sexta-feira, 11 de novembro de 2022

PUREZA E IMPUREZA, NA CONCEPÇÃO ESPIRITUAL DA VIDA[1]

 

Adriano Lima - IMPUREZA - Na luta contra o pecado da impureza, vence quem foge 


J. Herculano Pires

 

O conceito de pureza nasce das relações sensoriais e, portanto, epidérmicas do homem com as coisas e os seres. A sensação desagradável ou repugnante determina a natureza impura da coisa. Ao contrário, a sensação agradável é de limpeza. Na gama infinita das sensações e em suas diversificações influem também as condições ambientais, mesológicas, ecológicas, os usos e costumes, as tradições e assim por diante. Mas o que interessa ao nosso estudo pode resumir-se no primeiro contraste, que é o desencadeante do processo. A influência racional aparece tardiamente, não conseguindo modificar os esquemas estabelecidos. O critério religioso do puro e do impuro é uma consequência refinada e racionalizada do processo natural e instintivo, geralmente determinado por processos intelectuais e pelas exigências do conceito do sagrado e os preceitos de santificação.

Para os judeus a vida era pura e a morte impura. Bastava uma pessoa cair morta entre pessoas puras e todas elas ficavam impuras e tinham de submeter-se no Templo aos ritos de purificação. Lázaro, morto e ressuscitado por Jesus, tornara-se impuro. Para os gregos a impureza vinha das derrotas em lutas físicas ou na escravidão. Para os romanos, a impureza vinha dos espíritos malignos que deviam ser afastados das cidades pelas procissões dos ancestrais, carregados em esfinge como santos ou pelas festas dedicadas aos deuses. Mas em todos os casos a impureza era aviltante e exigia ritos de purificação. Para os indianos a impureza era atributo dos párias e contagiava as castas superiores, nascidas da cabeça e do espírito de Brama. Para todos os povos antigos a relação sexual era impura, mas os deuses podiam purificá-la. Não obstante, as criaturas superiores não podiam nascer dessa relação, mas apenas de mães virgens fecundadas por um deus, como no caso de Pitágoras. A virgindade era pura e sagrada, mas a esterilidade feminina denunciava a maldição dos deuses para a mulher. As virgens mães eram puras e geravam messias e profetas. No culto de Vista, introduzido em Roma, as vestais deviam ser puras e manter-se virgens até os 30 anos de idade, sendo enterradas vivas se tivessem relação sexual antes daquela idade. Não obstante, o culto fálico se propagava entre todos os povos. E a prostituição sagrada oficialmente nos tempos de Vênus dignificava as prostitutas. Dessa situação confusa nasceram as regras de pureza e impureza do mundo cristão primitivo, ligado umbilicalmente às prescrições judaicas. Afrodite era cultuada e nos templos da Suméria havia cópulas sagradas nos altares, sob as bênçãos dos sacerdotes.

De todo esse panorama confuso, as bacanais e as saturnais eram festas gloriosas, que agradavam os deuses. Todas as religiões atuais estão ainda carregadas dos resíduos dessa fase. Esse prolongamento da confusão erótica ao nosso tempo revela a predominância, no homem pretensioso de hoje, de sua instintividade animalesca, acrescida de um falso refinamento produzido pelo progresso material. A imensa maioria das criaturas humanas, às vésperas da Era Cósmica, vive o dia-a-dia das sensações primárias da espécie. O desenvolvimento do princípio inteligente foi atrofiado na civilização tecnológica pela importância dada, de maneira quase absoluta, aos problemas do bem-estar, das comodidades e da elegância do supérfluo. Em geral, somos ainda macacos – não os que atribuíram a Darwin, mas os posteriores – mais interessados a cuidar da barriga do que da cabeça.

Nossa civilização é uma caricatura, em traços grotescos, daquela com que Augusto Comte sonhou, confiante no seu lema ingênuo de ordem e progresso. Com a ordem tecnológica só conseguimos o progresso das devastações ecológicas, do enriquecimento de minorias inúteis e desprovidas do mínimo senso de equilíbrio social, corroídas pela febre das ambições alucinantes, em contraste aterrador com a proliferação das maiorias depauperadas, das multidões esfarrapadas, famintas e doentes. Destruímos a inocência das crianças, que se transformaram em assaltantes e assassinas. Nosso fracasso é total. Os avanços científicos do século compensam em parte o atraso moral e espiritual, mas ao mesmo tempo fazem ressaltar os descalabros das gerações levianas, viciosas, pedantes e insolentes, que desprezam os valores significativos da civilização terrena.

