica liderada pelo prof. Joseph Banks Rhine, da Duke University, Estados Unidos, sustenta a existência no homem de um elemento extra-físico e defende a tese de que: a mente, que não é física, age sobre a matéria por vias não físicas . Esta é uma das asserções mais graves de Rhine e que maiores controvérsias provocou no meio científico de todo o mundo. Whately Carington, na Universidade de Cambridge, Inglaterra, formulou uma teoria da sobrevivência da mente após a morte e da sua possibilidade de agir sobre a matéria produzindo os fenômenos físicos paranormais. O prof. S. G. Soai, da Universidade de Londres, formulou também uma hipótese da sobrevivência da alma. Em pesquisas realizadas a partir de 1965 os físicos e biólogos soviéticos conseguiram obter provas concretas (fotografias e visão através de aparelhos éticos especiais) da existência do perispírito, a que deram o nome de corpo bioplástico. (N. do T.)

[3] Os exemplos que vamos citar apresentam os Espíritos nas diferentes fases de felicidade e de infelicidade da vida espiritual. Não os procuramos entre os personagens mais ou menos ilustres da Antiguidade, cuja situação se poderia considerar modificada após a existência em que foram conhecidos, não oferecendo, por isso mesmo, provas suficientes de autenticidade. Tomamo-los das circunstâncias mais comuns da vida contemporânea, por serem aquelas em que podemos encontrar maiores possibilidades de comparações e das quais se podem tirar as mais aproveitáveis instruções.

Quanto mais a existência terrena dos Espíritos se aproxima da nossa, seja pela posição social ou pelas relações ou laços de parentescos, mais nos interessam e mais fácil se torna controlar a identidade dos comunicantes. As situações vulgares são naturalmente em maior número e é por isso que delas todos podem tirar mais facilmente as aplicações necessárias. As situações excepcionais nos tocam menos, por escaparem à esfera dos nossos hábitos. Não são essas, portanto, as ilustrações que procuramos. Se nesses exemplos se encontram algumas individualidades conhecidas, a maioria é de criaturas inteiramente obscuras. Os nomes retumbantes nada acrescentariam no tocante à instrução e poderiam ferir suscetibilidades. Não nos dirigimos aos curiosos nem aos amantes de escândalos, mas aos que desejam seriamente instruir-se. Esses exemplos poderiam ser multiplicados ao infinito, mas, forçados a limitar o seu número, escolhemos os que pudessem lançar mais luz sobre o estado do mundo espiritual, seja em virtude da situação do Espírito, seja pelas explicações que ele estava em condições de dar. Na maioria essas comunicações são inéditas. Apenas algumas foram publicadas na Revista Espírita. Dessas, suprimimos os detalhes supérfluos, conservando apenas os pontos essenciais ao objetivo que nos propusemos aqui. Acrescentamos a elas as instruções complementares que provocaram posteriormente. (N. de Kardec)

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