terça-feira, 13 de setembro de 2022

O DOUTOR PHILIPPEAU – Impressões de um Médico Materialista no Mundo dos Espíritos[1]

 

Allan Kardec

 

Numa reunião íntima de família, em que se ocupavam de comunicações pela tiptologia, dois Espíritos se manifestaram espontaneamente, sem qualquer evocação prévia e sem que ninguém pensasse neles: um era o de um médico distinto, que designaremos sob o nome de Philippeau, morto há pouco e que, em vida, tinha feito profissão aberta do mais absoluto materialismo[2]; o outro era o de uma mulher que assinou Santa Vitória. É essa conversa que relatamos a seguir. É de notar que as pessoas que obtiveram esta manifestação não conheciam o médico senão por sua reputação, mas não tinham qualquer ideia de seu caráter, de seus hábitos, nem de suas opiniões; a comunicação, portanto, não poderia ser de modo algum o reflexo de seu pensamento, e isto tanto menos quanto, sendo obtida pela tiptologia, era inteiramente inconsciente.

 

Perguntas do médico:

 – O Espiritismo me ensina que é preciso esperar, amar, perdoar; eu faria tudo isto se soubesse como proceder para começar. É preciso esperar o quê? É preciso perdoar o que e a quem? É preciso amar o quê? Respondei-me.

Philippeau

 

– É preciso esperar na misericórdia de Deus, que é infinita; é preciso perdoar aos que vos ofenderam; é preciso amar ao próximo como a si mesmo; é preciso amar a Deus, a fim de que Deus vos ame e vos perdoe; é preciso orar e lhe render graças por todas as suas bondades, por todas as vossas misérias, porquanto miséria e felicidade tudo nos vem dele, isto é, tudo nos vem dele conforme o que tenhamos merecido.

Aquele que expiou, mais tarde terá a sua recompensa; cada coisa tem a sua razão de ser, e Deus, que é  soberanamente bom e justo, dá a cada um segundo as suas obras. Amar e orar, eis toda a vida, toda a eternidade.

Santa Vitória

 

O médico

Eu queria, de toda a minha alma, vos satisfazer, senhora, mas temo muito não o poder fazer inteiramente; contudo, vou tentar.

Uma vez morto, materialmente falando, pensava que tudo estivesse acabado; assim, quando minha matéria ficou inerte, fui tomado de espanto ao me sentir ainda vivo.

Vi esses homens me levarem e disse a mim mesmo:

Mas eu não estou morto! Então esses médicos imbecis não veem que eu vivo, respiro, ando, olho-os, sigo-os, a essa gente que vem ao meu enterro? Que é então o que enterram?... Então não sou eu...

Escutava uns e outros:

Esse pobre Philippeau, diziam eles, fez muitas curas; matou alguns; hoje é a sua vez; quando a morte chega, nós perdemos o nosso tempo.

Por mais que eu gritasse: Mas Philippeau não morre assim; não estou morto! Não me escutavam, não me viam.

Assim se passaram três dias; eu estava desaparecido do mundo, e me sentia mais vivo que nunca. Seja acaso, seja Providência, meus olhos caíram sobre uma brochura de Allan Kardec; li suas descrições sobre o Espiritismo, e me disse: Seria eu, por acaso, um Espírito?... Li, reli e então compreendi a transformação de meu ser; eu não era mais um homem, mas um Espírito!... Sim; mas, então, que tinha a fazer nesse mundo novo? Nessa nova esfera?... Eu errava, procurava: encontrei o vazio, o sombrio, enfim o abismo.

Que fizera, então, ao deixar o mundo, para vir habitar essas trevas?... Então o inferno é negro e foi nesse inferno que caí?... Por quê?... Por que trabalhei toda a vida? Por que empreguei minha existência a cuidar de uns e de outros, a salvá-los quando minha ciência me permitia?... Não!... Não!... Por que, então? Por quê?... Procura! Procura! Nada; não encontro nada.

Então reli Allan Kardec; esperar, perdoar e amar, eis a solução. Agora compreendo o resto; o que não compreendera, o que negara: Deus, o Ser invisível e supremo, é preciso que lhe peça; o que eu fizera pela Ciência, é preciso que faça para Deus; que estude, que realize a minha missão espiritual. Compreendo essas coisas ainda vagamente e vejo longos combates em minha mente, porque todo um mundo novo se abre para mim e recuo apavorado diante do que tenho a percorrer. E, contudo, dizeis que é preciso expiar; esta Terra me foi muito penosa, pois me foi necessário mais sofrimento do que podeis imaginar para chegar aonde cheguei! A ambição era o meu único móvel; eu a queria e cheguei.

Agora tudo está para refazer. Fiz tudo ao contrário do que devia. Aprendi, aprofundei a Ciência, não por amor a ela, mas por ambição, para ser mais que os outros, para que falassem de mim. Tratei do meu próximo, não para o aliviar, mas para me enriquecer; numa palavra, fui todo para a matéria, quando se deve ser todo para o espírito. Quais são hoje as minhas obras? A riqueza, a Ciência; nada! Nada! Tudo está por refazer?

Terei coragem para isto? Terei a força, os meios, a facilidade?... O mundo espiritual em que marcho é um enigma; a prece me é desconhecida; que fazer? Quem me ajudará? Talvez vós, que já me respondestes... Cuidado! A tarefa é rude, difícil, o aprendiz rebelde às vezes... Contudo procurarei render-me às vossas boas razões e vos agradecer antecipadamente as vossas bondades.

Philippeau



[1] Revista Espírita – Maio/1868 – Allan Kardec

[2] N. do T.: Estaria Kardec se referindo a Velpeau, famoso cirurgião francês, morto em 1867, e que encarna perfeitamente o ateu designado sob o pseudônimo de Philippeau?

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