Já abordamos esta questão em
nosso último número, a propósito de um artigo especial (vide Da Perfeição dos Seres Criados,
publicado neste blog em 12/02/2019); mas ela é de tal gravidade e tem consequências
tão importantes para o futuro do Espiritismo, que julgamos dever tratá-la de maneira
mais completa.
Se a Doutrina Espírita fosse de
concepção puramente humana, não ofereceria por penhor senão as luzes daquele
que a houvesse concebido. Ora, ninguém, neste mundo, poderia alimentar
fundadamente a pretensão de possuir, com exclusividade, a verdade absoluta. Se
os Espíritos que a revelaram se houvessem manifestado a um só homem, nada lhe
garantiria a origem, porquanto fora mister acreditar, sob palavra, naquele que
dissesse ter recebido deles o ensino. Admitida, de sua parte, sinceridade perfeita,
quando muito poderia ele convencer as pessoas de suas relações; conseguiria
sectários, mas nunca chegaria a congregar todo o mundo.
Quis Deus que a nova revelação
chegasse aos homens por caminho mais rápido e mais autêntico. Incumbiu, pois,
os Espíritos de levá-la de um polo a outro, manifestando-se por toda parte, sem
conferir a ninguém o privilégio de lhes ouvir a palavra.
Um homem pode ser ludibriado,
pode enganar-se a si mesmo; já não será assim, quando milhões de criaturas veem
e ouvem a mesma coisa. Constitui isso uma garantia para cada um e para todos.
Ao demais, pode fazer-se que desapareça um homem; mas não se pode fazer que
desapareçam as coletividades; podem queimar-se os livros, mas não se podem
queimar os Espíritos. Ora, queimassem-se todos os livros e a fonte da doutrina
não deixaria de conservar-se inexaurível, pela razão mesma de não estar na
Terra, de surgir em todos os lugares e de poderem todos dessedentar-se nela.
Faltem os homens para difundi-la: haverá sempre os Espíritos, cuja atuação a
todos atinge e aos quais ninguém pode atingir.
São, pois, os próprios Espíritos
que fazem a propagação, com o auxílio dos inúmeros médiuns que, também eles, os
Espíritos, vão suscitando de todos os lados. Se tivesse havido unicamente um
intérprete, por mais favorecido que fosse, o Espiritismo mal seria conhecido.
Qualquer que fosse a classe a que pertencesse, tal intérprete houvera sido
objeto das prevenções de muita gente e nem todas as nações o teriam aceitado,
ao passo que os Espíritos se comunicam em todos os pontos da Terra, a todos os
povos, a todas as seitas, a todos os partidos, e todos os aceitam.
O Espiritismo não tem
nacionalidade e não faz parte de nenhum culto existente; nenhuma classe social
o impõe, visto que qualquer pessoa pode receber instruções de seus parentes e
amigos de além-túmulo.
Cumpre seja assim, para que ele
possa conduzir todos os homens à fraternidade. Se não se mantivesse em terreno
neutro, alimentaria as dissensões, em vez de apaziguá-las.
Nessa universalidade do ensino
dos Espíritos reside a força do Espiritismo e, também, a causa de sua tão
rápida propagação. Enquanto a palavra de um só homem, mesmo com o concurso da
imprensa, levaria séculos para chegar ao conhecimento de todos, milhares de
vozes se fazem ouvir simultaneamente em todos os recantos do planeta,
proclamando os mesmos princípios e transmitindo-os aos mais ignorantes, como
aos mais doutos, a fim de que não haja deserdados. É uma vantagem de que não
gozara ainda nenhuma das doutrinas surgidas até hoje. Se o Espiritismo, portanto,
é uma verdade, não teme o malquerer dos homens, nem as revoluções morais, nem
as subversões físicas do globo, porque nada disso pode atingir os Espíritos.
Não é essa, porém, a única
vantagem que lhe decorre da sua excepcional posição. Ela lhe faculta inatacável
garantia contra todos os cismas que pudessem provir, seja da ambição de alguns,
seja das contradições de certos Espíritos. Tais condições, não há negar, são um
escolho, mas que traz consigo o remédio, ao lado do mal.
