Marco Milani
Ao apontar os riscos de cismas
no Espiritismo, Allan Kardec destacou que o personalismo e as interpretações
equivocadas do conteúdo doutrinário seriam algumas de suas causas[2].
Ressaltando-se que a clareza e a
objetividade do ensino deveriam ser os fatores relevantes para a unidade
doutrinária, os diferentes graus de compreensão do Espiritismo, aliados às
paixões pessoais de alguns supostos adeptos, podem promover a disseminação de
ideias divergentes dos princípios doutrinários e provocar a desunião. Como
asseverou Kardec, “a ambição e vaidade daqueles que, a despeito de tudo, querem
ligar seu nome a uma inovação qualquer; que criam novidades unicamente para poder
dizer que não pensam e não fazem como os outros[3]”
são entraves a serem superados.
Desde o surgimento do
Espiritismo, não faltaram aficionados por fantasias e propostas místicas a
tentarem desvirtuar o ensino lastreado na razão e nos fatos. Alguns,
autodeclarando-se missionários, desafiavam a lógica em nome do ocultismo e
revelações exclusivas. Todos foram, com fraternidade e firmeza,
contra-argumentados por Kardec, o qual demonstrava a falta de coerência
doutrinária e de sustentação filosófica e científica dessas propostas
mirabolantes e supersticiosas.
Não somente as fantasias foram
rechaçadas pela ausência de evidências e de logicidade, mas também iniciativas
que atendiam a interesses temporais e paixões político-ideológicas.
Allan Kardec, em mensagem
dirigida aos espíritas lioneses em 1862, já alertava sobre a armadilha
preparada por adversários do Espiritismo que buscavam levar à casa espírita a
discussão política.
Devo ainda assinalar-vos outra tática dos nossos
adversários, a de procurar comprometer os espíritas, induzindo-os a se
afastarem do verdadeiro objetivo da doutrina, que é o da moral, para abordarem
questões que não são de sua alçada e que, a justo título, poderiam despertar
suscetibilidades e desconfianças. Não vos deixeis cair nessa armadilha; afastai
cuidadosamente de vossas reuniões tudo quando se refere à política e a questões
irritantes; a tal respeito, as discussões apenas suscitarão embaraços, enquanto
ninguém terá nada a objetar à moral, quanto esta for boa[4].
Em um
agitado contexto no qual eclodiam propostas reformistas sociais na Europa,
partidários de diferentes correntes políticas e visões de mundo digladiavam-se
no campo das ideias e, não raramente, em confrontos fraticidas.
Sendo características
fundamentais do Espiritismo, a fraternidade e a liberdade de consciência
fizeram com que nas reuniões dos mais diversos grupos espíritas espalhados na
França e nos demais países sentassem-se, lado a lado, cidadãos que poderiam
defender pontos de vista antagônicos sobre questões políticas, porém estavam
unidos em torno de um ideal maior baseado no respeito e tolerância. Obviamente,
se essas questões políticas fossem levadas para as reuniões espíritas, o
resultado seria a reprodução dos mesmos antagonismos vivenciados nos embates
vulgares.
A transformação da sociedade,
segundo Kardec, não ocorrerá de maneira violenta e totalitária, mas de maneira
oposta, pacífica e decorrente da melhoria do cidadão, ou seja, a sociedade será
reflexo da melhoria moral do homem, respeitando-se os direitos e as liberdades
individuais. O Espiritismo atua diretamente nesse sentido esclarecendo sobre a
natureza, da origem e do destino dos Espíritos, e de suas relações com o mundo
corporal, fomentando a transformação moral e não imiscuindo-se na liberdade de
consciência.
Procurai no Espiritismo aquilo que vos pode melhorar:
eis o essencial. Quando os homens forem melhores, as reformas sociais realmente
úteis serão uma consequência natural; trabalhando pelo progresso moral,
lançareis os verdadeiros e mais sólidos fundamentos de todas as melhoras, e
deixareis a Deus o cuidado de fazer com que cheguem no devido tempo. No próprio
interesse do Espiritismo, que é ainda jovem, mas que amadurece depressa, oponde
uma firmeza inquebrantável aos que quiserem vos arrastar por uma via perigosa[5].
Hoje, as pretensões por
visibilidade vaidosa ou ações para a militância político-ideológica
manifestam-se nas modernas tecnologias de comunicação eletrônica. Nas redes
sociais, frequentemente se observa a criação de grupos que arvoram-se
detentores de novas revelações ou grupos que abraçam correntes
político-partidárias e ideológicas que perseguem, como objetivo, a formação de
pensamento hegemônico nas instituições espíritas sob a máscara do consenso e,
também, a estigmatização daqueles que ousam escolher caminhos diferentes para a
melhoria das relações sociais. Tais grupos buscam subverter os próprios
princípios espíritas de maneira que acomodem suas convicções particulares e
decretam que quem tiver opiniões divergentes não podem ser considerados
espíritas.
A militância política costuma
alardear que os espíritas, em geral, são alienados, pois deveriam marchar em
formação contra os desafetos selecionados e içar com veemência a mesma bandeira
político-ideológica que carregam.
Em um mundo de expiações e provas,
não se pode esperar plena harmonia nas relações sociais, inclusive dentro do
centro espírita, mas disseminar a discórdia e a divisão por motivos
político-ideológicos é a receita para que prevaleçam as destrutivas paixões
partidárias, afetando negativamente as instituições e o movimento espírita
Como cidadãos, os espíritas possuem
a liberdade de consciência e podem abraçar a corrente ideológica que acharem a
mais adequada, sem a orientação de cabresto utilizada por alguns segmentos
religiosos. O fato de não levarem suas preferências políticas para serem
discutidas no centro espírita não justifica, em hipótese alguma, que sejam
rotulados de alienados, ao contrário, demonstra maturidade, sensatez e respeito
pela organização que colaboram e por seus companheiros de trabalho.
Fonte: https://usesp.org.br/wp-content/uploads/2021/11/DE186.pdf
[1] Texto originalmente publicado na revista digital
Dirigente Espírita, nov./dez 2021, Ed. 186, págs. 8-10)
[2] Kardec, A. Revista Espírita, dez/1868,
Constituição transitória do Espiritismo – Dos cismas.
[3] Ibid.
[4] Kardec. A. Revista Espírita, fev./1862,
Resposta dirigida aos espíritas lioneses por ocasião do Ano-Novo
[5] Ibid.
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