Jáder Dos Reis Sampaio
Ontem fizemos uma exposição
sintética do livro “Revisão do Cristianismo” a convite da Fundação Maria
Virgínia e Herculano Pires[2].
Dentre as muitas coisas que Herculano convida a rever no cristianismo, um
grande conjunto delas tem um impacto muito grande sobre o nosso entendimento
dos ensinamentos do mestre galileu: os
mitos.
Influenciado pelo convite
Kardequiano de analisar racional e historicamente os evangelhos e documentos
dos primeiros cristãos, Herculano mergulhou nas reflexões que os autores do
final do século 19 e início do século 20 fizeram a partir de uma mudança de
atitude na pesquisa da história do cristianismo. Em vez de fazer uma história
atrelada à teologia, autores como Guignebert trabalharam na desvinculação das
duas e na construção de uma história baseada na historiografia da época, nas
descobertas arqueológicas, na limitada documentação ainda existente, e na comparação
do cristianismo com outras religiões, ou seja, concebendo-o como uma religião e
não como a religião.
Na medida em que o cristianismo
deixa de ser contado como uma “vinda de Deus à Terra” e passa a ser visto como
um movimento dos homens, algumas ideias até então interditas ao historiador do
cristianismo começam a ser percebidas.
Uma delas é bem simples: os
evangelhos não foram feitos a partir do registro exato do que disse Jesus e de
sua preservação para o futuro. Os discípulos de Jesus o conheceram e ouviram o
que ele ensinava. Com a morte e a percepção de Jesus após a desencarnação, os
discípulos entenderam que a mensagem dele deveria ser divulgada, e começaram a
ensinar, primeiro aos judeus e depois a todos os que se interessassem, o que
eles se recordavam ou entenderam que havia sido ensinado.
Dos evangelistas que eram
alfabetizados, talvez Mateus tenha feito anotações de suas memórias, sob a
forma de logia, frases ou pequenos
períodos encadeados. Hoje os historiadores propõem que o evangelho de Marcos
teria vindo da tradição de Pedro, ou seja, João Marcos, ou os hagiógrafos que
escreveram o texto desse evangelho, teriam ouvido e escrito os ensinamentos
cristãos cuja tradição remonta ao pescador de Cafarnaum.
Além de não serem registros
históricos, de serem textos posteriores às cartas de Paulo, e de serem
registros de ensinos orais dos discípulos, concluídos anos ou décadas após o
episódio do Gólgota, é bem possível que estejam entremeados com mitos judaicos ou pagãos, é o que
reflete Herculano Pires ao longo do seu livro.
O mito não é, em si, uma
falsidade, uma irrealidade, como nos explica o filósofo paulistano, mas uma
proto-explicação ou explicação não racional, que se origina no interior da alma
humana. Enxergar Jesus como o messias, o “ungido”, aquele que veio salvar o
povo hebreu da escravidão e associá-lo aos sinais entrevistos na leitura e
interpretação dos profetas, seria uma primeira “tentação” dos apóstolos ou dos
que participaram da redação dos textos que posteriormente foram escolhidos para
compor o Novo Testamento.
Herculano não se propõe a
separar o mito da narrativa nos evangelhos, mas faz algumas análises. Ele
entende que boa parte da natividade pode ser mítica, porque apresenta eventos
improváveis e que “ajustam” a figura de Jesus à do messias. O nascimento em
Belém, por exemplo, o “censo” que exigiria que os habitantes saíssem de suas
cidades para as cidades onde nasceram, a declaração de morte das crianças por
Herodes, a estrela de Belém que guia os Reis magos e a fuga para o Egito fazem
parte dessa mitologia tardia inserida nos evangelhos. Herculano busca
mitologemas semelhantes em outras religiões da época para mostrar que é
possível que tenha havido uma interpolação de mitos e histórias sagradas na
história de Jesus para que ele pudesse ser considerado o messias dos Judeus ou
um Deus para os gregos ou romanos. A partir do século quarto, muitos elementos
do paganismo irão ser empregados pelas comunidades cristãs para que seus
concidadãos aceitem mais facilmente o prestígio do cristianismo junto ao
Imperador Constantino, até tornar-se religião oficial do império romano,
décadas depois.
Não seria demérito que Jesus
tivesse nascido em Nazaré, filho de Maria e José, com irmãos e tivesse vivido
no lar de um carpinteiro. Mais humano, ele se torna mais extraordinário aos
nossos olhos, porque nessas condições desfavoráveis ele se torna capaz de
interlocução com os estudiosos de sua cultura e de sua época, e é capaz de
elaborar uma proposta de ser humano, de vida e de sociedade completamente diferente
daquilo que existia e que se vivia em seu tempo. Cercado por socidades que
"naturalizaram" a instituição da escravidão, por exemplo, Jesus
propõe tratarmos a todos como pessoas, filhos do pai. É uma concepção além do
tempo e do lugar em que Jesus viveu, além das escrituras judaicas e,
incomodamente possível.
Essa abordagem racional e
histórica não nos leva a desvalorizar os evangelhos, as cartas dos apóstolos e
os documentos que os cristãos produziram nos primeiros séculos, mas exige uma
leitura crítica, um olhar histórico, capaz de entender que o texto, quando se
aproxima do mito, não é um conjunto de “verdades ocultas” cujas alegorias devem
ser descobertas pelo leitor, mas uma expressão vívida dos ensinos de Jesus, a
par com o desejo de reconhecimento do mestre pela sociedade da época por seus
apóstolos e discípulos.
A proposta de Herculano é
intelectualmente corajosa, porque é revisionista não só do cristianismo das
igrejas, mas por propor aos espíritas uma atitude mais racional no que tange ao
estudo dos evangelhos. Concordando ou não com Herculano Pires, o livro merece
ser estudado, debatido e entendido por nós sem a pretensão de verdade absoluta,
mas com a pretensão de rigor e honestidade intelectuais.
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