Allan Kardec
Os adversários do Espiritismo
acabam de fazer uma descoberta que deve contrariar sobremaneira os Espíritos batedores;
para eles é um desses golpes de clava do qual dificilmente se restabelecerão.
Com efeito, que devem pensar esses pobres Espíritos da terrível cutilada com
que o Sr. Schiff acaba de atingi-los, e depois o Sr. Jobert, de Lamballe e, por
fim, o Sr. Velpeau? Parece-me vê-los bastante confusos, argumentando mais ou
menos assim:
Pois bem, meu caro,
estamos em maus lençóis! Estamos perdidos! Não havíamos contado com a anatomia,
que descobriu as nossas artimanhas. Decididamente, não há condições de se viver
num país onde há gente que enxerga com tanta clareza.
– Vamos, senhores patetas, que acreditastes em todas essas histórias
inverossímeis; impostores que nos quisestes fazer acreditar na existência de
seres que não vemos; ignorantes que imaginais possa existir algo que escape ao
nosso escalpelo, inclusive a vossa alma;
e todos vós, escritores espíritas ou espiritualistas, mais ou menos
espirituosos, inclinai-vos e reconhecei que não passais de tolos, de charlatães
e até mesmo de velhacos e de imbecis: esses senhores vos deixam a escolha,
porque aqui está a luz, a verdade pura.
Academia
das Ciências [Sessão de 18 de abril de 1859] – DA CONTRAÇÃO RÍTMICA MUSCULAR INVOLUNTÁRIA. – O Sr. Jobert (de
Lamballe) comunica um fato curioso de contração rítmica involuntária do pequeno
perônio lateral direito, que confirma a opinião do Sr. Schiff relativamente ao
fenômeno oculto dos Espíritos batedores.
A Senhorita X, de
quatorze anos, forte, bem constituída, desde os seis anos é acometida de
movimentos involuntários regulares do músculo pequeno perônio lateral direito e
de batidas que são ouvidas por detrás do maléolo externo direito, com a
regularidade do pulso. Apareceram pela primeira vez na perna direita, durante a
noite, acompanhados de dor muito forte. Pouco tempo depois, o pequeno perônio
lateral esquerdo foi atingido por uma afecção da mesma natureza, embora de
menor intensidade.
O efeito desses
batimentos é o de causar dor, produzir claudicações e, até mesmo, provocar
quedas. A jovem doente declarou-nos que a extensão do pé e a compressão
exercida sobre certos pontos do pé e da perna chegam a detê-los, não obstante continue
sentindo dores e fadiga no membro.
Quando essa
interessante criatura se nos apresentou, eis em que estado a encontramos: ao
nível do maléolo externo direito, em direção ao bordo superior dessa saliência
óssea, era fácil constatar um batimento regular, acompanhado de intumescência passageira
e de um levantamento das partes moles da região, os quais eram seguidos por um
ruído seco que se sucedia a cada contração muscular. Esse ruído era ouvido no
leito, fora dele e a uma distância assaz considerável do local onde a jovem
repousava. Notável pela sua regularidade e pelo seu estrépito, tal ruído a acompanhava
por toda parte. Aplicando a orelha à perna, ao pé ou ao maléolo, distinguia-se
um choque incômodo que atingia todo o trajeto percorrido pelo músculo,
absolutamente como se fora um golpe que se transmitisse de uma a outra
extremidade de uma viga. Por vezes o ruído se assemelhava a um atrito, a uma
raspadela, desde que as contrações fossem menos intensas. Esses mesmos fenômenos
sempre se reproduziam, estivesse a doente em pé, sentada ou deitada,
independentemente da hora do dia ou da noite em que a examinávamos.
Se estudarmos os
mecanismos dos batimentos produzidos, e se, para maior clareza, dividirmos cada
batimento em dois tempos, veremos que:
“No primeiro tempo o
tendão do pequeno perônio lateral se desloca, ao sair de sua goteira,
levantando necessariamente o grande perônio lateral e a pele; No segundo tempo,
realizado o fenômeno de contração, seu tendão se relaxa e se movimenta na
goteira, produzindo, contra ela, o ruído seco e sonoro de que acabamos de falar”.
Repetia-se, por
assim dizer, de segundo em segundo, e cada vez o pequeno artelho sentia um
abalo e a pele que recobre o quinto metatarso era levantada pelo tendão.
