terça-feira, 21 de setembro de 2021

HISTÓRIA DO MARAVILHOSO E DO SOBRENATURAL [1]

 

Allan Kardec

 

Dá-se com a palavra maravilhoso o mesmo que se dá com a palavra alma; há um sentido elástico que se presta a interpretações diversas. Eis por que julgamos útil estabelecer alguns princípios gerais no artigo precedente, antes de abordar o exame da história dada pelo Sr. Figuier.

Quando essa obra apareceu, os adversários do Espiritismo bateram palmas, dizendo que, sem dúvida, nos iríamos dar mal; em seu caridoso pensamento já nos viam mortos sem apelação. Triste efeito da cegueira apaixonada e irrefletida, porquanto se eles se dessem ao trabalho de observar o que querem demolir, veriam que o Espiritismo será um dia, mais cedo do que pensam, a salvaguarda da sociedade, e talvez eles próprios lhe devam a salvação, não dizemos no outro mundo, com o qual pouco se preocupam, mas neste mesmo! Não é levianamente que dizemos tais palavras; ainda não chegou o momento de as desenvolver, embora muitos já nos compreendam.

Voltando ao Sr. Figuier, nós mesmos tínhamos pensado ver nele um adversário realmente sério, trazendo argumentos peremptórios que valessem a pena ser refutados com seriedade. Sua obra compreende quatro volumes; os dois primeiros com uma exposição de princípios, um prefácio e uma introdução, depois uma relação de fatos perfeitamente conhecidos, e que devem ser lidos com interesse, tendo em vista as pesquisas eruditas que mereceram da parte do autor; acreditamos ser o relato mais completo já publicado sobre o assunto. Assim, o primeiro volume é quase inteiramente consagrado à história de Urbain Grandier e das religiosas de Loudun; vêm a seguir as convulsionárias de Saint-Médard, a história dos profetas protestantes, a varinha mágica, o magnetismo animal. O quarto volume, que acaba de ser publicado, trata especialmente das mesas girantes e dos Espíritos batedores.

Mais tarde voltaremos a este último volume, limitando-nos, agora, a uma apreciação sumária do conjunto.

A parte crítica das histórias que constituem os dois primeiros volumes consiste em provar, por testemunhos autênticos, que a intriga, as paixões humanas e o charlatanismo tiveram grande papel; que certos fatos trazem a marca evidente da astúcia, o que ninguém contesta. Ninguém jamais garantiu a integridade de todos esses fatos, menos do que quaisquer outros os espíritas, que devem ser gratos ao Sr. Figuier por ter reunido provas que evitarão numerosas compilações. Eles têm interesse em que a fraude seja desmascarada, e todos os que a descobrirem nos fatos erroneamente qualificados de fenômenos espíritas lhes prestarão serviço. Ora, para prestar semelhante serviço, nada melhor que os inimigos. Vê-se, pois, que tais inimigos servem para alguma coisa; apenas o desejo da crítica às vezes os arrasta muito longe e, no ardor de descobrir o mal, muitas vezes o veem onde ele não está, por não terem examinado com bastante atenção e imparcialidade, o que é ainda mais raro. O verdadeiro crítico deve lutar contra as ideias preconcebidas e despojar-se de qualquer preconceito, pois, do contrário, julgará do seu ponto de vista, que talvez nem sempre seja justo. Tomemos um exemplo: suponhamos a história política de acontecimentos contemporâneos escrita com a maior imparcialidade, isto é, com inteira verdade, e imaginemos esta história comentada por dois críticos de opiniões contrárias. Porque todos os fatos são exatos, forçosamente haverão de contrariar a opinião de um deles; daí os julgamentos contraditórios: um que levará a obra às nuvens, e o outro, defendendo que seja lançada ao fogo. No entanto, a obra só conterá a verdade. Se assim ocorre com os fatos patentes, como os da História, com mais forte razão quando se trata da apreciação de doutrinas filosóficas. Ora, o Espiritismo é uma doutrina filosófica, e os que só o veem no fato das mesas girantes, ou que o julgam pelos contos absurdos e pelos abusos que deles se podem fazer, que o confundem com os meios de adivinhação, provam que não o conhecem. Estaria o Sr. Figuier nas condições requeridas para o julgar com imparcialidade? É o que vamos examinar.

