Wesley Caldeira
Alan Kardec mostrou-se
preocupado com a questão da identidade dos Espíritos desde o início da
organização doutrinária, pois constatou a diversidade cultural e moral dos indivíduos
desencarnados e entreviu os riscos inerentes ao relacionamento com eles.
Em Instrução prática sobre as
manifestações espíritas (1858) tratou do tema no capítulo Das relações com
os Espíritos. Em O que é o Espiritismo (1859) discorreu sobre ele e
afirmou:
"[...] Devemos, pois, abster-nos de crer de um
modo absoluto na autenticidade de todas as assinaturas de Espíritos[2]".
Foi, porém, no capítulo XXIV de O
Livro dos Médiuns (1861) que conferiu à questão abordagem extensa,
minuciosa e completa[3].
Antecedentes
O assunto não é novo na
História.
Eurípedes, em 413 a.C., fez o
personagem Orestes questionar um oráculo vindo supostamente do deus Apolo,
recebido em Delfos, que lhe impunha vingar a morte do pai à custa da vida da
mãe adúltera:
Não teria sido algum espírito infernal quem disso me
persuadiu sob a forma de uma divindade?
Sua irmã Electra discordou:
Um espírito infernal... Sobre
os altares sagrados? Ah! Não creio!
Mas Orestes não se convenceu:
No entanto, eu não admitirei
nunca que semelhante oráculo tenha sido legítimo[4]...
Recomendou I João, 4:1:
Amados, não acrediteis em qualquer espírito, mas examinai
os espíritos para ver se são de Deus[5].
Shakespeare anotou em Tragédias
na cena em que após os generais Banquo e Macbeth são abordados, por três
bruxas, e recebem profecias de ascensão política, que os instrumentos sombrios,
como ardil para nos conduzir até a destruição, contam-nos verdade,
cativam-nos com insignificâncias claramente honestas, só para trair-nos em
consequências as mais profundas[6].
Advertência
A questão da identidade dos
Espíritos é uma das mais controvertidas, afirmou o Codificador no item
255 do capítulo XXIV de O Livro dos Médiuns (LM). É, na verdade, depois
da obsessão, uma das maiores dificuldades que apresenta à prática
mediúnica.
Certos Espíritos se passam por
personalidades respeitáveis. Falseiam o caráter, ocultam suas disposições
intelectuais, emocionais e morais, imitando as personalidades que lhes
interessam, seja para transmitirem ensinos falsos, seja para enredar o médium
na obsessão por fascinação, lisonjeando lhe a vaidade pela grandeza dos nomes
que por ele se comunicam.
Orientações gerais
A identificação absoluta,
induvidosa, de um Espírito é difícil de obter. Há casos em que ela é
importante, em outros, é questão secundária e sem importância real. (LM,
it. 255)
Nas comunicações instrutivas o
que importa é a apreciação moral dos Espíritos e a qualidade de seus ensinos.
Os nomes ajudam a fixar as ideias, associando-as a seus autores. Os Espíritos
bons podem usar emprestado o nome de uma personalidade respeitada, de
semelhante grau de elevação espiritual, sem que isso traduza fraude, somente a
indicação de sua ordem evolutiva. Os melhores Espíritos podem substituir-se
mutuamente, sem maiores consequências; eles formam, por assim dizer, um
todo coletivo (LM, it. 258), em que há solidariedade e analogia de
pensamentos (LM, it. 268, subit. 4).
Já o mesmo empréstimo não
desonera da condição de usurpadores os Espíritos que querem esconder sua ordem
evolutiva inferior, atribuindo-se um nome respeitável, com o objetivo de
receber mais crédito às suas palavras.
A identificação dos Espíritos é,
sobretudo, relevante nos casos de comunicações íntimas, isto é, de familiares e
amigos, porque aí é o indivíduo, a sua
pessoa mesma que nos interessa (LM, it. 256).
Provas possíveis
Na Revista Espírita de
março de 1862, analisando o caso Carrère,
Allan Kardec declarou que as melhores provas são as que se originam da
espontaneidade das comunicações[7].
O estilo de linguagem, o emprego
de palavras do gosto pessoal, as citações de fatos particulares de suas vidas,
desconhecidos dos praticantes, circunstâncias especiais e imprevisíveis que se
apresentam ao longo e na sucessão dos diálogos produzem um mosaico de elementos
demonstrativos da identidade dos comunicantes.
A melhor de todas as provas
de identidade está na linguagem e nas circunstâncias fortuitas (LM, it.
260). Por isso, é melhor esperar que as
provas surjam naturalmente, e não provocá-las, pedindo-as aos Espíritos
(LM, it. 258).