Superando os condicionamentos multimilenares do passado, o Espiritismo superou também os formalismos e as sistemáticas da era moderna, estabelecendo, às vésperas do advento do século XX, as diretrizes de uma nova mundividência. Kardec, culturalmente filiado à chamada era das luzes, não se prendeu aos excessos do cientismo acadêmico. A nova cultura surgia sobre os anátemas da Igreja e as ameaças dos sabichões, como diria Richet. Sábios, filósofos e cientistas temiam os fantasmas das superstições populares. Levantava-se assim uma nova barreira ao avanço livre das ciências. Repelindo o temor infantil, Kardec resolveu enfrentar os fantasmas. Lembrando o episódio da revolta de Descartes contra a cultura mumificada dos jesuítas de La Fleche, à reação de Rousseau ao tradicionalismo educacional e, mais especificamente, o estudo de Galvani sobre a dança das rãs, não vacilou em verificar o que se passava nos salões parisienses com a dança das mesas. Cauteloso e audacioso ao mesmo tempo, descobriu o mecanismo do fenômeno e aprofundou-se na sua pesquisa. Foi assim, como um cientista e não como um místico (que nunca havia sido), que ele afugentou da mentalidade do tempo os fantasmas das superstições, substituindo-os pelos fantasmas reais dos espíritos manifestantes. Provou de maneira irrefutável a sobrevivência do homem após a morte corporal e que os sobreviventes não viravam anjos nem demônios, mas guardavam a dimensão espiritual da realidade terrena, não no céu nem no inferno, mas aqui mesmo, na Terra dos homens, a sua condição humana.

Hoje, as pesquisas da Física moderna e da Parapsicologia comprovaram inteiramente o acerto do mestre francês. Revelada a face oculta do planeta, em que a vida prossegue vitoriosa e livre, houve pânico nas ciências e profunda modificação nos conceitos da própria modernidade dominante. Os conceitos relativos de pureza e impureza romperam suas ligações umbilicais com o passado e abriram-se em novas dimensões de uma realidade surpreendente. A pureza deixou de ser um tabu para se transformar num conceito real, de bases científicas. Passou-se a entender por pureza a naturalidade das coisas e, consequentemente, por impureza as deformações das realidades sistemáticas imaginárias dos clérigos, dos teólogos e também dos positivistas e materialistas, todos eles mais amigos de Platão do que da verdade. Kardec mudava o sentido dos conceitos fundamentais do bem e do mal, mostrando através de suas pesquisas psicológicas, na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, que mal e bem são conceitos relativos ligados ao processo universal da evolução. O mal é a estagnação, o atraso, a ignorância, e o bem é o progresso, o fluxo das coisas e dos seres, a transcendência. Morrer é um mal, pois a morte corta o fluxo vital do homem que se imobiliza no cadáver. Mas da própria morte resulta o bem da ressurreição, em que a essência do homem, que é o espírito, entra no fluxo superior da vida espiritual. A morte como nadificação do homem, segundo Sartre, é um contrassenso filosófico e científico, pois o nada não existe, é um conceito vazio, como Kant já o verificara. Na plenitude do Universo, hoje comprovada pelas pesquisas astronáuticas, não há lugar para o nada, essa abstração sem sentido.

O estudo da doutrina espírita nos mostra que ela representa uma reformulação total do conhecimento humano. Mas as implicações religiosas da doutrina – embora Kardec jamais a tivesse apresentado como religião, e sim como ciência, – moveram as forças estacionárias das religiões contra Kardec e a doutrina, tentando sufocá-los e eliminá-los da realidade cultural do planeta. Não o conseguiram, mas apoiados na ignorância, de populares e sábios (os sabichões de Richet), conseguiram confundir os fatos espíritas com a magia das religiões primitivas das tribos selvagens, afastando do estudo da doutrina muitas pessoas supostamente cultas. Instalado numa casa pobre da Rua dos Mártires, em Paris, Kardec fez jus ao nome da rua, pois ali se transformou no mártir da ciência admirável, de que falava Descartes. Ainda hoje o Espiritismo é encarado, por medo e preguiça mental, pela maioria das criaturas humanas, tão necessitadas do seu socorro, como uma ciência suspeita. E isso não obstante as comprovações científicas das verdades espíritas, feitas pelos cientistas eminentes em todos os grandes centros universitários do mundo.