Assim começa o Sr. Figuier o seu prefácio:

Em 1854, quando as mesas girantes e falantes, importadas da América, fizeram sua aparição na França, produziram uma impressão que ninguém esqueceu. Muitos espíritos sábios e prudentes ficaram alarmados com esse transbordamento imprevisto da paixão pelo maravilhoso. Não podiam compreender semelhante alucinação em pleno século XIX, com uma filosofia avançada e em meio a esse magnífico movimento científico que hoje dirige tudo para o positivo e o útil.

Seu julgamento está decretado: a crença nas mesas girantes é uma alucinação. Como o Sr. Figuier é um homem positivo, deve-se pensar que antes de publicar seu livro, viu tudo, tudo estudou, aprofundou tudo; numa palavra, que fala com conhecimento de causa. Se assim não fosse, cairia no erro dos Srs. Schiff e Jobert (de Lamballe) com a sua teoria do músculo estalante. (ver a Revista do mês de junho de 1859). Entretanto, sabemos que há um mês apenas ele assistiu a uma sessão, onde provou que ignorava os mais elementares princípios do Espiritismo. Considerar-se-á suficientemente esclarecido porque assistiu a uma sessão? Por certo não duvidamos da sua perspicácia, mas, por maior seja ela, não podemos admitir que ele possa conhecer e, sobretudo, compreender o Espiritismo numa sessão, como não aprendeu a Física numa única lição. Se o Sr. Figuier pudesse fazê-lo, tomaríamos o fato como um dos mais maravilhosos. Quando ele tiver estudado o Espiritismo com o mesmo cuidado que se dispensa ao estudo de uma ciência, quando lhe tiver consagrado um tempo moral necessário, quando tiver assistido a milhares de experiências, quando se tiver dado conta de todos os fatos, sem exceção, quando tiver comparado todas as teorias, só então poderá expender uma crítica judiciosa. Até lá o seu julgamento é uma opinião pessoal, cujo peso, pró ou contra, não terá nenhum valor.

Tomemos a coisa sob outro ponto de vista. Dissemos que o Espiritismo repousa inteiramente na existência, em nós, de um princípio imaterial ou, em outras palavras, na existência da alma. Quem não admite um Espírito em si não pode admiti-lo fora de si. Consequentemente, não admitindo a causa, não pode admitir o efeito. Gostaríamos, pois, de saber se o Sr. Figuier colocaria no frontispício de seu livro a seguinte profissão de fé:

1º Creio num Deus, autor de todas as coisas, todo-poderoso, soberanamente justo e bom e infinito em suas perfeições;

2º Creio na providência de Deus;

3º Creio na existência da alma sobrevivente ao corpo, e em sua individualidade após a morte, não como uma probabilidade, mas como uma coisa necessária e consequente dos atributos da Divindade;

4º Admitindo a alma e a sua sobrevivência, creio que não seria nem conforme a justiça, nem conforme a bondade de Deus, que o bem e o mal fossem tratados em pé de igualdade após a morte, considerando-se que, durante a vida, muito raramente recebem a recompensa ou o castigo que merecem;

5º Se a alma do mau e a do bom não são tratadas do mesmo modo, algumas são felizes, outras infelizes, isto é, são recompensadas ou punidas segundo suas obras.

Se o Sr. Figuier fizesse tal profissão de fé, nós lhe diríamos: Esta profissão é a de todos os espíritas, porquanto sem isto o Espiritismo não teria nenhuma razão de ser; somente aquilo que credes teoricamente, o Espiritismo o demonstra pelos fatos, porque todos os fatos espíritas são consequência destes princípios.

