terça-feira, 16 de junho de 2020

O MÚSCULO ESTALANTE[1]



Allan Kardec

Os adversários do Espiritismo acabam de fazer uma descoberta que deve contrariar sobremaneira os Espíritos batedores; para eles é um desses golpes de clava do qual dificilmente se restabelecerão. Com efeito, que devem pensar esses pobres Espíritos da terrível cutilada com que o Sr. Schiff acaba de atingi-los, e depois o Sr. Jobert, de Lamballe e, por fim, o Sr. Velpeau? Parece-me vê-los bastante confusos, argumentando mais ou menos assim:

Pois bem, meu caro, estamos em maus lençóis! Estamos perdidos! Não havíamos contado com a anatomia, que descobriu as nossas artimanhas. Decididamente, não há condições de se viver num país onde há gente que enxerga com tanta clareza.

– Vamos, senhores patetas, que acreditastes em todas essas histórias inverossímeis; impostores que nos quisestes fazer acreditar na existência de seres que não vemos; ignorantes que imaginais possa existir algo que escape ao nosso escalpelo, inclusive a vossa alma; e todos vós, escritores espíritas ou espiritualistas, mais ou menos espirituosos, inclinai-vos e reconhecei que não passais de tolos, de charlatães e até mesmo de velhacos e de imbecis: esses senhores vos deixam a escolha, porque aqui está a luz, a verdade pura.

