sexta-feira, 4 de novembro de 2022

A QUESTÃO DAS ASSINATURAS DE ESPÍRITOS[1]

 

Wesley Caldeira

 

Alan Kardec mostrou-se preocupado com a questão da identidade dos Espíritos desde o início da organização doutrinária, pois constatou a diversidade cultural e moral dos indivíduos desencarnados e entreviu os riscos inerentes ao relacionamento com eles.

Em Instrução prática sobre as manifestações espíritas (1858) tratou do tema no capítulo Das relações com os Espíritos. Em O que é o Espiritismo (1859) discorreu sobre ele e afirmou:

"[...] Devemos, pois, abster-nos de crer de um modo absoluto na autenticidade de todas as assinaturas de Espíritos[2]".

Foi, porém, no capítulo XXIV de O Livro dos Médiuns (1861) que conferiu à questão abordagem extensa, minuciosa e completa[3].

 

Antecedentes

O assunto não é novo na História.

Eurípedes, em 413 a.C., fez o personagem Orestes questionar um oráculo vindo supostamente do deus Apolo, recebido em Delfos, que lhe impunha vingar a morte do pai à custa da vida da mãe adúltera:

Não teria sido algum espírito infernal quem disso me persuadiu sob a forma de uma divindade?

Sua irmã Electra discordou:

Um espírito infernal... Sobre os altares sagrados? Ah! Não creio!

Mas Orestes não se convenceu:

No entanto, eu não admitirei nunca que semelhante oráculo tenha sido legítimo[4]...

Recomendou I João, 4:1:

Amados, não acrediteis em qualquer espírito, mas examinai os espíritos para ver se são de Deus[5].

Shakespeare anotou em Tragédias na cena em que após os generais Banquo e Macbeth são abordados, por três bruxas, e recebem profecias de ascensão política, que os instrumentos sombrios, como ardil para nos conduzir até a destruição, contam-nos verdade, cativam-nos com insignificâncias claramente honestas, só para trair-nos em consequências as mais profundas[6].

 

Advertência

A questão da identidade dos Espíritos é uma das mais controvertidas, afirmou o Codificador no item 255 do capítulo XXIV de O Livro dos Médiuns (LM). É, na verdade, depois da obsessão, uma das maiores dificuldades que apresenta à prática mediúnica.

Certos Espíritos se passam por personalidades respeitáveis. Falseiam o caráter, ocultam suas disposições intelectuais, emocionais e morais, imitando as personalidades que lhes interessam, seja para transmitirem ensinos falsos, seja para enredar o médium na obsessão por fascinação, lisonjeando lhe a vaidade pela grandeza dos nomes que por ele se comunicam.

 

Orientações gerais

A identificação absoluta, induvidosa, de um Espírito é difícil de obter. Há casos em que ela é importante, em outros, é questão secundária e sem importância real. (LM, it. 255)

Nas comunicações instrutivas o que importa é a apreciação moral dos Espíritos e a qualidade de seus ensinos. Os nomes ajudam a fixar as ideias, associando-as a seus autores. Os Espíritos bons podem usar emprestado o nome de uma personalidade respeitada, de semelhante grau de elevação espiritual, sem que isso traduza fraude, somente a indicação de sua ordem evolutiva. Os melhores Espíritos podem substituir-se mutuamente, sem maiores consequências; eles formam, por assim dizer, um todo coletivo (LM, it. 258), em que há solidariedade e analogia de pensamentos (LM, it. 268, subit. 4).

Já o mesmo empréstimo não desonera da condição de usurpadores os Espíritos que querem esconder sua ordem evolutiva inferior, atribuindo-se um nome respeitável, com o objetivo de receber mais crédito às suas palavras.

A identificação dos Espíritos é, sobretudo, relevante nos casos de comunicações íntimas, isto é, de familiares e amigos, porque aí é o indivíduo, a sua pessoa mesma que nos interessa (LM, it. 256).

 

Provas possíveis

Na Revista Espírita de março de 1862, analisando o caso Carrère, Allan Kardec declarou que as melhores provas são as que se originam da espontaneidade das comunicações[7].

O estilo de linguagem, o emprego de palavras do gosto pessoal, as citações de fatos particulares de suas vidas, desconhecidos dos praticantes, circunstâncias especiais e imprevisíveis que se apresentam ao longo e na sucessão dos diálogos produzem um mosaico de elementos demonstrativos da identidade dos comunicantes.