Cessava quando o pé era fortemente estendido. Cessava, ainda, quando se exercia
pressão sobre o músculo ou a bainha dos perônios.
Nestes últimos anos
os jornais franceses e estrangeiros têm falado muito de ruídos semelhantes a
golpes de martelo, ora se sucedendo com regularidade, ora afetando um ritmo
particular, que se produziam em volta de certas pessoas deitadas em seu leito.
Os charlatães se
apoderaram desses fenômenos singulares, cuja realidade, aliás, é atestada por
testemunhas dignas de fé. Tentaram relacioná-los à intervenção de uma causa sobrenatural,
deles se servindo para explorar a credulidade pública.
A observação da senhorita X... mostra como os
tendões deslocados, no momento em que retornam à goteira óssea, podem produzir
batimentos, sob a influência da contração muscular, anunciando, assim, para
certas pessoas, a presença de Espíritos batedores.
Exercitando-se,
qualquer pessoa pode adquirir a faculdade de produzir, à vontade, semelhantes
deslocamentos de tendões e batimentos secos que se ouvem a distância.
Repelindo qualquer ideia
de intervenção sobrenatural e notando que esses batimentos e ruídos estranhos
se passavam sempre ao pé do leito dos indivíduos agitados pelos Espíritos, o
Sr. Schiff se interrogou se a sede desses ruídos não estaria neles próprios, em
vez de se situarem exteriormente. Seus conhecimentos anatômicos levaram-no a
pensar que bem podia ser na perna, na região peronial, onde se encontra uma
superfície óssea, tendões e uma bainha comum.
Estando bem
sedimentada em seu espírito essa maneira de ver, fez ele experiências e
tentativas em si mesmo, que lhe não permitiram duvidar que o ruído tinha sua
sede por detrás do maléolo externo e nas bainhas dos tendões do perônio.
Logo o Sr. Schiff
foi capaz de executar ruídos voluntários, regulares, harmoniosos e, perante um
grande número de pessoas, cerca de cinquenta, pôde imitar os prodígios dos Espíritos batedores, com ou sem
sapatos, de pé ou deitado.
Concluiu o Sr.
Schiff que todos esses ruídos se originam no tendão do grande perônio, quando
passa na goteira peronial, acrescentando que eles coexistem com um
adelgaçamento ou ausência da bainha comum no grande e no pequeno perônio. Quanto
a nós, admitindo inicialmente que todos esses batimentos fossem produzidos pela
queda de um tendão contra a superfície óssea peronial, pensamos, entretanto,
não haver necessidade de uma anomalia da bainha para os percebermos. Basta a
contração do músculo, o deslocamento do tendão e seu retorno à goteira para que
o ruído aconteça. Além disso, somente o pequeno perônio é o agente do ruído em
questão. Com efeito, ele ostenta uma direção mais reta que o grande perônio,
que sofre vários desvios em seu trajeto; situa-se profundamente na goteira;
recobre completamente a goteira óssea, sendo natural concluirmos que o ruído é
produzido pelo choque desse tendão contra as partes sólidas da goteira; apresenta
fibras musculares até a entrada do tendão na goteira comum, ao passo que se dá
o contrário com o grande perônio.
O ruído é variável
em sua intensidade e, com efeito, nele podemos distinguir diversos matizes. É
assim que, desde o barulho estridente, que se percebe a distância, encontramos variedades
de ruídos, de atritos, de serra etc.
Utilizando o método
subcutâneo fizemos incisões repetidas através do corpo do pequeno perônio lateral
direito e no corpo do mesmo músculo do lado esquerdo de nossa doente e mantivemos
os membros imobilizados com o auxílio de um aparelho. Reunidas as partes, as
funções dos dois membros foram restabelecidas sem qualquer traço dessa singular
e rara afecção.