Não sendo os Espíritos que povoam o espaço mais do que as almas dos que viveram na Terra ou em outros mundos, desde que se admita a alma, sua sobrevivência e sua individualidade, por isso mesmo deve-se admitir os Espíritos. Sendo reconhecida a base, toda a questão se resume em saber se esses Espíritos ou essas almas podem comunicar-se com os vivos; se têm ação sobre a matéria; se influem no mundo físico e no mundo moral; ou, então, se são votados a uma perpétua inutilidade, ou a não se ocuparem senão de si mesmos, o que é pouco provável, desde que se admita a providência de Deus e se considere a admirável harmonia que impera no Universo, onde os menores seres desempenham o seu papel.

Se a resposta do Sr. Figuier fosse negativa, ou, por polidez, fosse ambígua nós lhe diríamos – para nos servir da expressão de certas pessoas e a fim de não chocar muito bruscamente respeitáveis preconceitos – o seguinte: não sois juiz mais competente em matéria de Espiritismo do que um muçulmano em assuntos da religião católica; vosso julgamento não seria imparcial e em vão negaríeis albergar ideias preconcebidas, porquanto tais ideias, em vossa própria opinião, dizem respeito ao princípio fundamental, que rejeitais a priori, antes de conhecer o assunto.

Se algum dia uma equipe de cientistas nomeasse um relator para examinar a questão do Espiritismo e esse relator não fosse francamente Espiritualista, seria o mesmo que um concílio escolher Voltaire para tratar de uma questão dogmática.

Admiramo-nos de que os cientistas não tenham dado sua opinião; mas nos esquecemos de que sua missão – é bom frisar – é o estudo das leis da matéria e não dos atributos da alma e, menos ainda, o de decidir se a alma existe. Sobre tais assuntos eles podem ter opiniões individuais, como podem ter sobre a religião; mas, como entidade científica, jamais terão que se pronunciar.

Não sabemos o que o Sr. Figuier responderia às perguntas formuladas na profissão de fé acima, mas o seu livro deixa pressenti-lo. Com efeito, o segundo parágrafo de seu prefácio é assim concebido:

Um conhecimento exato da História do passado teria prevenido ou, pelo menos, diminuído muito tal espanto. De fato, seria grande erro imaginar-se que as ideias que, em nossos dias, deram origem à crença nas mesas falantes e nos Espíritos batedores, são de origem moderna. Esse amor do maravilhoso não é particular à nossa época; está em todos os tempos e países, por se ligar à própria natureza do espírito humano. Por uma instintiva e injustificada desconfiança em suas próprias forças, o homem é levado a colocar acima de si forças invisíveis, que se exercem numa esfera inacessível. Esta disposição inata existiu em todos os períodos da História da Humanidade, revestindo aspectos diferentes conforme o tempo, os lugares e os costumes, originando manifestações variáveis na forma, porém tendo, no fundo, um princípio idêntico.

Dizer que é por uma instintiva e injustificada desconfiança em suas próprias forças que o homem é levado a colocar acima de si forças invisíveis, que se exercem numa esfera inacessível, é reconhecer que o homem é tudo, que pode tudo, e que acima dele nada há. Salvo engano, isso não é apenas materialismo, mas ateísmo. Aliás, essas ideias ressaltam de uma porção de outras passagens de seu prefácio e de sua introdução, para as quais chamamos toda a atenção de nossos leitores e estamos convencidos de que estes as julgarão como nós. Dir-se-á que tais palavras não se aplicam à Divindade, mas aos Espíritos? Então responderemos que ele não conhece a primeira palavra do Espiritismo, pois negar os Espíritos é negar a alma, desde que Espíritos e almas são a única e mesma coisa; que os Espíritos não exercem sua força numa esfera inacessível, visto estarem de nosso lado, a nos tocar e a agir sobre a matéria inerte, à semelhança de todos os fluidos imponderáveis e invisíveis que, não obstante, são os mais poderosos motores e os mais ativos agentes da Natureza. Só Deus exerce o seu poder numa esfera inacessível aos homens; negar este poder é, pois, negar a Deus. Dir-se-á, enfim, que esses efeitos, que atribuímos aos Espíritos, talvez sejam devidos a alguns desses fluidos? É possível. Mas, então lhe perguntaremos: como fluidos ininteligentes podem produzir efeitos inteligentes?

