Allan Kardec
Deixado à porta, o magnetismo
entrou pela janela, mediante um disfarce e um outro nome. Em vez de dizer: Sou
o magnetismo, o que provavelmente não lhe teria valido uma acolhida favorável,
disse: Chamo-me hipnotismo (do grego hypnos, sono). Graças a esse
salvo-conduto conseguiu entrar após vinte anos de paciência. Mas não perdeu por
esperar, pois soube fazer-se introduzir por uma das maiores celebridades.
Evitou cuidadosamente apresentar-se com seu cortejo de passes, de sonambulismo,
de visão a distância, de êxtases, que o teriam traído.
Disse simplesmente: Sois bons e humanos; vosso coração sangra ao
ver sofrer os vossos doentes; procurais um meio de suavizar a dor do paciente,
cortado pelo vosso escalpelo, mas o que empregais às vezes é muito perigoso. Eu
vos trago um mais simples e que, em todo caso, não tem inconvenientes.
Estava bem seguro de ser ouvido, falando em nome da Humanidade. E acrescentou, matreiro:
Sou da família, pois devo a vida a um dos
vossos.
Pensava, não sem alguma razão,
que essa origem não o prejudicaria.
Se vivêssemos ao tempo da
brilhante e poética Grécia, diríamos:
O magnetismo, filho
da Natureza e de um simples mortal, foi proscrito do Olimpo porque, ao fazer
concorrência com Esculápio, feriu os interesses deste último, louvando-se de
poder curar sem o seu concurso. Errou muito tempo pela Terra, ensinando aos
homens a arte de curar por meios novos; desvendou ao vulgo uma porção de
maravilhas que, até então, tinham sido misteriosamente escondidas nos templos;
mas aqueles cujos segredos havia revelado, desmascarando-lhe a charlatanice, o perseguiram
a pedradas, de tal sorte que foi, ao mesmo tempo, banido pelos deuses e
maltratado pelos homens. Nem por isso deixou de espalhar seus benefícios,
aliviando a Humanidade, certo de que um dia a sua inocência seria reconhecida e
lhe fariam justiça. Teve um filho, cujo nascimento escondeu cuidadosamente, temeroso
de lhe atrair perseguições; ele o chamou hipnotismo. Este filho partilhou de
seu exílio durante muito tempo, aproveitando-o para instruir-se. Quando o
julgou suficientemente formado, disse-lhe:
Vai-te apresentar no
Olimpo; abstém-te de dizer que és meu filho; teu nome e um disfarce facilitarão
o teu acesso; Esculápio te apresentará.
– Como, meu pai!
Esculápio, vosso inimigo mais encarniçado! Logo ele que vos proscreveu!
– Ele mesmo te estenderá
a mão.
– Mas se me
reconhecer, expulsar-me-á.
– Ora essa! Se te expulsar,
virás junto a mim e continuaremos nossa obra beneficente entre os homens, à
espera de melhores dias. Mas fica tranquilo, tenho muita esperança. Esculápio
não é mau; quer, antes de tudo, o progresso da Ciência: caso contrário não
seria digno de ser o deus da Medicina. Aliás, talvez eu tenha cometido algumas faltas
para com ele; ofendido por me ver denegrir, eu me exaltei e o ataquei sem
consideração. Prodigalizei-lhe injúrias, ridicularizei-o, vilipendiei-o,
chamei-o de ignorante. Ora, eis um meio deplorável de tratar os homens e os
deuses; e seu amor-próprio ferido irritou-se um instante contra mim. Não faças
como eu, meu filho; sê mais prudente e, sobretudo, mais atencioso. Se os outros
não o forem para contigo, o erro será deles, e a razão, tua. Vai, filho meu, e
lembra-te de que nada se obtém de alguém pela força.
– Assim falou o pai.
O hipnotismo partiu timidamente
para o Olimpo; batia-lhe forte o coração quando se apresentou à soleira da
porta sagrada. Mas, ó surpresa! O próprio Esculápio lhe estende a mão e o
introduz.