 Academia das Ciências [Sessão de 18 de abril de 1859] – DA CONTRAÇÃO RÍTMICA MUSCULAR INVOLUNTÁRIA. – O Sr. Jobert (de Lamballe) comunica um fato curioso de contração rítmica involuntária do pequeno perônio lateral direito, que confirma a opinião do Sr. Schiff relativamente ao fenômeno oculto dos Espíritos batedores.
A Senhorita X, de quatorze anos, forte, bem constituída, desde os seis anos é acometida de movimentos involuntários regulares do músculo pequeno perônio lateral direito e de batidas que são ouvidas por detrás do maléolo externo direito, com a regularidade do pulso. Apareceram pela primeira vez na perna direita, durante a noite, acompanhados de dor muito forte. Pouco tempo depois, o pequeno perônio lateral esquerdo foi atingido por uma afecção da mesma natureza, embora de menor intensidade.
O efeito desses batimentos é o de causar dor, produzir claudicações e, até mesmo, provocar quedas. A jovem doente declarou-nos que a extensão do pé e a compressão exercida sobre certos pontos do pé e da perna chegam a detê-los, não obstante continue sentindo dores e fadiga no membro.
Quando essa interessante criatura se nos apresentou, eis em que estado a encontramos: ao nível do maléolo externo direito, em direção ao bordo superior dessa saliência óssea, era fácil constatar um batimento regular, acompanhado de intumescência passageira e de um levantamento das partes moles da região, os quais eram seguidos por um ruído seco que se sucedia a cada contração muscular. Esse ruído era ouvido no leito, fora dele e a uma distância assaz considerável do local onde a jovem repousava. Notável pela sua regularidade e pelo seu estrépito, tal ruído a acompanhava por toda parte. Aplicando a orelha à perna, ao pé ou ao maléolo, distinguia-se um choque incômodo que atingia todo o trajeto percorrido pelo músculo, absolutamente como se fora um golpe que se transmitisse de uma a outra extremidade de uma viga. Por vezes o ruído se assemelhava a um atrito, a uma raspadela, desde que as contrações fossem menos intensas. Esses mesmos fenômenos sempre se reproduziam, estivesse a doente em pé, sentada ou deitada, independentemente da hora do dia ou da noite em que a examinávamos.
Se estudarmos os mecanismos dos batimentos produzidos, e se, para maior clareza, dividirmos cada batimento em dois tempos, veremos que:
“No primeiro tempo o tendão do pequeno perônio lateral se desloca, ao sair de sua goteira, levantando necessariamente o grande perônio lateral e a pele; No segundo tempo, realizado o fenômeno de contração, seu tendão se relaxa e se movimenta na goteira, produzindo, contra ela, o ruído seco e sonoro de que acabamos de falar”.
Repetia-se, por assim dizer, de segundo em segundo, e cada vez o pequeno artelho sentia um abalo e a pele que recobre o quinto metatarso era levantada pelo tendão. Cessava quando o pé era fortemente estendido. Cessava, ainda, quando se exercia pressão sobre o músculo ou a bainha dos perônios.
Nestes últimos anos os jornais franceses e estrangeiros têm falado muito de ruídos semelhantes a golpes de martelo, ora se sucedendo com regularidade, ora afetando um ritmo particular, que se produziam em volta de certas pessoas deitadas em seu leito.
Os charlatães se apoderaram desses fenômenos singulares, cuja realidade, aliás, é atestada por testemunhas dignas de fé. Tentaram relacioná-los à intervenção de uma causa sobrenatural, deles se servindo para explorar a credulidade pública.
 A observação da senhorita X... mostra como os tendões deslocados, no momento em que retornam à goteira óssea, podem produzir batimentos, sob a influência da contração muscular, anunciando, assim, para certas pessoas, a presença de Espíritos batedores.
Exercitando-se, qualquer pessoa pode adquirir a faculdade de produzir, à vontade, semelhantes deslocamentos de tendões e batimentos secos que se ouvem a distância.
Repelindo qualquer ideia de intervenção sobrenatural e notando que esses batimentos e ruídos estranhos se passavam sempre ao pé do leito dos indivíduos agitados pelos Espíritos, o Sr. Schiff se interrogou se a sede desses ruídos não estaria neles próprios, em vez de se situarem exteriormente. Seus conhecimentos anatômicos levaram-no a pensar que bem podia ser na perna, na região peronial, onde se encontra uma superfície óssea, tendões e uma bainha comum.
Estando bem sedimentada em seu espírito essa maneira de ver, fez ele experiências e tentativas em si mesmo, que lhe não permitiram duvidar que o ruído tinha sua sede por detrás do maléolo externo e nas bainhas dos tendões do perônio.
Logo o Sr. Schiff foi capaz de executar ruídos voluntários, regulares, harmoniosos e, perante um grande número de pessoas, cerca de cinquenta, pôde imitar os prodígios dos Espíritos batedores, com ou sem sapatos, de pé ou deitado.
Concluiu o Sr. Schiff que todos esses ruídos se originam no tendão do grande perônio, quando passa na goteira peronial, acrescentando que eles coexistem com um adelgaçamento ou ausência da bainha comum no grande e no pequeno perônio. Quanto a nós, admitindo inicialmente que todos esses batimentos fossem produzidos pela queda de um tendão contra a superfície óssea peronial, pensamos, entretanto, não haver necessidade de uma anomalia da bainha para os percebermos. Basta a contração do músculo, o deslocamento do tendão e seu retorno à goteira para que o ruído aconteça. Além disso, somente o pequeno perônio é o agente do ruído em questão. Com efeito, ele ostenta uma direção mais reta que o grande perônio, que sofre vários desvios em seu trajeto; situa-se profundamente na goteira; recobre completamente a goteira óssea, sendo natural concluirmos que o ruído é produzido pelo choque desse tendão contra as partes sólidas da goteira; apresenta fibras musculares até a entrada do tendão na goteira comum, ao passo que se dá o contrário com o grande perônio.
O ruído é variável em sua intensidade e, com efeito, nele podemos distinguir diversos matizes. É assim que, desde o barulho estridente, que se percebe a distância, encontramos variedades de ruídos, de atritos, de serra etc.
Utilizando o método subcutâneo fizemos incisões repetidas através do corpo do pequeno perônio lateral direito e no corpo do mesmo músculo do lado esquerdo de nossa doente e mantivemos os membros imobilizados com o auxílio de um aparelho. Reunidas as partes, as funções dos dois membros foram restabelecidas sem qualquer traço dessa singular e rara afecção.
Sr. Velpeau – Os ruídos de que acaba de tratar o Sr. Jobert em seu interessante comunicado parecem ligados a uma questão muita vasta. Com efeito, observam-se esses mesmos ruídos em diversas regiões. O quadril, a espádua, a face interna do pé frequentemente se lhe tornam a sede. Entre outros vi uma dama que, auxiliada por certos movimentos de rotação da coxa, produzia uma espécie de música assaz manifesta para ser ouvida de um a outro lado do salão. O tendão da porção longa do bíceps braquial a produz facilmente ao sair de sua bainha, quando os feixes fibrosos que o retêm naturalmente se relaxam ou se rompem. O mesmo acontece com o músculo posterior da perna ou com o músculo flexor do grande artelho, por trás do maléolo interno. Tais ruídos se explicam, como bem o compreenderam os Srs. Schiff e Jobert, pela fricção ou pelos sobressaltos dos tendões nas ranhuras ou contra os bordos das superfícies sinoviais. Consequentemente, são possíveis numa infinidade de regiões ou na vizinhança de uma porção de órgãos. Ora claros e bem audíveis, ora surdos ou obscuros, por vezes úmidos, outras vezes secos, variam, aliás, extremamente de intensidade.
Esperemos que o exemplo dado a respeito pelos Srs. Schiff e Jobert levem os fisiologistas a se ocuparem seriamente com esses vários ruídos e que um dia eles deem a explicação racional de fenômenos incompreendidos ou até aqui atribuídos a causas ocultas e sobrenaturais.
Sr. Jules Cloquet – Em apoio às observações do Sr. Velpeau sobre os ruídos anormais que os tendões podem produzir nas diversas regiões do corpo, cita o exemplo de uma moça de dezesseis a dezoito anos que lhe foi apresentada no Hospital São Luís, numa época em que os senhores Velpeau e Jobert eram vinculados a esse mesmo estabelecimento. O pai da jovem, que se intitulava pai de um fenômeno, espécie de saltimbanco, esperava tirar partido da filha, exibindo-a publicamente. Anunciou que ela tinha no ventre um movimento de pêndulo. A moça estava perfeitamente conformada. Por um leve movimento de rotação na região lombar da coluna vertebral, ela produzia estalidos muito fortes, mais ou menos regulares, segundo o ritmo de ligeiros movimentos que imprimia à parte inferior do tronco. Esses ruídos anormais podiam ser ouvidos perfeitamente a mais de vinte e cinco pés de distância e assemelhavam-se ao ruído das antigas máquinas de assar carne; eram interrompidos à vontade da moça e pareciam ter sua sede nos músculos da região lombo-dorsal da coluna vertebral.