A melhor de todas as provas de identidade está na linguagem e nas circunstâncias fortuitas (LM, it. 260). Por isso, é melhor esperar que as provas surjam naturalmente, e não provocá-las, pedindo-as aos Espíritos (LM, it. 258).

 

Identificação pela caligrafia e assinatura

A semelhança de caligrafia e de assinatura nas comunicações psicográficas gera uma presunção favorável à identidade, mas não uma garantia. Há falsários no Mundo dos Espíritos (LM, it. 260).

Carlos Augusto Perandréa, professor da disciplina Identificação Datiloscópica e Grafotécnica na Universidade Estadual de Londrina, apresentou a comprovação pericial da autenticidade gráfica da escrita e da assinatura de Espíritos em mensagens psicografadas por Francisco Cândido Xavier[8], médium dotado de uma aptidão especial para esse efeito que nem todos os psicógrafos possuem, por mais mecânicos que sejam (LM, it. 219).

 

Identificação pela linguagem

Julgam-se os Espíritos, como os homens, pela sua linguagem (LM, it. 255).

Há relação entre a linguagem e o grau de elevação espiritual. Ela revela o indivíduo: formação, moral, ideias, gostos, ideais, manias. Emmanuel afirmou que a fala, de modo invariável, reflete o grupo moral a que pertencemos[9] é o índice de nossa posição evolutiva[10]. E Jesus ensinou[11] que da abundância do coração fala a boca. (Mateus, 12:34)

A linguagem pode ser imitada. No começo dos anos de 1980, um falsificador alemão aprendeu a imitar a caligrafia de Hitler; assimilou seu estilo literário; leu várias biografias eruditas do Führer, escreveu minuciosos relatos à feição de diários, que formaram 60 cadernos. O resultado foi tão espetacular que enganou o historiador britânico Hugh Trevor-Roper, professor de Oxford, um dos principais especialistas no líder do Nazismo, e a impostura foi vendida por 4,8 milhões de dólares para a revista alemã “Stern”.

Allan Kardec percebeu os riscos das imitações. Seu conselho: estudar o ditado em seu conjunto, de mente aberta, perscrutando o fundo das ideias, o alcance das expressões, pois certos aspectos formais de linguagem podem ser imitados, mas não o pensamento. Como ele acrescentou, jamais a ignorância imitará o verdadeiro saber e jamais o vício imitará a verdadeira virtude (LM, it. 26l); quando os Espíritos inferiores tentam imitar o pensamento dos Espíritos nobres fazem-no como os cenários do teatro imitam a Natureza. (LM, it. 268, subit. 24)

.

A lógica e o bom senso nas comunicações

Kardec enfatizou que uma comunicação deve ser examinada perscrutando e analisando suas ideias e expressões, rejeitando, sem hesitação, tudo o que for contrário à lógica e ao bom senso, tudo o que desminta o caráter do Espírito que supomos esteja se manifestando. (LM, it. 266)

Anna Blackwell, tradutora de algumas obras de Kardec para o inglês, conhecendo-o bem, teve razão em dizer que ele era precavido e realista até quase à frieza, cético por natureza e por educação, argumentador lógico e preciso, e eminentemente prático em suas ideias e ações, distanciado assim do misticismo que do entusiasmo[12].

O Codificador completou sua recomendação:

"este é o único meio, porém, o meio infalível, porque não há comunicação má que resista a uma crítica rigorosa" (LM, it. 266); "Tudo o que se afaste da lógica, da razão e da prudência não pode deixar dúvida quanto à sua origem". (LM, it. 267, subit. 5)

Quando publicou O Evangelho segundo o Espiritismo (1864), ele disse que esse cuidado habilitará o Movimento Espírita a garantir a unidade doutrinária, orientando-se pela concordância dos ensinos dos Espíritos, reservando aos ensinos sem a validação da universalidade o status de tese de esclarecimento, a exigir, por isso mesmo, maior prudência em dar-lhes publicidade[13]. 

 

Distinção entre os Espíritos bons e maus

É imprescindível verificar em que grau da escala espírita se encontram os Espíritos que fazem comunicações instrutivas ou que se apresentam como guias espirituais, e assim saber que medida de confiança merecem.  A individualidade deles pode até nos ser indiferente; nunca, porém, suas qualidades morais. (LM, it. 262)

A linguagem dos Espíritos Superiores é elevada, modesta, concisa, pois têm a arte de dizer muitas coisas em poucas palavras (LM, it. 267, subit. 9); pode até conter gracejos, mas finos e sutis, nunca triviais. (LM, it. 267, subit. 24)

O que mais interessa numa comunicação é sondar lhe o íntimo, analisar suas palavras, pesá-las friamente, maduramente e sem prevenção. (LM, it. 267, subit. 5).