Sr. Velpeau – Os ruídos de que acaba de tratar o Sr. Jobert em seu interessante
comunicado parecem ligados a uma questão muita vasta. Com efeito, observam-se
esses mesmos ruídos em diversas regiões. O quadril, a espádua, a face interna
do pé frequentemente se lhe tornam a sede. Entre outros vi uma dama que,
auxiliada por certos movimentos de rotação da coxa, produzia uma espécie de
música assaz manifesta para ser ouvida de um a outro lado do salão. O tendão da
porção longa do bíceps braquial a produz facilmente ao sair de sua bainha,
quando os feixes fibrosos que o retêm naturalmente se relaxam ou se rompem. O mesmo
acontece com o músculo posterior da perna ou com o músculo flexor do grande
artelho, por trás do maléolo interno. Tais ruídos se explicam, como bem o
compreenderam os Srs. Schiff e Jobert, pela fricção ou pelos sobressaltos dos
tendões nas ranhuras ou contra os bordos das superfícies sinoviais. Consequentemente,
são possíveis numa infinidade de regiões ou na vizinhança de uma porção de
órgãos. Ora claros e bem audíveis, ora surdos ou obscuros, por vezes úmidos,
outras vezes secos, variam, aliás, extremamente de intensidade.
Esperemos que o
exemplo dado a respeito pelos Srs. Schiff e Jobert levem os fisiologistas a se
ocuparem seriamente com esses vários ruídos e que um dia eles deem a explicação
racional de fenômenos incompreendidos ou até aqui atribuídos a causas ocultas e
sobrenaturais.
Sr. Jules Cloquet – Em apoio às observações do Sr. Velpeau
sobre os ruídos anormais que os tendões podem produzir nas diversas regiões do
corpo, cita o exemplo de uma moça de dezesseis a dezoito anos que lhe foi
apresentada no Hospital São Luís, numa época em que os senhores Velpeau e
Jobert eram vinculados a esse mesmo estabelecimento. O pai da jovem, que se intitulava
pai de um fenômeno, espécie de
saltimbanco, esperava tirar partido da filha, exibindo-a publicamente. Anunciou
que ela tinha no ventre um movimento de pêndulo. A moça estava perfeitamente conformada.
Por um leve movimento de rotação na região lombar da coluna vertebral, ela
produzia estalidos muito fortes, mais ou menos regulares, segundo o ritmo de
ligeiros movimentos que imprimia à parte inferior do tronco. Esses ruídos
anormais podiam ser ouvidos perfeitamente a mais de vinte e cinco pés de
distância e assemelhavam-se ao ruído das antigas máquinas de assar carne; eram
interrompidos à vontade da moça e pareciam ter sua sede nos músculos da região
lombo-dorsal da coluna vertebral.
Extraído da Abeille médicale,
julgamo-nos no dever de transcrever este artigo integralmente para a edificação
de nossos leitores, a fim de não sermos acusados de querer esquivar-nos a certos
argumentos que ele contém. Com algumas variantes, foi reproduzido em diferentes
jornais, acompanhados dos costumeiros epítetos. Não temos o hábito de ressaltar
as grosserias; deixamo-las de lado, porque o nosso bom-senso nos diz que nada
se prova com tolices e injúrias, por mais sábio que se seja. Se o artigo em
questão se tivesse limitado a banalidades, que nem sempre são marcadas pelo
cunho da urbanidade e da boa educação, não o teríamos mencionado. Mas ele trata
a questão do ponto de vista científico; sobrecarrega-nos com demonstrações, com
as quais pretende pulverizar-nos; vejamos, pois, se de fato estamos mortos pelo
decreto da Academia das Ciências, ou se temos alguma chance de viver, como o
pobre louco Fulton, cujo sistema foi declarado um sonho vazio e impraticável
pelo Instituto, o que apenas privou a França da iniciativa do navio a vapor; e
quem sabe as consequências que tal poderio, nas mãos de Napoleão I, poderia ter
acarretado sobre os acontecimentos ulteriores!
Faremos apenas um breve reparo
sobre a qualificação de charlatães, atribuída aos partidários das ideias novas.
Ela nos parece um tanto arriscada, quando se aplica a milhões de criaturas que
delas não tiram qualquer proveito e quando alcança os planos mais elevados da
escala social. Esquecem que o Espiritismo fez, em alguns anos, incríveis
progressos em todas as partes do mundo; que não se propaga entre os ignorantes,
mas no seio das classes esclarecidas; que conta em suas fileiras um grande
número de médicos, magistrados, eclesiásticos, artistas, homens de letras e altos
funcionários, pessoas às quais geralmente se reconhece algumas luzes e um
mínimo de bom-senso. Ora, confundi-los no mesmo anátema e remetê-los sem
qualquer cerimônia para os hospícios é agir com excessiva prepotência.
