Allan Kardec
O fato seguinte é relatado por
um jornal de Medicina de Londres e reproduzido pelo Journal de Rouen, de
22 de dezembro de 1868:
Na semana passada o Sr. Samuel W..., um dos principais
empregados do Banco, deixou de comparecer a um sarau para o qual tinha sido
convidado com a esposa, porque se achava muito indisposto. Chegou em casa com
um febrão violento. Procuraram o médico, mas este tinha sido chamado a uma
cidade próxima e só voltaria tarde da noite.
A Sra. Samuel decidiu esperar o médico à cabeceira do
marido. Embora vitimado por uma febre ardente, o doente dormia tranquilamente.
Um pouco tranquilizada e vendo que seu marido não sofria, a Sra. Samuel não
lutou contra o sono, e por sua vez adormeceu.
Pelas três horas, ouviu tocar a campainha da porta
principal. Deixou a poltrona precipitadamente, tomou um castiçal e desceu ao
salão.
Lá esperava ver entrar o médico. A porta do salão
abriu-se, mas, em vez do doutor, ela viu entrar seu filho Eduardo, um rapaz de
doze anos, que estudava num colégio perto de Windsor. Estava muito pálido e
tinha a cabeça envolta em larga faixa branca.
– ‘Esperavas o médico para o papai, não?’ Perguntou ele
abraçando a mãe. ‘Mas papai está melhor; não é nada mesmo; amanhã se levantará.
Sou eu que preciso de um bom médico. Trata de chamá-lo imediatamente, porque o
do colégio não entende muito da coisa...’
Tomada de medo, a Sra. Samuel teve forças para tocar a
sineta. Chegou a camareira. Encontrou a patroa no meio do salão, imóvel, com o
castiçal na mão. O ruído de sua voz despertou a Sra. Samuel. Ela tinha sido
joguete de uma visão, de um sonho, chamemos como quisermos. Lembrava-se de tudo
e repetiu à camareira o que tinha julgado ouvir. Depois exclamou chorando:
‘Deve ter acontecido uma desgraça a meu filho!’
Chegou o médico tão esperado. Examinou o Sr. Samuel. A
febre quase tinha desaparecido; garantiu que não passava de uma febre nervosa,
que seguia o seu curso e acabava em algumas horas.
Depois destas palavras tranquilizadoras, a mãe narrou
ao médico o que lhe havia acontecido uma hora antes. O profissional – por
incredulidade ou talvez por vontade de ir repousar – aconselhou a Sra. Samuel a
não dar importância a esses fantasmas. Contudo, teve que ceder às rogativas, às
angústias da mãe e acompanhá-la a Windsor. Ao romper do sol chegaram ao
colégio. A Sra. Samuel pediu notícias de seu filho; responderam que estava na
enfermaria desde a véspera. O coração da pobre mãe apertou-se; o doutor ficou
pensativo.
Em suma, visitaram o menino. Este havia sofrido um
grande ferimento na fronte, brincando no jardim. Tinham-lhe prestado os
primeiros socorros e, embora mal feito o curativo, a ferida nada tinha de
perigosa.
Eis o fato em todos os seus detalhes; nós o obtivemos
de pessoas dignas de fé. Dupla vista ou sonho, deve sempre ser considerado como
um fato ordinário.
Como se vê, a ideia da dupla
vista ganha terreno. Ela se acredita fora do Espiritismo, como a
pluralidade das existências, o perispírito etc., tanto é verdade que o
Espiritismo chega por mil caminhos e se implanta sob todas as formas, pelos
próprios cuidados dos que não o querem.
A possibilidade do fato acima é
evidente e seria supérfluo discuti-la. É um sonho ou efeito da dupla vista? A Sra.
Samuel dormia e, ao despertar, lembra-se do que viu; era, pois, um sonho; mas
um sonho que traz a imagem de uma atualidade tão precisa, e que é verificada
quase imediatamente, não é um produto da imaginação: é uma visão muito real.
Há, ao mesmo tempo, dupla vista, ou visão espiritual, porque é bem certo que
não foi com os olhos do corpo que a mãe viu o seu filho. De um lado e de outro
houve desprendimento da alma; foi a alma da mãe que foi para o filho, ou a do
filho que veio para a mãe? As circunstâncias tornam este último caso mais
provável, porque na outra hipótese a mãe teria visto o filho na enfermaria.
Alguém que não conhece o
Espiritismo senão muito superficialmente, mas admite perfeitamente a
possibilidade de certas manifestações, perguntava como é que o filho, que
estava em seu leito, pudera apresentar-se à mãe com as suas roupas.
Concebo, dizia ele, a aparição pelo fato do
desprendimento da alma; mas não compreenderia que objetos puramente materiais,
como roupas, tenham a propriedade de transportar para longe uma parte
quintessenciada de sua substância, o que suporia uma vontade.
Respondemos-lhe que as roupas,
tanto quanto o corpo material do jovem ficaram em seu lugar. Após breve
explicação sobre o fenômeno das criações fluídicas, acrescentamos: O Espírito
do jovem apresentou-se em casa de sua mãe com seu corpo fluídico ou
perispiritual. Sem ter tido o desígnio premeditado de vestir-se com suas
roupas, sem ter feito este raciocínio: “Minhas roupas de pano ali estão; não
posso vesti-las; é preciso, pois, que eu fabrique roupas fluídicas que terão a
sua aparência”, bastou-lhe pensar em sua roupa habitual, na que teria usado nas
circunstâncias ordinárias, para que esse pensamento desse ao seu perispírito as
aparências dessa mesma roupa. Pela mesma razão teria podido apresentar-se com a
roupa de dormir, se tal tivesse sido o seu pensamento. Para ele essa aparência
se tornara uma espécie de realidade; tinha apenas uma imperfeita consciência de
seu estado fluídico e, assim como certos Espíritos ainda se julgam neste mundo,
ele julgava vir à casa da mãe em carne e osso, pois a beija como de costume.
As formas exteriores que
revestem os Espíritos que se tornam visíveis são, pois, verdadeiras criações
fluídicas, muitas vezes inconscientes. A roupa, os sinais particulares, os
ferimentos, os defeitos do corpo, os objetos que usa, são o reflexo de seu
próprio pensamento no envoltório perispiritual.
– Mas, então, diz o nosso nobre interlocutor, é
toda uma ordem de ideias novas; há nisso todo um mundo, e esse mundo está em
nosso meio; muitas coisas se explicam; as relações entre os vivos e os mortos
se compreendem.
Sem a menor dúvida; e é ao
conhecimento desse mundo, que nos interessa por tantos motivos, que conduz o
Espiritismo. Esse mundo se revela por uma imensidade de fatos, que são
desprezados por não se compreender a sua causa.
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