J. Herculano Pires
O conceito de pureza nasce das
relações sensoriais e, portanto, epidérmicas do homem com as coisas e os seres.
A sensação desagradável ou repugnante determina a natureza impura da coisa. Ao
contrário, a sensação agradável é de limpeza. Na gama infinita das sensações e
em suas diversificações influem também as condições ambientais, mesológicas,
ecológicas, os usos e costumes, as tradições e assim por diante. Mas o que
interessa ao nosso estudo pode resumir-se no primeiro contraste, que é o
desencadeante do processo. A influência racional aparece tardiamente, não conseguindo
modificar os esquemas estabelecidos. O critério religioso do puro e do impuro é
uma consequência refinada e racionalizada do processo natural e instintivo,
geralmente determinado por processos intelectuais e pelas exigências do
conceito do sagrado e os preceitos de santificação.
Para os judeus a vida era pura e
a morte impura. Bastava uma pessoa cair morta entre pessoas puras e todas elas
ficavam impuras e tinham de submeter-se no Templo aos ritos de purificação.
Lázaro, morto e ressuscitado por Jesus, tornara-se impuro. Para os gregos a
impureza vinha das derrotas em lutas físicas ou na escravidão. Para os romanos,
a impureza vinha dos espíritos malignos que deviam ser afastados das cidades
pelas procissões dos ancestrais, carregados em esfinge como santos ou pelas
festas dedicadas aos deuses. Mas em todos os casos a impureza era aviltante e
exigia ritos de purificação. Para os indianos a impureza era atributo dos
párias e contagiava as castas superiores, nascidas da cabeça e do espírito de
Brama. Para todos os povos antigos a relação sexual era impura, mas os deuses
podiam purificá-la. Não obstante, as criaturas superiores não podiam nascer
dessa relação, mas apenas de mães virgens fecundadas por um deus, como no caso
de Pitágoras. A virgindade era pura e sagrada, mas a esterilidade feminina
denunciava a maldição dos deuses para a mulher. As virgens mães eram puras e
geravam messias e profetas. No culto de Vista, introduzido em Roma, as vestais
deviam ser puras e manter-se virgens até os 30 anos de idade, sendo enterradas
vivas se tivessem relação sexual antes daquela idade. Não obstante, o culto
fálico se propagava entre todos os povos. E a prostituição sagrada oficialmente
nos tempos de Vênus dignificava as prostitutas. Dessa situação confusa nasceram
as regras de pureza e impureza do mundo cristão primitivo, ligado
umbilicalmente às prescrições judaicas. Afrodite era cultuada e nos templos da
Suméria havia cópulas sagradas nos altares, sob as bênçãos dos sacerdotes.
De todo esse panorama confuso,
as bacanais e as saturnais eram festas gloriosas, que agradavam os deuses.
Todas as religiões atuais estão ainda carregadas dos resíduos dessa fase. Esse
prolongamento da confusão erótica ao nosso tempo revela a predominância, no
homem pretensioso de hoje, de sua instintividade animalesca, acrescida de um
falso refinamento produzido pelo progresso material. A imensa maioria das
criaturas humanas, às vésperas da Era Cósmica, vive o dia-a-dia das sensações
primárias da espécie. O desenvolvimento do princípio inteligente foi atrofiado
na civilização tecnológica pela importância dada, de maneira quase absoluta,
aos problemas do bem-estar, das comodidades e da elegância do supérfluo. Em
geral, somos ainda macacos – não os que atribuíram a Darwin, mas os posteriores
– mais interessados a cuidar da barriga do que da cabeça.
Nossa civilização é uma
caricatura, em traços grotescos, daquela com que Augusto Comte sonhou,
confiante no seu lema ingênuo de ordem e progresso. Com a ordem tecnológica só
conseguimos o progresso das devastações ecológicas, do enriquecimento de
minorias inúteis e desprovidas do mínimo senso de equilíbrio social, corroídas
pela febre das ambições alucinantes, em contraste aterrador com a proliferação
das maiorias depauperadas, das multidões esfarrapadas, famintas e doentes.
Destruímos a inocência das crianças, que se transformaram em assaltantes e
assassinas. Nosso fracasso é total. Os avanços científicos do século compensam
em parte o atraso moral e espiritual, mas ao mesmo tempo fazem ressaltar os descalabros
das gerações levianas, viciosas, pedantes e insolentes, que desprezam os
valores significativos da civilização terrena.