Identificação pela caligrafia e assinatura
A semelhança de caligrafia e de
assinatura nas comunicações psicográficas gera uma presunção favorável à
identidade, mas não uma garantia. Há falsários no Mundo dos Espíritos
(LM, it. 260).
Carlos Augusto Perandréa,
professor da disciplina Identificação Datiloscópica e Grafotécnica na
Universidade Estadual de Londrina, apresentou a comprovação pericial da
autenticidade gráfica da escrita e da assinatura de Espíritos em mensagens
psicografadas por Francisco Cândido Xavier[8],
médium dotado de uma aptidão especial
para esse efeito que nem todos os psicógrafos possuem, por mais mecânicos que
sejam (LM, it. 219).
Identificação pela linguagem
Julgam-se os Espíritos, como os homens, pela sua
linguagem (LM, it. 255).
Há relação entre a linguagem e o
grau de elevação espiritual. Ela revela o indivíduo: formação, moral, ideias,
gostos, ideais, manias. Emmanuel afirmou que a fala, de modo invariável,
reflete o grupo moral a que pertencemos[9]
é o índice de nossa posição evolutiva[10].
E Jesus ensinou[11]
que da abundância do coração fala a boca. (Mateus, 12:34)
A linguagem pode ser imitada. No
começo dos anos de 1980, um falsificador alemão aprendeu a imitar a caligrafia
de Hitler; assimilou seu estilo literário; leu várias biografias eruditas do
Führer, escreveu minuciosos relatos à feição de diários, que formaram 60
cadernos. O resultado foi tão espetacular que enganou o historiador britânico
Hugh Trevor-Roper, professor de Oxford, um dos principais especialistas no
líder do Nazismo, e a impostura foi vendida por 4,8 milhões de dólares para a
revista alemã “Stern”.
Allan Kardec percebeu os riscos
das imitações. Seu conselho: estudar o ditado em seu conjunto, de mente aberta,
perscrutando o fundo das ideias, o alcance das expressões, pois certos
aspectos formais de linguagem podem ser imitados, mas não o pensamento.
Como ele acrescentou, jamais a ignorância imitará o verdadeiro saber e
jamais o vício imitará a verdadeira virtude (LM, it. 26l); quando os
Espíritos inferiores tentam imitar o pensamento dos Espíritos nobres fazem-no como
os cenários do teatro imitam a Natureza. (LM, it. 268, subit. 24)
.
A lógica e o bom senso nas comunicações
Kardec enfatizou que uma comunicação
deve ser examinada perscrutando e analisando suas ideias e expressões, rejeitando,
sem hesitação, tudo o que for contrário à lógica e ao bom senso, tudo o que
desminta o caráter do Espírito que supomos esteja se manifestando. (LM, it.
266)
Anna Blackwell, tradutora de
algumas obras de Kardec para o inglês, conhecendo-o bem, teve razão em dizer
que ele era precavido e realista até quase à frieza, cético por natureza e
por educação, argumentador lógico e preciso, e eminentemente prático em suas
ideias e ações, distanciado assim do misticismo que do entusiasmo[12].
O Codificador completou sua
recomendação:
"este é o único meio, porém, o meio infalível,
porque não há comunicação má que resista a uma crítica rigorosa" (LM, it. 266); "Tudo o que se afaste
da lógica, da razão e da prudência não pode deixar dúvida quanto à sua
origem". (LM, it. 267, subit. 5)
Quando publicou O Evangelho
segundo o Espiritismo (1864), ele disse que esse cuidado habilitará o
Movimento Espírita a garantir a unidade doutrinária, orientando-se pela
concordância dos ensinos
dos Espíritos, reservando aos ensinos sem a validação da universalidade o
status de tese de esclarecimento, a exigir, por isso mesmo, maior prudência
em dar-lhes publicidade[13].
Distinção entre os Espíritos bons e maus
É imprescindível verificar em
que grau da escala espírita se encontram os Espíritos que fazem comunicações
instrutivas ou que se apresentam como guias espirituais, e assim saber que
medida de confiança merecem. A
individualidade deles pode até nos ser indiferente; nunca, porém, suas
qualidades morais. (LM, it. 262)
A linguagem dos Espíritos
Superiores é elevada, modesta, concisa, pois têm a arte de dizer muitas
coisas em poucas palavras (LM, it. 267, subit. 9); pode até conter
gracejos, mas finos e sutis, nunca triviais. (LM, it. 267, subit. 24)
O que mais interessa numa
comunicação é sondar lhe o íntimo, analisar suas palavras, pesá-las
friamente, maduramente e sem prevenção. (LM, it. 267, subit. 5).