Comentando o versículo da carta atribuída a Tiago, 3:7, Emmanuel disse[14] que Toda página escrita tem alma e o crente precisa auscultar lhe a natureza. [...]. O versículo discerniu, maravilhosamente: a sabedoria que vem do alto é, antes de tudo, pura, depois pacífica, indulgente [moderada, em algumas traduções], conciliadora, cheia de misericórdia e de bons frutos, isenta de parcialidade e de hipocrisia[15], jamais é portadora dos "venenos sutis da parcialidade humana”[16].

Tudo isso deve ser analisado dentro de uma uniformidade constante das boas comunicações (LM, it. 268, subit. 11).

 

Identificação pela aparência

Kardec perguntou aos Espíritos se entre eles haveria aqueles capazes, [...] aos olhos de um médium vidente, de tomar uma falsa aparência? (LM, it. 268, subit. 14). Sim, responderam; é possível enganar "por meio das falsas aparências”.

Manoel Philomeno de Miranda relata[17] a tentativa de Espíritos maus de iludirem, por esse estratagema, os próprios Espíritos nobres:

[...] em realidade, não tivemos aqui, o antigo sacerdote Elia-chim bem Sadoch, mas um clone dele, um Espírito que lhe assimilou as características com o objetivo de enganarmos, já que, no seu reduto, ele acompanhou os lances do nosso encontro.

Alguns médiuns não são propriamente videntes, mas podem captar clichês mentais produzidos por participantes encarnados ou desencarnados de uma reunião mediúnica, através do diencéfalo[18], a parte do cérebro que está apta a decodificar um quadro fluídico em processo visual, o que constitui outra porta para o engodo.

 

Identificação pelo estado vibratório

Os Espíritos bons transmitem impressão agradável, suave, tranquila. A aproximação dos Espíritos maus produz mal-estar, pode até causar agitação física, pelo modo com que afeta a sensibilidade nervosa do médium. (LM, it. 267, subit. 19)

Kardec, entretanto, chamou a atenção para um detalhe:

“[...] O caráter penoso e desagradável da impressão é um efeito de contraste, pois se o Espírito do médium simpatiza com o Espírito mau que se manifesta, será pouco ou nada afetado pela proximidade deste”. (LM, it. 268, subit. 28 – Comentário de Kardec)

Philomeno de Miranda apresentou o exemplo do médium Davi[19], cujo intercâmbio com Espíritos mistificadores provocou o embotamento da sensibilidade fluídica:

"Vejo-o, não poucas vezes, assessorado por seres malfazejos que já se utilizam de você fingindo tratar-se de mim... Porque a sua sensibilidade está ficando embotada, não se dá conta da diferença das energias deles e das minhas [...]."

 

O exemplo de Allan Kardec

Por volta de 1863, Kardec estava recebendo comunicações mediúnicas "de perto de mil centros espíritas sérios, disseminados pelos mais diversos pontos da Terra[20]". Na Revista Espírita de maio desse ano[21], ele apresentou um balanço de seus trabalhos relativos a essas comunicações:

a)      cerca de 3600 comunicações foram examinadas e classificadas;

b)      mais de 3.000 tinham moralidade irrepreensível, "excelente como fundo”, as outras eram más, no fundo e na forma, vindas, quase todas, de médiuns que trabalhavam isolados –"o isolamento favorece a fascinação";

c)       mais ou menos 300 eram suscetíveis de publicação;

d)     apenas 100 eram de "mérito fora do comum" – no "Mundo Invisível, como na Terra, não faltam escritores, mas os bons são raros";

e)      30 manuscritos extensos foram estudados, mas apenas cinco ou seis tinham real valor.

 

Observações finais

Para julgar os Espíritos, como para julgar os homens, é preciso, primeiro, que cada um saiba julgar-se a si mesmo (LM, it. 267, subit. 26).

A educação da mediunidade passa por fases diversas num percurso quase sempre longo. A paciência é a prova mais comum, nos períodos iniciais, e o discernimento é a vitória progressiva da maturidade, resultante do estudo e da experiência.

Não é desprestígio equivocar-se na identificação dos Espíritos, ou sofrer mistificações, nem isso significa ausência de boa assistência espiritual. Mesmo os bons médiuns podem ser enganados; embora com menos frequência (LM, it. 226, subit. 9).

 

O erro tem valor educacional como caminho no processo.