Extraído da Abeille médicale, julgamo-nos no dever de transcrever este artigo integralmente para a edificação de nossos leitores, a fim de não sermos acusados de querer esquivar-nos a certos argumentos que ele contém. Com algumas variantes, foi reproduzido em diferentes jornais, acompanhados dos costumeiros epítetos. Não temos o hábito de ressaltar as grosserias; deixamo-las de lado, porque o nosso bom-senso nos diz que nada se prova com tolices e injúrias, por mais sábio que se seja. Se o artigo em questão se tivesse limitado a banalidades, que nem sempre são marcadas pelo cunho da urbanidade e da boa educação, não o teríamos mencionado. Mas ele trata a questão do ponto de vista científico; sobrecarrega-nos com demonstrações, com as quais pretende pulverizar-nos; vejamos, pois, se de fato estamos mortos pelo decreto da Academia das Ciências, ou se temos alguma chance de viver, como o pobre louco Fulton, cujo sistema foi declarado um sonho vazio e impraticável pelo Instituto, o que apenas privou a França da iniciativa do navio a vapor; e quem sabe as consequências que tal poderio, nas mãos de Napoleão I, poderia ter acarretado sobre os acontecimentos ulteriores!
Faremos apenas um breve reparo sobre a qualificação de charlatães, atribuída aos partidários das ideias novas. Ela nos parece um tanto arriscada, quando se aplica a milhões de criaturas que delas não tiram qualquer proveito e quando alcança os planos mais elevados da escala social. Esquecem que o Espiritismo fez, em alguns anos, incríveis progressos em todas as partes do mundo; que não se propaga entre os ignorantes, mas no seio das classes esclarecidas; que conta em suas fileiras um grande número de médicos, magistrados, eclesiásticos, artistas, homens de letras e altos funcionários, pessoas às quais geralmente se reconhece algumas luzes e um mínimo de bom-senso. Ora, confundi-los no mesmo anátema e remetê-los sem qualquer cerimônia para os hospícios é agir com excessiva prepotência.
Mas, direis, trata-se de criaturas de boa-fé, vítimas de uma ilusão; não negamos o efeito, apenas contestamos a causa que lhe atribuís. A Ciência acaba de descobrir a verdadeira causa, tornando-a conhecida e, por isso mesmo, fazendo desabar todo esse altar de fantasias místicas de um mundo invisível, que pode seduzir as imaginações exaltadas, embora sinceras.
Não nos vangloriamos de sabedoria, nem muito menos ousaríamos colocar-nos no mesmo nível de nossos honrados adversários. Diremos tão-só que nossos estudos pessoais de anatomia e de ciências físicas e naturais, que tivemos a honra de professar, nos permitem compreender a sua teoria, e que de modo algum nos sentimos aturdidos por essa avalancha de palavreado técnico. Os fenômenos de que falam são-nos perfeitamente conhecidos. Em nossas observações sobre os efeitos atribuídos aos seres invisíveis tivemos o cuidado de não negligenciar uma causa tão patente de desprezo. Quando um fato se apresenta, não nos contentamos com uma única observação; queremos vê-lo sob todos os ângulos, sob todas as faces e, antes de aceitar uma teoria, imaginamos se ela corresponde a todas as circunstâncias, se nenhum fato desconhecido virá contradizê-la; numa palavra, se resolve todas as questões. A verdade tem o seu preço. Admitis bem, senhores, que esta maneira de proceder é bastante lógica. Pois bem! Malgrado todo o respeito devido ao vosso saber, apresentam-se algumas dificuldades na aplicação de vosso sistema àquilo que se costuma chamar de Espíritos batedores. Em primeiro lugar, é no mínimo singular que essa faculdade, até o momento excepcional e vista como um caso patológico, qualificada pelo Sr. Jobert (de Lamballe) de rara e singular afecção, de repente se tenha tornado tão comum. É verdade que o Sr. de Lamballe diz que todo homem pode adquiri-la pelo exercício; mas como também afirmou que ela se faz acompanhar de dor e fadiga, o que é bastante natural, é de convir que precisamos ter uma vontade de mistificar muito forte para fazer nosso músculo estalar durante duas ou três horas seguidas, quando isso a nada leva, e pelo só prazer de divertir as pessoas.
Mas falemos seriamente. Isto é mais grave, porque é ciência. Esses senhores, que descobriram esta maravilhosa propriedade do grande perônio, não desconfiam absolutamente de tudo quanto pode fazer esse músculo. Ora, eis aí um belo problema a resolver. Os tendões deslocados não batem somente nas goteiras ósseas; por um efeito verdadeiramente bizarro, também vão bater nas portas, paredes e tetos, e isso à vontade, exatamente nos locais designados. Mas se quereis algo ainda mais forte, vede o quanto a Ciência estava longe de suspeitar de todas as virtudes desse músculo estalador: ele tem o poder de levantar uma mesa sem a tocar, de fazê-la andar com os pés, de caminhar na sala, de manter-se no espaço sem ponto de apoio; de abri-la e de fechá-la e, julgai com que força! De fazê-la quebrar-se ao tombar no chão. Pensais que se trata de uma mesa frágil e leve como uma pena, que a gente levanta com um sopro? Acordai, senhores, trata-se de mesas pesadas e maciças, de cinquenta a sessenta quilos, que obedecem a moçoilas e crianças. Mas, dirá o Sr. Schiff, nunca vi esses prodígios.