Mas, direis, trata-se de
criaturas de boa-fé, vítimas de uma ilusão; não negamos o efeito, apenas
contestamos a causa que lhe atribuís. A Ciência acaba de descobrir a verdadeira
causa, tornando-a conhecida e, por isso mesmo, fazendo desabar todo esse altar
de fantasias místicas de um mundo invisível, que pode seduzir as imaginações
exaltadas, embora sinceras.
Não nos vangloriamos de
sabedoria, nem muito menos ousaríamos colocar-nos no mesmo nível de nossos
honrados adversários. Diremos tão-só que nossos estudos pessoais de anatomia e
de ciências físicas e naturais, que tivemos a honra de professar, nos permitem
compreender a sua teoria, e que de modo algum nos sentimos aturdidos por essa
avalancha de palavreado técnico. Os fenômenos de que falam são-nos
perfeitamente conhecidos. Em nossas observações sobre os efeitos atribuídos aos
seres invisíveis tivemos o cuidado de não negligenciar uma causa tão patente de
desprezo. Quando um fato se apresenta, não nos contentamos com uma única
observação; queremos vê-lo sob todos os ângulos, sob todas as faces e, antes de
aceitar uma teoria, imaginamos se ela corresponde a todas as circunstâncias, se
nenhum fato desconhecido virá contradizê-la; numa palavra, se resolve todas as
questões. A verdade tem o seu preço. Admitis bem, senhores, que esta maneira de
proceder é bastante lógica. Pois bem! Malgrado todo o respeito devido ao vosso
saber, apresentam-se algumas dificuldades na aplicação de vosso sistema àquilo
que se costuma chamar de Espíritos batedores. Em primeiro
lugar, é no mínimo singular que essa faculdade, até o momento excepcional e vista
como um caso patológico, qualificada pelo Sr. Jobert (de Lamballe) de rara
e singular afecção, de repente se tenha tornado tão comum. É verdade
que o Sr. de Lamballe diz que todo homem pode adquiri-la pelo exercício; mas
como também afirmou que ela se faz acompanhar de dor e fadiga, o que é bastante
natural, é de convir que precisamos ter uma vontade de mistificar muito forte para
fazer nosso músculo estalar durante duas ou três horas seguidas, quando isso a
nada leva, e pelo só prazer de divertir as pessoas.
Mas falemos seriamente. Isto é
mais grave, porque é ciência. Esses senhores, que descobriram esta maravilhosa propriedade
do grande perônio, não desconfiam absolutamente de tudo quanto pode fazer esse
músculo. Ora, eis aí um belo problema a resolver. Os tendões deslocados não
batem somente nas goteiras ósseas; por um efeito verdadeiramente bizarro,
também vão bater nas portas, paredes e tetos, e isso à vontade, exatamente nos
locais designados. Mas se quereis algo ainda mais forte, vede o quanto a Ciência
estava longe de suspeitar de todas as virtudes desse músculo estalador: ele tem
o poder de levantar uma mesa sem a tocar, de fazê-la andar com os pés, de
caminhar na sala, de manter-se no espaço sem ponto de apoio; de abri-la e de
fechá-la e, julgai com que força! De fazê-la quebrar-se ao tombar no chão.
Pensais que se trata de uma mesa frágil e leve como uma pena, que a gente levanta
com um sopro? Acordai, senhores, trata-se de mesas pesadas e maciças, de cinquenta
a sessenta quilos, que obedecem a moçoilas e crianças. Mas, dirá o Sr. Schiff,
nunca vi esses prodígios.
Isso é fácil de compreender: ele
não quis ver senão as pernas.
Em suas observações terá o Sr.
Schiff considerado a necessária independência das ideias? Estava imune de
qualquer prevenção? Temos o direito de duvidar; e não somos nós que o dizemos,
é o Sr. Jobert. Segundo ele, o Sr. Schiff perguntou, ao falar de médiuns, se a
sede desses ruídos não estaria de preferência neles, e não fora deles; seus
conhecimentos anatômicos o levaram a pensar que bem podia ser na perna. Estando
esse modo de ver bem sedimentado em seu espírito etc. Assim, conforme a
confissão do Sr. Jobert, o Sr. Schiff tomou por ponto de partida não os fatos,
mas sua própria ideia, sua ideia preconcebida, bem sedimentada. Daí as pesquisas
num sentido exclusivo e, consequentemente, uma teoria exclusiva que explica
perfeitamente o fato que ele viu, mas não aqueles que não viu. E por que não os
viu? Porque em seu pensamento só havia um ponto de partida verdadeiro, e uma explicação
verdadeira. Partindo daí, todo o resto deveria ser falso e não merecia exame.