Sabe-se que os Espíritos, em
virtude da diferença entre as suas capacidades, longe se acham de estar,
individualmente considerados, na posse de toda a verdade; que nem a todos é
dado penetrar certos mistérios; que o saber de cada um deles é proporcional à
sua depuração; que os Espíritos vulgares mais não sabem do que muitos homens e
até menos que certos homens; que entre eles, como entre estes, há presunçosos e
pseudo-sábios, que julgam saber o que ignoram; sistemáticos, que tomam por verdades
as suas ideias; enfim, que só os Espíritos da categoria mais elevada, os que já
estão completamente desmaterializados, se encontram despidos das ideias e
preconceitos terrenos; mas, também é sabido que os Espíritos enganadores não
têm escrúpulo em tomar nomes que lhes não pertencem, para impingirem suas utopias.
Daí resulta que, com relação a tudo o que seja fora do âmbito do ensino
exclusivamente moral, as revelações que cada um possa receber terão caráter
individual, sem cunho de autenticidade; que devem ser consideradas opiniões
pessoais de tal ou qual Espírito e que imprudente fora aceitá-las e propagá-las
levianamente como verdades absolutas.
O primeiro controle é, sem
contradita, o da razão, ao qual cumpre se submeta, sem exceção, tudo o que
venha dos Espíritos. Toda teoria em manifesta contradição com o bom-senso, com
uma lógica rigorosa e com os dados positivos já adquiridos, deve ser rejeitada,
por mais respeitável que seja o nome que traga como assinatura. Incompleto,
porém, ficará esse exame em muitos casos, por efeito da falta de luzes de
certas pessoas e das tendências de não poucas a tomar as próprias opiniões como
juízes únicos da verdade. Assim sendo, que hão de fazer aqueles que não
depositam confiança absoluta em si mesmos? Buscar o parecer da maioria e tomar
por guia a opinião desta. De tal modo é que se deve proceder em face do que
digam os Espíritos, que são os primeiros a nos fornecer os meios de
consegui-lo.
A concordância no que ensinam os
Espíritos é, pois, a melhor comprovação. Importa, no entanto, que ela se dê em determinadas
condições. A mais fraca de todas ocorre quando um médium, a sós, interroga
muitos Espíritos acerca de um ponto duvidoso. É evidente que, se ele estiver
sob o império de uma obsessão, ou lidando com um Espírito mistificador, este
lhe pode dizer a mesma coisa sob diferentes nomes. Tampouco garantia alguma
suficiente haverá na conformidade que apresente o que se possa obter por
diversos médiuns, num mesmo centro, porque podem estar todos sob a mesma
influência.
Uma só garantia séria existe para o ensino dos Espíritos: a concordância
que haja entre as revelações que eles façam espontaneamente, servindo-se de
grande número de médiuns estranhos uns aos outros e em vários lugares.
Vê-se bem que não se trata aqui
das comunicações referentes a interesses secundários, mas do que respeita aos mesmos
princípios da doutrina. Prova a experiência que, quando um princípio novo tem
de ser anunciado, isso se dá espontaneamente
em diversos pontos ao mesmo tempo e de modo idêntico, se não quanto a forma,
quanto ao fundo.
Se, portanto, aprouver a um
Espírito formular um sistema excêntrico, baseado unicamente nas suas ideias e
com exclusão da verdade, pode ter-se a certeza de que tal sistema conservar-se-á
circunscrito e cairá, diante das
instruções dadas de todas as partes, conforme os múltiplos exemplos que já se conhecem.
Foi essa unanimidade que pôs por terra todos os sistemas parciais que surgiram
na origem do Espiritismo, quando cada um explicava à sua maneira os fenômenos,
e antes que se conhecessem as leis que regem as relações entre o mundo visível
e o mundo invisível.