Isso é fácil de compreender: ele não quis ver senão as pernas.
Em suas observações terá o Sr. Schiff considerado a necessária independência das ideias? Estava imune de qualquer prevenção? Temos o direito de duvidar; e não somos nós que o dizemos, é o Sr. Jobert. Segundo ele, o Sr. Schiff perguntou, ao falar de médiuns, se a sede desses ruídos não estaria de preferência neles, e não fora deles; seus conhecimentos anatômicos o levaram a pensar que bem podia ser na perna. Estando esse modo de ver bem sedimentado em seu espírito etc. Assim, conforme a confissão do Sr. Jobert, o Sr. Schiff tomou por ponto de partida não os fatos, mas sua própria ideia, sua ideia preconcebida, bem sedimentada. Daí as pesquisas num sentido exclusivo e, consequentemente, uma teoria exclusiva que explica perfeitamente o fato que ele viu, mas não aqueles que não viu. E por que não os viu? Porque em seu pensamento só havia um ponto de partida verdadeiro, e uma explicação verdadeira. Partindo daí, todo o resto deveria ser falso e não merecia exame. Disso resultou que, em sua ânsia de destruir os médiuns, errou o alvo.
Senhores, imaginais conhecer todas as virtudes do grande perônio porque o surpreendestes a tocar violão em sua bainha? Ora, ora! Eis aqui algo muito diferente a registrar nos anais da Anatomia. Pensastes que o cérebro fosse a sede do pensamento.
Errado! Pode-se pensar pelo tornozelo. As batidas dão provas de inteligência; portanto, venham esses golpes exclusivamente do perônio, venham do grande perônio, conforme o Sr. Schiff, venham do pequeno, conforme o Sr. Jobert – seria preciso que eles se entendessem a respeito – é porque o perônio é inteligente. Isto nada tem de surpreendente. Fazendo estalar o seu músculo à vontade, o médium executará o que quiserdes: imitará a serra, o martelo, baterá a chamada e o ritmo de uma ária pedida. Que seja! Mas quando o ruído responde a alguma coisa que o médium ignora completamente; quando revela pequenos segredos que somente vós conheceis, segredos que desejaríamos esconder de nossa própria sombra, é preciso convir que o pensamento vem de outra parte que não o cérebro. De onde virá, então? Meu Deus do céu!
Do grande perônio. E isso não é tudo: esse grande perônio também é poeta, desde que pode compor versos encantadores, não obstante o médium jamais os tenha feito em sua vida; ele é poliglota, porque dita coisas verdadeiramente muito sensatas, em línguas de que o médium não conhece uma só palavra; ele é músico... Nós bem o sabemos, pois o Sr. Schiff fez o seu executar sons harmoniosos, com ou sem sapatos, perante cinquenta pessoas.
Sim; mas também compõe. Vós, Sr. Dorgeval, que ultimamente nos destes uma encantadora sonata, acreditais realmente ter sido o Espírito Mozart que vo-la ditou? Acordai: era o vosso grande perônio que tocava piano. Na verdade, senhores médiuns, não desconfiáveis possuir tanto espírito em vossos calcanhares. Glória, pois, aos que fizeram essa descoberta; que seus nomes sejam inscritos em letras maiúsculas para a edificação da posteridade e honra de sua memória!
Dirão que gracejamos com coisas sérias. Mas os gracejos não são raciocínios, do mesmo modo que também não o são as tolices e as grosserias. Confessando nossa ignorância junto a esses senhores, aceitamos a sua sábia demonstração e a tomamos muito a sério. Pensávamos que certos fenômenos eram produzidos por seres invisíveis que se deram o nome de Espíritos; é possível que tenhamos nos enganado. Como procuramos a verdade, não alimentamos a ridícula pretensão de insistir numa ideia que, de maneira tão peremptória, nos demonstram ser falsa. Desde que o Sr. Jobert, por meio de uma incisão subcutânea, solapou os Espíritos, é porque já não existem Espíritos. Considerando que, segundo ele, todos os ruídos vêm do perônio, é preciso acreditá-lo e admiti-lo em todas as suas consequências. Assim, quando as batidas são dadas na parede ou no teto, ou o perônio lhes corresponde ou a parede tem um perônio; quando esses golpes ditam versos através de uma mesa que bate o pé, de duas coisas uma: ou a mesa é poetisa ou o perônio é poeta. Isso nos parece lógico. Vamos ainda mais longe: certo dia em que fazia experiências espíritas, um oficial de nosso conhecimento recebeu, por mão invisível, um par de bofetadas tão bem aplicadas que ainda as sentia duas horas depois. Ora, como provocar uma reparação? Se semelhante fato acontecesse com o Sr. Jobert, ele não se inquietaria: apenas diria ter sido agredido pelo grande perônio.
Eis o que lemos a respeito no jornal Le Monde, de 1º de maio de 1859:

A Academia de Medicina continua a cruzada dos espíritos positivos contra o maravilhoso de qualquer gênero. Depois de haver, com justa razão, mas talvez um tanto desajeitadamente, fulminado o famoso doutor negro, pela voz do Sr. Velpeau, eis que acaba de ouvir o Sr. Jobert (de Lamballe) declarar, em pleno Instituto, o segredo daquilo que ele chama a grande comédia dos Espíritos batedores, que foi representada com tanto sucesso nos dois hemisférios.
Segundo o célebre cirurgião, todo toc toc, todo pan pan que faz estremecer as pessoas que os escutam; todos esses ruídos singulares, esses golpes secos, vibrados sucessivamente e como que cadenciados, precursores da chegada, sinais evidentes da presença dos habitantes do outro mundo, resultam simplesmente de um movimento imprimido a um músculo, a um nervo, a um tendão! Trata-se de uma bizarrice da Natureza, habilmente explorada para produzir, sem que se possa constatar, essa música misteriosa que encantou e seduziu tanta gente.
A sede da orquestra é na perna. É o tendão do perônio, tocando no interior da bainha, que produz todos esses ruídos que são ouvidos sob as mesas ou a distância, ao bel prazer do prestidigitador.
De minha parte duvido muito que o Sr. Jobert tenha posto a mão, como imagina, no segredo daquilo que ele mesmo chama “uma comédia”, parecendo-me que os artigos publicados nesse mesmo jornal, por nosso confrade Sr. Escande, sobre os mistérios do mundo oculto, apresentam a questão com uma amplidão bem diferente, sincera e filosófica, no bom sentido da palavra.
Entretanto, se os charlatães de todos os matizes incomodam pelo barulho que fazem, temos de convir que esses sábios senhores por vezes não o são menos, com a esponja que pretendem aplicar sobre tudo quanto escape ao brilho dos candelabros oficiais.
Não compreendem que a sede do maravilhoso, que devora nossa época, deve-se justamente aos excessos do positivismo para onde certos espíritos quiseram arrastá-la. A alma humana tem necessidade de crer, de admirar e de contemplar o infinito. Trabalharam para fechar as janelas que o catolicismo lhe abria; por isso ela olha pelas claraboias, sejam quais forem.
Henry de Pène

