Marco Milani
Apesar de diferentes portes e
complexidades dos serviços oferecidos, todas as instituições efetivamente
espíritas possuem, como característica identitária comum, a estruturação
teórica de seus princípios e valores no ensino dos Espíritos organizados e
apresentados por Allan Kardec. Muito mais do que a denominação formal ostentada
em sua fachada e documentos, é a cultura interna pautada pelo conteúdo das
obras kardequianas que torna-se o elemento central que faz com que qualquer
centro espírita seja, assim, reconhecido como tal.
Historicamente, pode-se apontar
a Sociedade
Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE), fundada em 01/04/1858, como o
primeiro centro espírita do mundo e serviu de referência para a constituição de
inúmeros grupos voltados para o estudo e prática do Espiritismo.
Ainda que tenha sido o modelo
para formação de outros centros, a cultura organizacional da SPEE era única,
pois o conjunto de práticas, rotinas, normas, necessidades, preocupações e
expectativas de seus membros é algo que não se reproduz. Igualmente, cada
instituição espírita, do passado ou do presente, reflete aspectos particulares
de seus fundadores, mantenedores e colaboradores que lhe dá uma característica
singular e sujeita a modificações com o tempo, mas sempre distinta de outras
organizações.
Pode-se, então, afirmar que o
centro espírita possui uma identidade comum em Kardec, compartilhada com outras
instituições espíritas, e uma microcultura própria, decorrente da atuação
direta de seus participantes, que o diferencia em maior ou menor grau dos
demais centros.
A pluralidade microcultural é
determinada, também, pela maturidade doutrinária dos dirigentes de cada casa.
Um problema crítico de
identidade é gerado quando a microcultura da instituição conflita com a
identidade comum que a faria ser reconhecida como espírita. Em outras palavras,
quando os princípios e valores espíritas passam a ser reinterpretados e
ressignificados devido à imaturidade doutrinária e/ou interesses particulares
dos dirigentes, afasta-se a casa do direcionamento kardequiano e a aproxima de
um contexto espiritualista, mas não espírita.
O dinamismo doutrinário, a
necessidade de agregação de novos conhecimentos e a atualização conceitual
costumam ser utilizados indevidamente para justificar a subversão ou abandono
do ensino dos Espíritos na obra kardequiana. Opiniões isoladas de autores
desencarnados passam a ser assumidas como novas verdades que se autolegitimam
por terem sido reveladas por supostas comunicações mediúnicas e por médiuns
infalíveis. O método do controle
universal adotado por Kardec também é inutilizado ou deturpado pelos
novidadeiros, desvalorizando-se os cuidados necessários para se aceitar uma
informação como válida.
Não por acaso a relação entre
poder e cultura nas organizações é amplamente explorada na literatura
científica da área de Ciências Sociais Aplicadas. A influência exercida por
líderes, principalmente carismáticos, nas instituições pode mudar e consolidar
a cultura organizacional no longo prazo e fazer com que as referências
doutrinárias espíritas migrem de sua base kardequiana para novos arcabouços
teóricos, geralmente sincréticos e místicos.
Foi, justamente, o sincretismo
com a Teosofia, Catolicismo e orientalismo, além de pitadas supersticiosas,
alguns dos fatores que impactaram negativamente o desenvolvimento do Movimento
Espírita Francês a partir da desencarnação de Allan Kardec. O reflexo do
desvirtuamento cultural foi a disseminação do roustainguismo, por exemplo, em
alguns grupos nascentes, inclusive brasileiros. Uma vez implantada a
microcultura sincrética, é visível o seu impacto nocivo na questão identitária
espírita.
Equivocadamente, alguns mais
afoitos e distantes da análise criteriosa sob métodos sociológicos, confundem
as inúmeras microculturas organizacionais com a própria identidade comum
espírita, levando-os a supor que existam “vários espiritismos”. O que existe,
de fato, é uma esperada heterogeneidade microcultural que não representa, por
si mesma, a Doutrina Espírita, a qual é única. Assim, só há um Espiritismo, mas
diferentes graus de maturidade doutrinária de seus adeptos.
Quanto mais coerente com o
ensino dos Espíritos apresentados por Allan Kardec, mais próximo da identidade
espírita encontra-se o profitente. O próprio codificador reconheceu e
classificou os diferentes tipos de espíritas, sinalizando que não há
uniformidade estrita nem que os pensamentos e atos isolados daquele que se
declara adepto caracterizará, necessariamente, a doutrina.
No livro O Evangelho Segundo
o Espiritismo, em seu capítulo XVII, item 4, explicita-se as
características do verdadeiro espírita, porém mesmo nesse item a leitura
apressada impede a real compreensão de seu significado mais profundo.
Destaca-se o seguinte trecho:
Aquele que pode ser, com razão, qualificado de espírita
verdadeiro e sincero, se acha em grau superior de adiantamento moral. O
Espírito, que nele domina de modo mais completo a matéria, dá-lhe uma percepção
mais clara do futuro; os princípios da Doutrina lhe fazem vibrar fibras que
nos outros se conservam inertes (grifo meu). Em suma: é tocado no
coração, pelo que inabalável se lhe torna a fé. Um é qual músico que alguns
acordes bastam para comover, ao passo que outro apenas ouve sons. Reconhece-se
o verdadeiro espírita pela sua transformação moral e pelos esforços que emprega
para domar suas inclinações más.
Conforme se depreende, trata-se
de interpretação limitada a caracterização do verdadeiro espírita apenas pela
transformação moral e pelos esforços para domar as más inclinações, uma vez que
essas atitudes, ainda que extremamente positivas e necessárias, podem ser
feitas por qualquer ser humano, seja qual for a crença ou orientação filosófica
que possua, inclusive ateus. Para ser bom, não precisa ser espírita. Por isso
que a máxima é fora da caridade (não do Espiritismo) não há salvação. Existem
ateus moralmente mais elevados que muitos religiosos.
Por outro lado, para ser
espírita, deve-se compreender e vivenciar os princípios doutrinários e, para
isso, deve-se estudar e se instruir sobre a natureza, origem e destino dos
Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal, segundo o
Espiritismo. A Ciência tem, portanto, papel de destaque na produção e avanço no
conhecimento sobre a realidade que nos cerca, adentrando, inclusive em
propostas espiritualistas, mesmo que desagradando pesquisadores ainda presos no
materialismo.
Considerando que não basta ser
bom para ser um espírita verdadeiro, uma organização espírita deve,
imperiosamente, ser conduzida conforme os princípios e valores doutrinários.
Desvios conceituais incorporados na microcultura organizacional sob a alegação
de que a única coisa que importa é se esforçar para se transformar moralmente
gera espaços para sutis ou claras infiltrações antidoutrinárias.
Em síntese, o movimento
espírita, composto por milhares de instituições e profitentes, expressa rica
diversidade microcultural e graus de maturidade doutrinária, mas o Espiritismo
é único, expressando o ensino dos Espíritos que foram validados pelo método do
controle universal e marcha, lado a lado, com os avanços científicos desde que
devidamente comprovados, superando o estágio hipotético. A cultura
organizacional do verdadeiro centro espírita tem, portanto, Kardec como lastro,
afasta posturas sincréticas, místicas e supersticiosas, e acolhe o convite para
o diálogo baseado em fatos e na fé raciocinada para a produção e avanço do
conhecimento, os quais não ocorrem por simples opinião mediúnica.
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