Essa a base em que nos apoiamos,
quando formulamos um princípio da doutrina. Não é porque esteja de acordo com
as nossas ideias que o temos por verdadeiro. Não nos arvoramos, absolutamente,
em árbitro supremo da verdade e a ninguém dizemos: Crede em tal coisa, porque somos nós que vo-lo dizemos. A nossa
opinião não passa, aos nossos próprios olhos, de uma opinião pessoal, que pode
ser verdadeira ou falsa, visto não nos considerarmos mais infalíveis do que
qualquer outro. Também não é porque um princípio nos foi ensinado que, para
nós, ele exprime a verdade, mas porque recebeu a sanção da concordância.
Esse controle universal
constitui uma garantia para a unidade futura do Espiritismo e anulará todas as
teorias contraditórias. Aí é que, no porvir, se encontrará o critério da verdade.
O que deu lugar ao êxito da doutrina exposta em O Livro dos Espíritos e em O
Livro dos Médiuns foi que em toda a parte todos receberam diretamente dos
Espíritos a confirmação do que esses livros contêm. Se de todos os lados
tivessem vindo os Espíritos contradizê-la, já de há muito haveriam aquelas
obras experimentado a sorte de todas as concepções fantásticas. Nem mesmo o
apoio da imprensa as salvaria do naufrágio, ao passo que, privadas como se
viram desse apoio, não deixaram de abrir caminho e de avançar celeremente. É
que tiveram o dos Espíritos, cuja boa vontade não só compensou, como também
sobrepujou o malquerer dos homens. Assim sucederá a todas as ideias que, emanando
quer dos Espíritos, quer dos homens, não possam suportar a prova desse
confronto, cuja força a ninguém é lícito contestar.
Suponhamos praza a alguns
Espíritos ditar, sob qualquer título, um livro em sentido contrário; suponhamos
mesmo que, com intenção hostil, objetivando desacreditar a doutrina, a
malevolência suscitasse comunicações apócrifas; que influência poderiam exercer
tais escritos, desde que de todos os lados os desmentissem os Espíritos? É com
a adesão destes que se deve garantir aquele que queira lançar, em seu nome, um
sistema qualquer. Do sistema de um só ao de todos, medeia a distância que vai
da unidade ao infinito. Que poderão conseguir os argumentos dos detratores,
sobre a opinião das massas, quando milhões de vozes amigas, provindas do
Espaço, se façam ouvir em todos os recantos do Universo e no seio das famílias,
a infirmá-los? A esse respeito já não foi a teoria confirmada pela experiência.
Que é feito das inúmeras publicações que traziam a pretensão de arrasar o Espiritismo?
Qual a que, sequer, lhe retardou a marcha? Até agora, não se considera a
questão desse ponto de vista, sem contestação um dos mais graves. Cada um
contou consigo, sem contar com os Espíritos.
De tudo isso ressalta uma
verdade capital: a de que aquele que quisesse opor-se à corrente de ideias
estabelecida e sancionada poderia, é certo, causar uma pequena perturbação
local e momentânea; nunca, porém, dominar o conjunto, mesmo no presente, nem,
ainda menos, no futuro.
Também ressalta que as
instruções dadas pelos Espíritos sobre os pontos ainda não elucidados da
Doutrina não constituirão lei, enquanto essas instruções permanecerem insuladas;
que elas não devem, por conseguinte, ser aceitas senão sob todas as reservas e
a título de esclarecimento.
Daí a necessidade da maior
prudência em dar-lhes publicidade; e, caso se julgue conveniente publicá-las,
importa não as apresentar senão como opiniões individuais, mais ou menos prováveis,
porém, carecendo sempre de confirmação. Essa confirmação é que se precisa
aguardar, antes de apresentar um princípio como verdade absoluta, a menos se
queira ser acusado de leviandade ou de credulidade irrefletida.
Com extrema sabedoria procedem
os Espíritos superiores em suas revelações. Não atacam as grandes questões da Doutrina
senão gradualmente, à medida que a inteligência se mostra apta a compreender
verdade de ordem mais elevada e quando as circunstâncias se revelam propícias à
emissão de uma ideia nova. Por isso é que logo de princípio não disseram tudo,
e tudo ainda hoje não disseram, jamais cedendo à impaciência dos mais afoitos,
que querem os frutos antes de estarem maduros.