 Nosso excelente amigo, Sr. Henry de Pène, certamente nos permitirá uma observação. Ignoramos quando o Sr. Jobert fez essa imortal descoberta e qual o dia memorável em que a comunicou ao Instituto. O que sabemos é que essa original explicação já havia sido dada por outros. Em 1854, o Dr. Rayer, um célebre clínico, que naquela época não deu provas de grande perspicácia, também apresentou, ao Instituto, um alemão, cuja habilidade, segundo ele, dava a chave de todos os knokings e rappings dos dois mundos. Tratava-se, como hoje, do deslocamento de um dos tendões musculares da perna, chamado o grande perônio. Sua demonstração foi feita numa sessão e a Academia expressou o seu reconhecimento por intermédio dessa interessante comunicação. Alguns dias depois, um professor substituto da Faculdade de Medicina consignou o fato no jornal “Constitutionnel” e teve a coragem de acrescentar que “finalmente os cientistas se haviam pronunciado e o mistério estava esclarecido”. Essa declaração não impediu que o mistério persistisse e aumentasse, a despeito da Ciência que, recusando-se a fazer experiências, contentava-se em atacá-lo por meio de explicações ridículas e burlescas, como estas a que acabamos de nos referir. Em respeito ao Sr. Jobert (de Lamballe), apraz-nos pensar que lhe atribuíram uma experiência que absolutamente não lhe pertence. Algum jornal, ansioso por novidades, terá encontrado nalgum recanto esquecido de sua pasta a antiga comunicação do Sr. Rayer e a terá ressuscitado, publicando-a sob o seu patrocínio, a fim de variar um pouco. Mutato nomine, de te fabula narratur. É lastimável, sem dúvida, mas ainda é melhor do que se o jornal tivesse dito a verdade.
A. Escande




[1] Revista Espírita – Junho/1859 – Allan Kardec

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