O Sr. Figuier constata um fato capital ao dizer que esse amor do maravilhoso não é particular à nossa época; está em todos os tempos e países, por se ligar à própria natureza do espírito humano.

Aquilo a que chama amor do maravilhoso é, muito simplesmente, a crença instintiva, inata, como o diz, na existência da alma e sua sobrevivência ao corpo, crença que revestiu formas diversas, segundo os tempos e os lugares, mas tendo no fundo um princípio idêntico. Esse sentimento inato, universal no homem, Deus lho teria inspirado para se divertir à sua custa? Para lhe dar aspirações impossíveis de realizar? Crer que assim possa ser é negar a bondade de Deus; mais ainda: é negar o próprio Deus.

Querem outras provas do que antecipamos? Vejamos ainda algumas passagens do seu prefácio:

Na Idade Média, quando uma religião nova transforma a Europa, o maravilhoso se instala nessa mesma religião. Acredita-se nas possessões diabólicas, nos feiticeiros e nos magos. Durante vários séculos essa crença é sancionada por uma guerra sem quartel e sem misericórdia, feita aos infelizes, acusados de comércio secreto com os demônios, ou com os magos, seus prepostos.

Pelo fim do século dezessete, na aurora de uma filosofia tolerante e esclarecida, o diabo envelheceu e a acusação de magia começa a ser um argumento gasto, mas nem por isto o maravilhoso perde os seus direitos. Os milagres florescem à vontade nas igrejas das diversas comunhões cristãs; acredita-se, ao mesmo tempo, na varinha mágica ou se decifram os movimentos de uma forquilha para pesquisar os objetos do mundo físico e obter esclarecimentos sobre as coisas do mundo moral. Nas diversas ciências continua-se a admitir a intervenção de influências sobrenaturais, precedentemente introduzidas por Paracelso.

No século dezoito, século de Voltaire e da Enciclopédia, enquanto sobre as matérias filosóficas todos os olhos se abriam às luzes do bom-senso e da razão – não obstante a voga da filosofia cartesiana – só o maravilhoso resistia à queda de tantas crenças até então veneradas. Os milagres ainda se multiplicavam.

Se a filosofia de Voltaire, que abriu os olhos à luz do bom-senso e da razão e minou tantas superstições, não pôde extirpar a ideia inata de um poder oculto, não seria porque tal ideia é inatacável? A filosofia do século dezoito flagelou os abusos, mas se deteve contra a base. Se essa ideia triunfou sobre os golpes desferidos pelo apóstolo da incredulidade, o Sr. Figuier espera ser mais feliz? Permitimo-nos duvidar.

O Sr. Figuier faz uma confusão singular das crenças religiosas, dos milagres e da varinha mágica. Para ele, tudo isto sai da mesma fonte: a superstição, a crença no maravilhoso. Não tentaremos aqui defender essa pequena forquilha, que teria a singular propriedade de servir à pesquisa do mundo físico, em virtude de não nos havermos aprofundado na questão; por uma questão de princípios, só elogiamos ou criticamos o que conhecemos. Mas, se quiséssemos argumentar por analogia, perguntaríamos se a pequena agulha de aço, com a qual o navegante acha sua rota, não tem uma virtude muito mais admirável do que a pequena forquilha?