Superando os condicionamentos
multimilenares do passado, o Espiritismo superou também os formalismos e as
sistemáticas da era moderna, estabelecendo, às vésperas do advento do século
XX, as diretrizes de uma nova mundividência. Kardec, culturalmente filiado à
chamada era das luzes, não se prendeu aos excessos do cientismo acadêmico. A
nova cultura surgia sobre os anátemas da Igreja e as ameaças dos sabichões,
como diria Richet.
Sábios, filósofos e cientistas temiam os fantasmas das superstições populares. Levantava-se
assim uma nova barreira ao avanço livre das ciências. Repelindo o temor
infantil, Kardec resolveu enfrentar os fantasmas. Lembrando o episódio da
revolta de Descartes contra a cultura mumificada dos jesuítas de La Fleche, à
reação de Rousseau ao tradicionalismo educacional e, mais especificamente, o
estudo de Galvani sobre a dança das rãs, não vacilou em verificar o que se
passava nos salões parisienses com a dança das mesas. Cauteloso e audacioso ao
mesmo tempo, descobriu o mecanismo do fenômeno e aprofundou-se na sua pesquisa.
Foi assim, como um cientista e não como um místico (que nunca havia sido), que
ele afugentou da mentalidade do tempo os fantasmas das superstições,
substituindo-os pelos fantasmas reais dos espíritos manifestantes. Provou de
maneira irrefutável a sobrevivência do homem após a morte corporal e que os
sobreviventes não viravam anjos nem demônios, mas guardavam a dimensão
espiritual da realidade terrena, não no céu nem no inferno, mas aqui mesmo, na
Terra dos homens, a sua condição humana.
Hoje, as pesquisas da Física
moderna e da Parapsicologia comprovaram inteiramente o acerto do mestre
francês. Revelada a face oculta do planeta, em que a vida prossegue vitoriosa e
livre, houve pânico nas ciências e profunda modificação nos conceitos da
própria modernidade dominante. Os conceitos relativos de pureza e impureza
romperam suas ligações umbilicais com o passado e abriram-se em novas dimensões
de uma realidade surpreendente. A pureza deixou de ser um tabu para se
transformar num conceito real, de bases científicas. Passou-se a entender por
pureza a naturalidade das coisas e, consequentemente, por impureza as
deformações das realidades sistemáticas imaginárias dos clérigos, dos teólogos
e também dos positivistas e materialistas, todos eles mais amigos de Platão do
que da verdade. Kardec mudava o sentido dos conceitos fundamentais do bem e do
mal, mostrando através de suas pesquisas psicológicas, na Sociedade Parisiense
de Estudos Espíritas, que mal e bem são conceitos relativos ligados ao processo
universal da evolução. O mal é a estagnação, o atraso, a ignorância, e o bem é
o progresso, o fluxo das coisas e dos seres, a transcendência. Morrer é um mal,
pois a morte corta o fluxo vital do homem que se imobiliza no cadáver. Mas da própria
morte resulta o bem da ressurreição, em que a essência do homem, que é o
espírito, entra no fluxo superior da vida espiritual. A morte como nadificação
do homem, segundo Sartre, é um contrassenso filosófico e científico, pois o
nada não existe, é um conceito vazio, como Kant já o verificara. Na plenitude
do Universo, hoje comprovada pelas pesquisas astronáuticas, não há lugar para o
nada, essa abstração sem sentido.
O estudo da doutrina espírita
nos mostra que ela representa uma reformulação total do conhecimento humano.
Mas as implicações religiosas da doutrina – embora Kardec jamais a tivesse
apresentado como religião, e sim como ciência, – moveram as forças
estacionárias das religiões contra Kardec e a doutrina, tentando sufocá-los e
eliminá-los da realidade cultural do planeta. Não o conseguiram, mas apoiados
na ignorância, de populares e sábios (os sabichões de Richet), conseguiram
confundir os fatos espíritas com a magia das religiões primitivas das tribos
selvagens, afastando do estudo da doutrina muitas pessoas supostamente cultas.
Instalado numa casa pobre da Rua dos Mártires, em Paris, Kardec fez jus ao nome
da rua, pois ali se transformou no mártir da ciência admirável, de que falava
Descartes. Ainda hoje o Espiritismo é encarado, por medo e preguiça mental,
pela maioria das criaturas humanas, tão necessitadas do seu socorro, como uma
ciência suspeita. E isso não obstante as comprovações científicas das verdades
espíritas, feitas pelos cientistas eminentes em todos os grandes centros
universitários do mundo.