Disso resultou que, em sua ânsia de destruir os médiuns, errou o alvo.
Senhores, imaginais conhecer
todas as virtudes do grande perônio porque o surpreendestes a tocar violão em
sua bainha? Ora, ora! Eis aqui algo muito diferente a registrar nos anais da
Anatomia. Pensastes que o cérebro fosse a sede do pensamento.
Errado! Pode-se pensar pelo
tornozelo. As batidas dão provas de inteligência; portanto, venham esses golpes
exclusivamente do perônio, venham do grande perônio, conforme o Sr. Schiff, venham
do pequeno, conforme o Sr. Jobert – seria preciso que eles se entendessem a
respeito – é porque o perônio é inteligente. Isto nada tem de surpreendente.
Fazendo estalar o seu músculo à vontade, o médium executará o que quiserdes: imitará
a serra, o martelo, baterá a chamada e o ritmo de uma ária pedida. Que seja! Mas
quando o ruído responde a alguma coisa que o médium ignora completamente;
quando revela pequenos segredos que somente vós conheceis, segredos que
desejaríamos esconder de nossa própria sombra, é preciso convir que o
pensamento vem de outra parte que não o cérebro. De onde virá, então? Meu Deus
do céu!
Do grande perônio. E isso não é
tudo: esse grande perônio também é poeta, desde que pode compor versos
encantadores, não obstante o médium jamais os tenha feito em sua vida; ele é poliglota,
porque dita coisas verdadeiramente muito sensatas, em línguas de que o médium
não conhece uma só palavra; ele é músico... Nós bem o sabemos, pois o Sr.
Schiff fez o seu executar sons harmoniosos, com ou sem sapatos, perante cinquenta
pessoas.
Sim; mas também compõe. Vós, Sr.
Dorgeval, que ultimamente nos destes uma encantadora sonata, acreditais
realmente ter sido o Espírito Mozart que vo-la ditou? Acordai: era o vosso
grande perônio que tocava piano. Na verdade, senhores médiuns, não desconfiáveis
possuir tanto espírito em vossos calcanhares. Glória, pois, aos que fizeram
essa descoberta; que seus nomes sejam inscritos em letras maiúsculas para a
edificação da posteridade e honra de sua memória!
Dirão que gracejamos com coisas
sérias. Mas os gracejos não são raciocínios, do mesmo modo que também não o são
as tolices e as grosserias. Confessando nossa ignorância junto a esses
senhores, aceitamos a sua sábia demonstração e a tomamos muito a sério.
Pensávamos que certos fenômenos eram produzidos por seres invisíveis que se
deram o nome de Espíritos; é possível que tenhamos nos enganado. Como
procuramos a verdade, não alimentamos a ridícula pretensão de insistir numa ideia
que, de maneira tão peremptória, nos demonstram ser falsa. Desde que o Sr.
Jobert, por meio de uma incisão subcutânea, solapou os Espíritos, é porque já
não existem Espíritos. Considerando que, segundo ele, todos os ruídos vêm do
perônio, é preciso acreditá-lo e admiti-lo em todas as suas consequências.
Assim, quando as batidas são dadas na parede ou no teto, ou o perônio lhes corresponde
ou a parede tem um perônio; quando esses golpes ditam versos através de uma
mesa que bate o pé, de duas coisas uma: ou a mesa é poetisa ou o perônio é
poeta. Isso nos parece lógico. Vamos ainda mais longe: certo dia em que fazia
experiências espíritas, um oficial de nosso conhecimento recebeu, por mão invisível,
um par de bofetadas tão bem aplicadas que ainda as sentia duas horas depois.
Ora, como provocar uma reparação? Se semelhante fato acontecesse com o Sr.
Jobert, ele não se inquietaria: apenas diria ter sido agredido pelo grande
perônio.