Não, direis vós, porquanto conhecemos a causa que a faz agir e esta causa é inteiramente física. De acordo. Mas quem diz que a causa que age sobre a forquilha não seja inteiramente física? Antes que se conhecesse a teoria da bússola, que teríeis pensado se tivésseis vivido naquela época, quando os marinheiros não tinham como guia senão as estrelas, que muitas vezes lhes faltavam? Que teríeis pensado, dizemos nós, de um homem que tivesse vindo dizer: Tenho aqui numa caixinha, não maior que a de bombons, uma agulha pequenina, com a qual os maiores navios podem navegar com segurança; que indica a rota com qualquer tempo, com a precisão de um relógio? Ainda uma vez, não combatemos a varinha mágica, e menos ainda o charlatanismo, que dela se apoderou; apenas perguntamos o que haveria de mais sobrenatural se um pequeno pedaço de madeira, em dadas circunstâncias, fosse agitado por um eflúvio terrestre invisível, como a agulha imantada o é pela corrente magnética que também não se vê? Será que essa agulha também não serve para pesquisar as coisas do mundo físico? Não será ela influenciada pela presença de uma mina de ferro subterrânea? O maravilhoso é a ideia fixa do Sr. Figuier; é o seu pesadelo; ele o vê por toda parte onde haja algo que não compreende. Mas apenas ele, sábio, poderá dizer como germina e se reproduz o menor grão? Qual a força que faz a flor voltar-se para a luz? Quem, na terra, atrai as raízes para um terreno propício, mesmo através dos mais rudes obstáculos? Estranha aberração do espírito humano, que pensa tudo saber e nada sabe; que despreza maravilhas incontáveis e nega um poder sobre-humano!

Estando baseada na existência de Deus, esse poder sobre-humano que se exerce numa esfera inacessível; sobre a alma, que sobrevive ao corpo, conservando a sua individualidade e, consequentemente sua ação, a religião tem por princípio aquilo que o Sr. Figuier chama de maravilhoso. Se ele se tivesse limitado a dizer que entre os fatos qualificados de maravilhoso uns são ridículos e absurdos, aos quais a razão faz justiça, nós o aplaudiríamos com todas a nossas forças; mas não poderíamos concordar com a sua opinião, quando confunde na mesma reprovação o princípio e o abuso do princípio; quando nega a existência de qualquer poder acima da Humanidade. Aliás, essa conclusão é formulada de maneira inequívoca na passagem seguinte:

 Dessas discussões, cremos que resultará para o leitor a perfeita convicção da não existência de agentes sobrenaturais e a certeza de que todos os prodígios, que em diversas épocas têm excitado a surpresa ou a admiração dos homens, se explicam apenas pelo conhecimento de nossa organização fisiológica. A negação do maravilhoso, eis a conclusão a tirar deste livro, que poderia chamar-se o maravilhoso explicado. E se alcançarmos o objetivo a que nos propusemos atingir, teremos a convicção de ter prestado um verdadeiro serviço ao bem de todos.

Dar a conhecer os abusos, desmascarar a fraude e a hipocrisia onde quer que se encontrem, é, sem dúvida, prestar um grande serviço. Mas julgamos que é fazer grande mal à sociedade, assim como aos indivíduos, atacar o princípio em virtude de terem dele abusado; é querer cortar a boa árvore, porque deu um fruto estragado. Bem compreendido, o Espiritismo, dando a conhecer a causa de certos fenômenos, mostra o que é possível e o que não o é. Por isto mesmo, tende a destruir as ideias realmente supersticiosas; mas, ao mesmo tempo, demonstrando o princípio, dá um objetivo ao bem; fortalece as crenças fundamentais que a incredulidade ataca com violência a pretexto do abuso; combate a chaga do materialismo, que é a negação do dever, da moral e de toda esperança, e é por isto que dizemos que um dia ele será a salvaguarda da sociedade.