Léon
Denis, discípulo e continuador de Kardec, percorreu toda a Europa, em
meados e fins do século passado, pronunciando conferências sobre o Espiritismo,
na esperança de superar as barreiras levantadas pelas religiões e pelas
ciências contra a doutrina. Uma das suas principais conferências, que abalaram
a Europa, intitulava-se “A Missão do Século XX”. Denis previa o avanço das
pesquisas espíritas nos meios científicos e culturais em geral, anunciando o
reconhecimento científico do Espiritismo pelas ciências. Já no final do nosso
século podemos constatar o acerto de Denis. Se não houve um reconhecimento fora
da Ciência Espírita, houve o reconhecimento de fatos pelas comprovações
científicas, no interesse do próprio desenvolvimento das ciências.
A Ciência Espírita apresenta-se
hoje como a pedra enjeitada da parábola evangélica, que teve de ser colocada
como a pedra angular da cultura do nosso tempo. Sua abertura generosa, jamais
se fechando em dogmas e sistemas fechados, é um desafio constante ao mundo
convencional da cultura que tenta desprezá-la e não consegue libertar-se dos
rumos teóricos e metodológicos por ela traçados, sem outra imposição de sua
realidade do que a própria realidade dos fatos em que se fundamenta. Cassirer,
filósofo alemão contemporâneo, condenou os sistemas, considerando-os como leito
de Procusto, em que os fatos empíricos das pesquisas têm de adaptar-se, deformados,
a uma sistemática prévia. Ao elaborar a Ciência Espírita, Kardec, muito antes
dessa opinião do filósofo, declarou que o Espiritismo oferecia, ao mesmo tempo,
uma filosofia e uma ciência livres dos prejuízos do espírito de sistema. A
palavra grega dogma equivale apenas a opinião, mas as religiões lhe deram o
sentido de veredicto intocável. Kardec se refere ao dogma da reencarnação, mas
não com o sentido religioso, esclarecendo que não se trata de dogma de fé, mas
de razão. Todos os princípios da doutrina estão sujeitos à crítica e à
reformulação, desde que uma prova científica, prova comprovada, seja
reconhecida como tal pelo consenso universal dos sábios.
Assim como, na Lei Universal de Ação
e Reação, os fracassos existenciais das civilizações acarretam consequências
desastrosas no futuro, também os sucessos resultam em consequências benéficas.
Equilibram-se os pratos da balança no processo da evolução humana. Às situações
conflitivas de hoje, em nosso mundo, essa lei opõe as situações favoráveis da
cultura. Ao mesmo tempo em que os dragões do passado acordam em seus
esconderijos, acendem-se as luzes de esperança nas conquistas atuais da
Humanidade. A influência dessas conquistas sobre os povos abranda os mitos
negativos do passado, predispondo o presente para os avanços necessários, na
elaboração universal de um mundo melhor.
John Dewey considera como
experiência não apenas os ensaios humanos, mas também os ensaios da natureza.
Todo o Universo, segundo a concepção espírita, é uma gigantesca experiência nos
rumos das realizações arquetípicas, baseadas na elaboração de novos tipos da
realidade para o futuro. Deus opera e experimenta em plano maior, enquanto os
homens realizam suas experiências infantis nas dimensões possíveis de sua
condição presente. O conceito de Deus, formulado constantemente pelos homens,
nunca pode expressar essa realidade cósmica, mas na evolução espiritual do
homem esse conceito avança em dinâmica progressiva. Tanto podemos fazer de Deus
uma imagem humana como a imagem de um poder sem forma, semelhante ao fogo, como
queria Zoroastro na antiga Pérsia. O importante é compreendermos que não há
ordem sem poder disciplinador e que a ordem do Universo não poderia surgir do
acaso, a menos que consideremos o acaso como um poder inteligente.
Kant, que considerou o nada como
um conceito vazio, considerou também o conceito de Deus como a mais alta
expressão do pensamento humano, um conceito pleno, em que toda a realidade
universal se expressa numa só palavra de poucas letras.
As transformações conceptuais
que o Espiritismo acarreta em nossa visão do mundo seria suficiente, por si só,
para caracterizá-lo como a maior e mais completa revolução cultural do planeta,
em todos os tempos. Por isso é necessário que os estudiosos do Espiritismo procurem
definir bem os seus conceitos doutrinários.
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