Eis o que lemos a respeito no
jornal Le Monde, de 1º de maio de 1859:
A Academia de
Medicina continua a cruzada dos espíritos positivos contra o maravilhoso de
qualquer gênero. Depois de haver, com justa razão, mas talvez um tanto desajeitadamente,
fulminado o famoso doutor negro, pela voz do Sr. Velpeau, eis que acaba de
ouvir o Sr. Jobert (de Lamballe) declarar, em pleno Instituto, o segredo
daquilo que ele chama a grande comédia dos Espíritos
batedores, que foi representada com tanto sucesso nos dois hemisférios.
Segundo o célebre
cirurgião, todo toc toc, todo pan pan que faz estremecer as pessoas
que os escutam; todos esses ruídos singulares, esses golpes secos, vibrados
sucessivamente e como que cadenciados, precursores da chegada, sinais evidentes
da presença dos habitantes do outro mundo, resultam simplesmente de um movimento
imprimido a um músculo, a um nervo, a um tendão! Trata-se de uma bizarrice da
Natureza, habilmente explorada para produzir, sem que se possa constatar, essa
música misteriosa que encantou e seduziu tanta gente.
A sede da orquestra
é na perna. É o tendão do perônio, tocando no interior da bainha, que produz
todos esses ruídos que são ouvidos sob as mesas ou a distância, ao bel prazer do
prestidigitador.
De minha parte
duvido muito que o Sr. Jobert tenha posto a mão, como imagina, no segredo
daquilo que ele mesmo chama “uma comédia”, parecendo-me que os artigos
publicados nesse mesmo jornal, por nosso confrade Sr. Escande, sobre os mistérios
do mundo oculto, apresentam a questão com uma amplidão bem diferente, sincera e
filosófica, no bom sentido da palavra.
Entretanto, se os
charlatães de todos os matizes incomodam pelo barulho que fazem, temos de
convir que esses sábios senhores por vezes não o são menos, com a esponja que pretendem
aplicar sobre tudo quanto escape ao brilho dos candelabros oficiais.
Não compreendem que
a sede do maravilhoso, que devora nossa época, deve-se justamente aos excessos
do positivismo para onde certos espíritos quiseram arrastá-la. A alma humana
tem necessidade de crer, de admirar e de contemplar o infinito. Trabalharam
para fechar as janelas que o catolicismo lhe abria; por isso ela olha pelas claraboias,
sejam quais forem.
Henry
de Pène
Nosso excelente amigo, Sr. Henry de Pène, certamente
nos permitirá uma observação. Ignoramos quando o Sr. Jobert fez essa imortal
descoberta e qual o dia memorável em que a comunicou ao Instituto. O que
sabemos é que essa original explicação já havia sido dada por outros. Em 1854,
o Dr. Rayer, um célebre clínico, que naquela época não deu provas de grande perspicácia,
também apresentou, ao Instituto, um alemão, cuja habilidade, segundo ele, dava
a chave de todos os knokings e rappings dos dois mundos. Tratava-se, como hoje,
do deslocamento de um dos tendões musculares da perna, chamado o grande
perônio. Sua demonstração foi feita numa sessão e a Academia expressou o seu
reconhecimento por intermédio dessa interessante comunicação. Alguns dias
depois, um professor substituto da Faculdade de Medicina consignou o fato no
jornal “Constitutionnel” e teve a coragem de acrescentar que “finalmente os
cientistas se haviam pronunciado e o mistério estava esclarecido”. Essa declaração
não impediu que o mistério persistisse e aumentasse, a despeito da Ciência que,
recusando-se a fazer experiências, contentava-se em atacá-lo por meio de
explicações ridículas e burlescas, como estas a que acabamos de nos referir. Em
respeito ao Sr. Jobert (de Lamballe), apraz-nos pensar que lhe atribuíram uma
experiência que absolutamente não lhe pertence. Algum jornal, ansioso por
novidades, terá encontrado nalgum recanto esquecido de sua pasta a antiga
comunicação do Sr. Rayer e a terá ressuscitado, publicando-a sob o seu
patrocínio, a fim de variar um pouco. Mutato
nomine, de te fabula narratur. É lastimável, sem dúvida, mas ainda é melhor
do que se o jornal tivesse dito a verdade.
A.
Escande
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