Léon Denis, discípulo e continuador de Kardec, percorreu toda a Europa, em meados e fins do século passado, pronunciando conferências sobre o Espiritismo, na esperança de superar as barreiras levantadas pelas religiões e pelas ciências contra a doutrina. Uma das suas principais conferências, que abalaram a Europa, intitulava-se “A Missão do Século XX”. Denis previa o avanço das pesquisas espíritas nos meios científicos e culturais em geral, anunciando o reconhecimento científico do Espiritismo pelas ciências. Já no final do nosso século podemos constatar o acerto de Denis. Se não houve um reconhecimento fora da Ciência Espírita, houve o reconhecimento de fatos pelas comprovações científicas, no interesse do próprio desenvolvimento das ciências.

A Ciência Espírita apresenta-se hoje como a pedra enjeitada da parábola evangélica, que teve de ser colocada como a pedra angular da cultura do nosso tempo. Sua abertura generosa, jamais se fechando em dogmas e sistemas fechados, é um desafio constante ao mundo convencional da cultura que tenta desprezá-la e não consegue libertar-se dos rumos teóricos e metodológicos por ela traçados, sem outra imposição de sua realidade do que a própria realidade dos fatos em que se fundamenta. Cassirer, filósofo alemão contemporâneo, condenou os sistemas, considerando-os como leito de Procusto, em que os fatos empíricos das pesquisas têm de adaptar-se, deformados, a uma sistemática prévia. Ao elaborar a Ciência Espírita, Kardec, muito antes dessa opinião do filósofo, declarou que o Espiritismo oferecia, ao mesmo tempo, uma filosofia e uma ciência livres dos prejuízos do espírito de sistema. A palavra grega dogma equivale apenas a opinião, mas as religiões lhe deram o sentido de veredicto intocável. Kardec se refere ao dogma da reencarnação, mas não com o sentido religioso, esclarecendo que não se trata de dogma de fé, mas de razão. Todos os princípios da doutrina estão sujeitos à crítica e à reformulação, desde que uma prova científica, prova comprovada, seja reconhecida como tal pelo consenso universal dos sábios.

Assim como, na Lei Universal de Ação e Reação, os fracassos existenciais das civilizações acarretam consequências desastrosas no futuro, também os sucessos resultam em consequências benéficas. Equilibram-se os pratos da balança no processo da evolução humana. Às situações conflitivas de hoje, em nosso mundo, essa lei opõe as situações favoráveis da cultura. Ao mesmo tempo em que os dragões do passado acordam em seus esconderijos, acendem-se as luzes de esperança nas conquistas atuais da Humanidade. A influência dessas conquistas sobre os povos abranda os mitos negativos do passado, predispondo o presente para os avanços necessários, na elaboração universal de um mundo melhor.

John Dewey considera como experiência não apenas os ensaios humanos, mas também os ensaios da natureza. Todo o Universo, segundo a concepção espírita, é uma gigantesca experiência nos rumos das realizações arquetípicas, baseadas na elaboração de novos tipos da realidade para o futuro. Deus opera e experimenta em plano maior, enquanto os homens realizam suas experiências infantis nas dimensões possíveis de sua condição presente. O conceito de Deus, formulado constantemente pelos homens, nunca pode expressar essa realidade cósmica, mas na evolução espiritual do homem esse conceito avança em dinâmica progressiva. Tanto podemos fazer de Deus uma imagem humana como a imagem de um poder sem forma, semelhante ao fogo, como queria Zoroastro na antiga Pérsia. O importante é compreendermos que não há ordem sem poder disciplinador e que a ordem do Universo não poderia surgir do acaso, a menos que consideremos o acaso como um poder inteligente.

Kant, que considerou o nada como um conceito vazio, considerou também o conceito de Deus como a mais alta expressão do pensamento humano, um conceito pleno, em que toda a realidade universal se expressa numa só palavra de poucas letras.

As transformações conceptuais que o Espiritismo acarreta em nossa visão do mundo seria suficiente, por si só, para caracterizá-lo como a maior e mais completa revolução cultural do planeta, em todos os tempos. Por isso é necessário que os estudiosos do Espiritismo procurem definir bem os seus conceitos doutrinários.



[1] Evolução Espiritual do Homem - Na perspectiva da Doutrina Espírita – J. Herculano Pires

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