Comentando o versículo da carta
atribuída a Tiago, 3:7, Emmanuel disse[14]
que Toda página escrita tem alma e o
crente precisa auscultar lhe a natureza. [...]. O versículo discerniu,
maravilhosamente: a sabedoria que vem do
alto é, antes de tudo, pura, depois pacífica, indulgente [moderada, em
algumas traduções], conciliadora, cheia
de misericórdia e de bons frutos, isenta de parcialidade e de hipocrisia[15],
jamais é portadora dos "venenos sutis da parcialidade humana”[16].
Tudo isso deve ser analisado
dentro de uma uniformidade constante das
boas comunicações (LM, it. 268, subit. 11).
Identificação pela aparência
Kardec perguntou aos Espíritos
se entre eles haveria aqueles capazes, [...]
aos olhos de um médium vidente, de tomar uma falsa aparência? (LM, it. 268,
subit. 14). Sim, responderam; é possível
enganar "por meio das falsas aparências”.
Manoel Philomeno de Miranda
relata[17]
a tentativa de Espíritos maus de iludirem, por esse estratagema, os próprios
Espíritos nobres:
[...] em realidade,
não tivemos aqui, o antigo sacerdote Elia-chim bem Sadoch, mas um clone dele,
um Espírito que lhe assimilou as características com o objetivo de enganarmos,
já que, no seu reduto, ele acompanhou os lances do nosso encontro.
Alguns médiuns não são
propriamente videntes, mas podem captar clichês mentais produzidos por participantes
encarnados ou desencarnados de uma reunião mediúnica, através do diencéfalo[18],
a parte do cérebro que está apta a decodificar um quadro fluídico em processo
visual, o que constitui outra porta para o engodo.
Identificação pelo estado vibratório
Os Espíritos bons transmitem
impressão agradável, suave, tranquila. A
aproximação dos Espíritos maus produz mal-estar, pode até causar agitação
física, pelo modo com que afeta a sensibilidade nervosa do médium. (LM, it.
267, subit. 19)
Kardec, entretanto, chamou a
atenção para um detalhe:
“[...] O caráter
penoso e desagradável da impressão é um efeito de contraste, pois se o Espírito
do médium simpatiza com o Espírito mau que se manifesta, será pouco ou nada
afetado pela proximidade deste”. (LM, it. 268, subit. 28 – Comentário de
Kardec)
Philomeno de Miranda apresentou o exemplo do médium Davi[19],
cujo intercâmbio com Espíritos mistificadores provocou o embotamento da
sensibilidade fluídica:
"Vejo-o, não
poucas vezes, assessorado por seres malfazejos que já se utilizam de você
fingindo tratar-se de mim... Porque a sua sensibilidade está ficando embotada,
não se dá conta da diferença das energias deles e das minhas [...]."
O exemplo de Allan Kardec
Por volta de 1863, Kardec estava
recebendo comunicações mediúnicas "de perto de mil centros espíritas
sérios, disseminados pelos mais diversos pontos da Terra[20]".
Na Revista Espírita de maio desse ano[21],
ele apresentou um balanço de seus trabalhos relativos a essas comunicações:
a)
cerca de 3600 comunicações foram examinadas e
classificadas;
b)
mais de 3.000 tinham moralidade irrepreensível,
"excelente como fundo”, as outras eram más, no fundo e na forma, vindas,
quase todas, de médiuns que trabalhavam isolados –"o isolamento favorece a
fascinação";
c)
mais ou menos 300 eram suscetíveis de
publicação;
d)
apenas 100 eram de "mérito fora do
comum" – no "Mundo Invisível, como na Terra, não faltam escritores,
mas os bons são raros";
e)
30 manuscritos extensos foram estudados, mas
apenas cinco ou seis tinham real valor.
Observações finais
Para julgar os Espíritos, como para julgar os homens, é preciso, primeiro,
que cada um saiba julgar-se a si mesmo (LM, it. 267, subit. 26).
A educação da mediunidade passa
por fases diversas num percurso quase sempre longo. A paciência é a prova mais
comum, nos períodos iniciais, e o discernimento é a vitória progressiva da
maturidade, resultante do estudo e da experiência.
Não é desprestígio equivocar-se
na identificação dos Espíritos, ou sofrer mistificações, nem isso significa
ausência de boa assistência espiritual. Mesmo os bons médiuns podem ser
enganados; embora com menos frequência
(LM, it. 226, subit. 9).
O erro tem valor educacional como caminho no processo.
De tudo se colhe um ensinamento,
mesmo das piores coisas. Cabe a vós saber colhê-lo. É preciso que haja comunicações de toda espécie, para que aprendais a
distinguir os Espíritos bons dos maus e para que vos sirvam de espelho a vós
mesmos. (LM, it. 268, subit. 16)
A modéstia é o mais nobre dos adornos:
aquele que não sabe distinguir a pedra
legítima da falsa se dirige ao lapidário (LM, it. 268, subit. 25); ou seja,
pede ajuda.