Fora, pois, supérfluo pretender
adiantar-se ao tempo que a Providência assinou para cada coisa, porque, então,
os Espíritos verdadeiramente sérios negariam o seu concurso. Os Espíritos
levianos, pouco se preocupando com a verdade, a tudo respondem; daí vem que,
sobre todas as questões prematuras, há sempre respostas contraditórias.
Os princípios acima não resultam
de uma teoria pessoal: são consequência forçada das condições em que os Espíritos
se manifestam. É evidente que, se um Espírito diz uma coisa de um lado,
enquanto milhões de outros dizem o contrário algures, a presunção de verdade
não pode estar com aquele que é o único ou quase o único de tal parecer. Ora,
pretender alguém ter razão contra todos seria tão ilógico da parte dos
Espíritos, quanto da parte dos homens. Os Espíritos verdadeiramente ponderados,
se não se sentem suficientemente esclarecidos sobre uma questão, nunca a resolvem de modo absoluto;
declaram que apenas a tratam do seu ponto de vista e aconselham que se aguarde
a confirmação.
Por grande, bela e justa que
seja uma ideia, impossível é que desde o primeiro momento congregue todas as
opiniões. Os conflitos que daí decorrem são consequência inevitável do movimento
que se opera; eles são mesmo necessários para maior realce da verdade e convém
se produzam desde logo, para que as ideias falsas prontamente sejam postas de
lado. Os espíritas que a esse respeito alimentassem qualquer temor podem ficar perfeitamente
tranquilos: todas as pretensões insuladas cairão, pela força mesma das coisas,
diante do enorme e poderoso critério da concordância universal.
Não será à opinião de um homem
que se aliarão os outros, mas à voz unânime dos Espíritos; não será um homem, nem nós, nem qualquer outro que fundará
a ortodoxia espírita; tampouco será um Espírito que se venha impor a quem quer
que seja: será a universalidade dos Espíritos que se comunicam em toda a Terra,
por ordem de Deus. Esse o caráter essencial da Doutrina Espírita; essa a sua
força, a sua autoridade. Quis Deus que a sua lei assentasse em base inamovível
e por isso não lhe deu por fundamento a cabeça frágil de um só.
Diante de tão poderoso areópago,
onde não se conhecem camarilhas, nem rivalidades ciosas, nem seitas, nem nações,
é que virão quebrar-se todas as oposições, todas as ambições, todas as
pretensões à supremacia individual; é que nos quebraríamos nós mesmos, se
quiséssemos substituir os seus decretos soberanos pelas nossas próprias ideias.
Só Ele decidirá todas as questões litigiosas, imporá silêncio às dissidências e
dará razão a quem a tenha. Diante desse imponente acordo de todas as vozes do Céu, que pode a opinião de
um homem ou de um Espírito? Menos do que a gota d’água que se perde no oceano,
menos do que a voz da criança que a tempestade abafa.
A opinião universal, eis o juiz
supremo, o que se pronuncia em última instância. Formam-na todas as opiniões individuais.
Se uma destas é verdadeira, apenas tem na balança o seu peso relativo. Se é
falsa, não pode prevalecer sobre todas as demais. Nesse imenso concurso, as
individualidades se apagam, o que constitui novo insucesso para o orgulho
humano.
Já se desenha o harmonioso
conjunto. Este século não passará sem que ele resplandeça em todo o seu brilho,
de modo a dissipar todas as incertezas, porquanto daqui até lá potentes vozes terão
recebido a missão de se fazerem ouvir, para congregar os homens sob a mesma
bandeira, uma vez que o campo se ache suficientemente lavrado. Enquanto isso
não se dá, aquele que flutue entre dois sistemas opostos pode observar em que
sentido se forma a opinião geral; essa será a indicação certa do sentido em que
se pronuncia a maioria dos Espíritos, nos diversos pontos em que se comunicam,
e um sinal não menos certo de qual dos dois sistemas prevalecerá.
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