Allan Kardec
Numa reunião íntima de família,
em que se ocupavam de comunicações pela tiptologia, dois Espíritos se
manifestaram espontaneamente, sem qualquer evocação prévia e sem que ninguém
pensasse neles: um era o de um médico distinto, que designaremos sob o nome de
Philippeau, morto há pouco e que, em vida, tinha feito profissão aberta do mais
absoluto materialismo[2];
o outro era o de uma mulher que assinou Santa Vitória. É essa conversa que
relatamos a seguir. É de notar que as pessoas que obtiveram esta manifestação
não conheciam o médico senão por sua reputação, mas não tinham qualquer ideia
de seu caráter, de seus hábitos, nem de suas opiniões; a comunicação, portanto,
não poderia ser de modo algum o reflexo de seu pensamento, e isto tanto menos
quanto, sendo obtida pela tiptologia, era inteiramente inconsciente.
Perguntas do médico:
– O Espiritismo me
ensina que é preciso esperar, amar, perdoar; eu faria tudo isto se soubesse
como proceder para começar. É preciso esperar o quê? É preciso perdoar o que e
a quem? É preciso amar o quê? Respondei-me.
Philippeau
– É preciso esperar na misericórdia de Deus, que é infinita;
é preciso perdoar aos que vos ofenderam; é preciso amar ao próximo como a si
mesmo; é preciso amar a Deus, a fim de que Deus vos ame e vos perdoe; é preciso
orar e lhe render graças por todas as suas bondades, por todas as vossas
misérias, porquanto miséria e felicidade tudo nos vem dele, isto é, tudo nos
vem dele conforme o que tenhamos merecido.
Aquele que expiou, mais tarde terá a sua recompensa;
cada coisa tem a sua razão de ser, e Deus, que é soberanamente bom e justo, dá a cada um
segundo as suas obras. Amar e orar, eis toda a vida, toda a eternidade.
Santa Vitória
O médico
Eu queria, de toda a minha alma, vos satisfazer, senhora,
mas temo muito não o poder fazer inteiramente; contudo, vou tentar.
Uma vez morto, materialmente falando, pensava que tudo
estivesse acabado; assim, quando minha matéria ficou inerte, fui tomado de
espanto ao me sentir ainda vivo.
Vi esses homens me levarem e disse a mim mesmo:
Mas eu não estou morto! Então esses médicos imbecis não
veem que eu vivo, respiro, ando, olho-os, sigo-os, a essa gente que vem ao meu
enterro? Que é então o que enterram?... Então não sou eu...
Escutava uns e outros:
Esse pobre Philippeau, diziam eles, fez muitas curas;
matou alguns; hoje é a sua vez; quando a morte chega, nós perdemos o nosso
tempo.
Por mais que eu gritasse: Mas Philippeau não morre
assim; não estou morto! Não me escutavam, não me viam.
Assim se passaram três dias; eu estava desaparecido do mundo,
e me sentia mais vivo que nunca. Seja acaso, seja Providência, meus olhos
caíram sobre uma brochura de Allan Kardec; li suas descrições sobre o
Espiritismo, e me disse: Seria eu, por acaso, um Espírito?... Li, reli e
então compreendi a transformação de meu ser; eu não era mais um homem, mas um Espírito!...
Sim; mas, então, que tinha a fazer nesse mundo novo? Nessa nova esfera?... Eu
errava, procurava: encontrei o vazio, o sombrio, enfim o abismo.
Que fizera, então, ao deixar o mundo, para vir habitar essas
trevas?... Então o inferno é negro e foi nesse inferno que caí?... Por quê?...
Por que trabalhei toda a vida? Por que empreguei minha existência a cuidar de
uns e de outros, a salvá-los quando minha ciência me permitia?... Não!... Não!...
Por que, então? Por quê?... Procura! Procura! Nada; não encontro nada.
Então reli Allan Kardec; esperar, perdoar e amar, eis a solução.
Agora compreendo o resto; o que não compreendera, o que negara: Deus, o Ser
invisível e supremo, é preciso que lhe peça; o que eu fizera pela Ciência,
é preciso que faça para Deus; que estude, que realize a minha missão
espiritual. Compreendo essas coisas ainda vagamente e vejo longos combates em
minha mente, porque todo um mundo novo se abre para mim e recuo apavorado diante
do que tenho a percorrer. E, contudo, dizeis que é preciso expiar; esta Terra
me foi muito penosa, pois me foi necessário mais sofrimento do que podeis
imaginar para chegar aonde cheguei! A ambição era o meu único móvel; eu a
queria e cheguei.
Agora tudo está para refazer. Fiz tudo ao contrário do que
devia. Aprendi, aprofundei a Ciência, não por amor a ela, mas por ambição, para
ser mais que os outros, para que falassem de mim. Tratei do meu próximo, não
para o aliviar, mas para me enriquecer; numa palavra, fui todo para a matéria,
quando se deve ser todo para o espírito. Quais são hoje as minhas obras? A
riqueza, a Ciência; nada! Nada! Tudo está por refazer?
Terei coragem para isto? Terei a força, os meios, a facilidade?...
O mundo espiritual em que marcho é um enigma; a prece me é desconhecida; que
fazer? Quem me ajudará? Talvez vós, que já me respondestes... Cuidado! A tarefa
é rude, difícil, o aprendiz rebelde às vezes... Contudo procurarei render-me às
vossas boas razões e vos agradecer antecipadamente as vossas bondades.
Philippeau
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