[...] Toda precaução é
pouca para evitar as publicações lamentáveis. [...] mais vale pecar por excesso
de prudência, no interesse da causa; é necessário "não publicar inconsideradamente tudo quanto vem dos Espíritos, se
quisermos atingir os objetivos a que nos propomos; o que deve ser entregue ao
público exige condições especiais – assim orientou Allan Kardec[22].
[1] http://www.espiritualidades.com.br/Artigos/C_autores/CALDEIRA_Wesley_tit_Questao_das_assinaturas_de_espiritos-A.htm#topo
[2] KARDEC, Allan. 0 que é o espiritismo. Tradução
da redação de Reformador em 1884. 56. ed. 1. imp. Brasília: FEB, 2013. cap. II,
it. 93 a 96.
[3] O Livro dos médiuns. Trad. Evandro Noleto
Bezerra. 2. ed. 1. imp. Brasília: FEB, 2013.
[4] EURÍPIDES. Alceste, Electra, Hipólito. Trad. Pietro
Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2004. p. 110 e 111.
[5] BÍBLIA DE JERUSALÉM. Trad. Gilberto da Silva Gorgulho
et ai. [8. imp.] São Paulo: Paulus Editora, 2012.
[6] SHAKESPEARE, William. Tragédias. Trad. Beatriz
Viegas-Faria. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2003. 1 Ato, Cena III, p. 151 e
154.
[7] KARDEC, Allan. Revista Espírita: jornal de estudos
psicológicos, ano 5, n. 3, p. 117, mar. 1862. Trad. Evandro Noleto Bezerra.
4. ed. 1. imp. Brasília: FEB, 2014.
[8] PERANDRÉA, Carlos Augusto. A psicografia à Luz da
grafoscopia. São Paulo: Editora Fé, 1991.
[9] XAVIER, Francisco C. Seara dos médiuns. Pelo
Espírito Emmanuel. 20.ed. 7º imp. Brasília: FEB, 2016. cap. 27 -Palavra.
[10] XAVIER, Francisco C. Vinha de Luz. Pelo
Espírito Emmanuel. 8. imp. Brasília: FEB, 2015. cap. 73 - Falatórios.
[11] DIAS, Haroldo Dutra. 0 novo testamento. Brasília: FEB,
2013.
[12] WANTUIL, Zêus; THIESEN, Francisco. ALLan Kardec.
pesquisa biobibliogrófica e ensaios de interpretação. 4. ed. Brasília: FEB. v.
3,1982. p. 130.
[13] KARDEC, Allan. 0 evangelho segundo o espiritismo.
Trad. Guillon Ribeiro. 131. ed. 6. imp. (Edição Histórica.) Brasília: FEB,
2016. Introdução, it. II.
[14] XAVIER, Francisco C. Pão nosso. Pelo Espírito
Emmanuel. 1. ed. 10. imp. Brasília: FEB, 2016. cap. 14 - Páginas.
[15] BÍBLIA DE JERUSALÉM. Trad. Gilberto da Silva Gorgulho
et aL. [8. imp.] São Paulo: Paulus Editora, 2012.
[16] XAVIER, Francisco C. Pão nosso. Pelo Espírito
Emmanuel. 1. ed. 10. imp. Brasília: FEB, 2016. cap. 14 - Páginas.
[17] FRANCO, Divaldo Pereira. Transição planetária. Pelo
Espírito Manoel Philomeno de Miranda. 2. ed. Salvador: LEAL, 2010. p. 217.
[18] XAVIER, Francisco C.; VIEIRA, Waldo. Evolução em
dois mundos. Pelo Espírito André Luiz. 27. ed. 5. imp. Brasília: FEB, 2016.
cap. 9, it. Microcosmo prodigioso, p. 73 e cap. 16, it. Sincronia de estímulos,
p. 127.
[19] FRANCO, Divaldo Pereira. Trilhas da Libertação. Pelo
Espírito Manoel Philomeno de Miranda. 10. ed. 3. imp. Brasília: FEB, 2014. cap.
Advertências salvadoras, p. 126.
[20] KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo.
Trad. Guillon Ribeiro. 131. ed. 6. imp. (Edição Histórica.) Brasília: FEB,
2016. Introdução, it. II.
[21]KARDEC, Allan. Revista Espírita: jornal de estudos
psicológicos, ano 6, n. 5, p. 212, mai. 1863. Trad. Evandro Noleto Bezerro.
4. ed. 1. imp. Brasília: FEB, 2014.
[22] _,_. p. 212 e 213.
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