De tudo se colhe um ensinamento, mesmo das piores coisas. Cabe a vós saber colhê-lo. É preciso que haja comunicações de toda espécie, para que aprendais a distinguir os Espíritos bons dos maus e para que vos sirvam de espelho a vós mesmos. (LM, it. 268, subit. 16)

A modéstia é o mais nobre dos adornos: aquele que não sabe distinguir a pedra legítima da falsa se dirige ao lapidário (LM, it. 268, subit. 25); ou seja, pede ajuda.

[...] Toda precaução é pouca para evitar as publicações lamentáveis. [...] mais vale pecar por excesso de prudência, no interesse da causa; é necessário "não publicar inconsideradamente tudo quanto vem dos Espíritos, se quisermos atingir os objetivos a que nos propomos; o que deve ser entregue ao público exige condições especiais – assim orientou Allan Kardec[22].



[2] KARDEC, Allan. 0 que é o espiritismo. Tradução da redação de Reformador em 1884. 56. ed. 1. imp. Brasília: FEB, 2013. cap. II, it. 93 a 96.

[3] O Livro dos médiuns. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 1. imp. Brasília: FEB, 2013.

[4] EURÍPIDES. Alceste, Electra, Hipólito. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2004. p. 110 e 111.

[5] BÍBLIA DE JERUSALÉM. Trad. Gilberto da Silva Gorgulho et ai. [8. imp.] São Paulo: Paulus Editora, 2012.

[6] SHAKESPEARE, William. Tragédias. Trad. Beatriz Viegas-Faria. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2003. 1 Ato, Cena III, p. 151 e 154.

[7] KARDEC, Allan. Revista Espírita: jornal de estudos psicológicos, ano 5, n. 3, p. 117, mar. 1862. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 4. ed. 1. imp. Brasília: FEB, 2014.

[8] PERANDRÉA, Carlos Augusto. A psicografia à Luz da grafoscopia. São Paulo: Editora Fé, 1991.

[9] XAVIER, Francisco C. Seara dos médiuns. Pelo Espírito Emmanuel. 20.ed. 7º imp. Brasília: FEB, 2016. cap. 27 -Palavra.

[10] XAVIER, Francisco C. Vinha de Luz. Pelo Espírito Emmanuel. 8. imp. Brasília: FEB, 2015. cap. 73 - Falatórios.

[11] DIAS, Haroldo Dutra. 0 novo testamento. Brasília: FEB, 2013.

[12] WANTUIL, Zêus; THIESEN, Francisco. ALLan Kardec. pesquisa biobibliogrófica e ensaios de interpretação. 4. ed. Brasília: FEB. v. 3,1982. p. 130.

[13] KARDEC, Allan. 0 evangelho segundo o espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro. 131. ed. 6. imp. (Edição Histórica.) Brasília: FEB, 2016. Introdução, it. II.

[14] XAVIER, Francisco C. Pão nosso. Pelo Espírito Emmanuel. 1. ed. 10. imp. Brasília: FEB, 2016. cap. 14 - Páginas.

[15] BÍBLIA DE JERUSALÉM. Trad. Gilberto da Silva Gorgulho et aL. [8. imp.] São Paulo: Paulus Editora, 2012.

[16] XAVIER, Francisco C. Pão nosso. Pelo Espírito Emmanuel. 1. ed. 10. imp. Brasília: FEB, 2016. cap. 14 - Páginas.

[17] FRANCO, Divaldo Pereira. Transição planetária. Pelo Espírito Manoel Philomeno de Miranda. 2. ed. Salvador: LEAL, 2010. p. 217.

[18] XAVIER, Francisco C.; VIEIRA, Waldo. Evolução em dois mundos. Pelo Espírito André Luiz. 27. ed. 5. imp. Brasília: FEB, 2016. cap. 9, it. Microcosmo prodigioso, p. 73 e cap. 16, it. Sincronia de estímulos, p. 127.

[19] FRANCO, Divaldo Pereira. Trilhas da Libertação. Pelo Espírito Manoel Philomeno de Miranda. 10. ed. 3. imp. Brasília: FEB, 2014. cap. Advertências salvadoras, p. 126.

[20] KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro. 131. ed. 6. imp. (Edição Histórica.) Brasília: FEB, 2016. Introdução, it. II.

[21]KARDEC, Allan. Revista Espírita: jornal de estudos psicológicos, ano 6, n. 5, p. 212, mai. 1863. Trad. Evandro Noleto Bezerro. 4. ed. 1. imp. Brasília: FEB, 2014.

[22] _,_. p. 212 e 213.

Nenhum comentário:

Postar um comentário