Aliás, estamos longe de nos lamentar pela obra do Sr. Figuier. Sobre os adeptos da doutrina ela não poderá ter nenhuma influência, pois eles reconhecerão imediatamente os pontos vulneráveis. Sobre os outros, terá o efeito de todas as críticas: o de provocar a curiosidade. Depois da aparição, ou melhor, da reaparição do Espiritismo, muito se tem escrito contra ele. Não lhe pouparam sarcasmos, nem injúrias. Apenas de uma coisa ele não teve a honra, graças aos costumes do tempo: a fogueira. Isto o impediu de progredir? Absolutamente, pois hoje conta seus aderentes por milhões em todas as partes do mundo e estes todos os dias aumentam. Para isto, e sem o querer, muito contribuiu a crítica, porque, como dissemos, seu efeito é o de provocar o exame.

Querem ver o pró e o contra e ficam admirados por encontrarem uma doutrina racional, lógica, consoladora, que acalma as angústias da dúvida, resolvendo o que nenhuma filosofia pôde resolver, quando pensavam apenas encontrar uma crença ridícula. Quanto mais conhecido o nome do contraditor, mais repercussão tem a sua crítica e mais bem ela pode fazer, chamando a atenção dos indiferentes. A esse respeito, a obra do Sr. Figuier está nas melhores condições: além de escrita de maneira muito séria, não se arrasta na lama das injúrias grosseiras e do personalismo, únicos argumentos dos críticos de baixo nível. Desde que pretende tratar o assunto do ponto de vista científico, e sua posição lho permite, ver-se-á nisso a última palavra da Ciência contra esta doutrina e então o público saberá a quantas se anda. Se a douta obra do Sr. Figuier não tiver o poder de lhe dar o golpe de misericórdia, duvidamos que outros sejam mais felizes. Para combatê-la com eficácia, ele só tem um meio, que lhe indicamos com prazer. Não se destrói uma árvore cortando-lhe os galhos, mas a raiz. É necessário, pois, atacar o Espiritismo pela raiz, e não nos ramos, que renascem à medida que são cortados. Ora, as raízes do Espiritismo, desta alucinação do século dezenove, para nos servirmos de sua expressão, são a alma e os seus atributos. Que, pois, ele prove que a alma não existe e não pode existir, porquanto sem almas não há mais Espíritos. Quando tiver provado isto, o Espiritismo não terá mais razão de ser e nós nos confessaremos vencidos. Se o seu cepticismo não chega até esse ponto, que prove, não por uma simples negação, mas por uma demonstração matemática, física, química, mecânica, fisiológica ou qualquer outra:

1º Que o ser que pensa em vida é incapaz de pensar após a morte;

2º Que, se pensa, não deve mais querer comunicar-se com aqueles a quem amou;

3º Que, se pode estar em toda parte, não pode estar ao nosso lado;

4º Que, se está ao nosso lado, não pode comunicar-se conosco;

5º Que, por seu envoltório fluídico, não pode agir sobre a matéria inerte;

6º Que, se pode agir sobre a matéria inerte, não pode agir sobre um ser animado;

7º Que, se pode agir sobre um ser animado, não pode dirigir-lhe a mão para fazê-lo escrever;

8º Que, podendo fazê-lo escrever, não pode responder às suas perguntas e lhe transmitir o pensamento.

Quando os adversários do Espiritismo nos tiverem demonstrado que isso é impossível, através de razões tão patentes quanto aquelas pelas quais Galileu demonstrou que não é o Sol que gira em torno da Terra, então poderemos dizer que suas dúvidas são fundadas. Infelizmente, até este dia, toda a sua argumentação se reduz nestas palavras: Não creio; logo é impossível. Sem dúvida dirão que a nós cabe provar a realidade das manifestações; nós as provamos pelos fatos e pelo raciocínio; se não admitem nem uns, nem o outro, se negam o que veem, a eles cabe provar que nosso raciocínio é falso e que os fatos são impossíveis.

Em outro artigo examinaremos a teoria do Sr. Figuier.

Fazemos votos para que seja de melhor qualidade que a teoria do músculo estalante de Jobert (de Lamballe).



[1] Revista Espírita – Setembro/1860 – Allan Kardec

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