Eis, pois, o magnetismo no
lugar. O que fará? Oh! Não acrediteis na vitória definitiva; ainda não nos
encontramos sequer nos preliminares da paz. É uma primeira barreira derrubada:
eis tudo. Esse passo é importante, sem dúvida, mas não penseis que seus
inimigos vão confessar-se vencidos. O próprio Esculápio, o grande Esculápio,
que o reconheceu por seus traços de família, abraçou de tal forma sua defesa
que seriam capazes de enviá-lo ao hospício. Vão dizer que é... Qualquer coisa...
Mas que, seguramente, não é magnetismo. Pois seja! Não sofismamos com as
palavras: será tudo o que quiserem. Mas, enquanto se espera, é um fato que terá
consequências. Ora, eis essas consequências.
Inicialmente vão ocupar-se
somente do ponto de vista anestésico (do grego aisthesis, sensibilidade e a,
privativo, ou seja, privação geral ou parcial da faculdade de sentir) e isto em
razão da predominância das ideias materialistas, pois ainda há tanta gente que,
sem dúvida por modéstia, teima em se reduzir ao papel de manivela de espeto
que, ao parar de funcionar, é atirada ao ferro velho, sem deixar vestígios! Assim,
vão examinar o fato de todas as maneiras, ainda que por mera curiosidade. Vão
estudar a ação das diferentes substâncias para produzir o fenômeno da
catalepsia. Depois, um belo dia, reconhecerão que basta pôr o dedo. Mas não é
tudo. Observando o fenômeno da catalepsia, outros surgirão espontaneamente. Já
foi notada a liberdade de pensamento durante a suspensão das faculdades
orgânicas; assim, o pensamento independe
dos órgãos. Há, pois, no homem algo mais além da matéria. Ver-se-á a de
faculdades estranhas: a vista adquirir uma amplitude insólita, transpondo os
limites dos sentidos; todas as percepções modificadas; numa palavra, é um vasto
campo para a observação e não faltarão observadores. O santuário está aberto, e
esperamos que dele jorre a luz, a menos que o celeste areópago[2]
não deixe a honra a ninguém senão a ele mesmo.
Nossos leitores haverão de
apreciar bastante o notável artigo que o Sr. Victor Meunier, redator do Ami des Sciences, publicou sobre este
interessante assunto, na revista científica hebdomadária do Siècle, de 16 de dezembro de 1859:
O magnetismo animal,
levado à Academia pelo Sr. Broca, apresentado à ilustre associação pelo Sr.
Velpeau, experimentado pelos senhores Follin, Verneuil, Faure, Trousseau, Denonvilliers,
Nélaton, Azam, Ch. Robin etc., todos cirurgiões dos hospitais, é a grande
novidade do dia.
As descobertas, como
os livros, têm seu destino. A de que vamos tratar não é nova. Data de uns vinte
anos, e nem na Inglaterra, onde nasceu, nem na França, onde, no momento, não se
ocupa de outra coisa, a publicidade lhe faltou. Um médico escocês, o Dr. Braid,
a descobriu e lhe consagrou todo um livro (Neurypnology
or the rationale of nervous sleep, considered in relation with animal magnetism).
O Dr. Carpenter, célebre médico inglês, analisou cuidadosamente a descoberta do
Dr. Braid no artigo sleep (sono) da
Enciclopédia de Anatomia e Fisiologia de Tood (Cyclopedia of anatomy and phisiology); um ilustre sábio francês, o
Sr. Littré, reproduziu a análise do Dr. Carpenter na segunda edição do Manual de Fisiologia de J. Mueller.
Enfim, nós mesmos consagramos um de nossos folhetins da Presse (7 de julho de 1852) ao hipnotismo
(é o nome dado pelo Dr. Braid ao conjunto de dados de que se trata). A mais
recente das publicações relativas a esse assunto data, pois, de sete anos; e
eis que, no momento em que o julgavam esquecido, ele adquire esta imensa
repercussão.
Há no hipnotismo
duas coisas: um conjunto de fenômenos nervosos, e o processo por meio do qual
são produzidos.
Esse processo,
empregado outrora, salvo engano, pelo abade Faria, é de grande utilidade.
Consiste em manter um objeto brilhante diante dos olhos da pessoa com a qual se
experimenta, a pequena distância da base do nariz, de sorte que não possa
olhá-lo senão envesgando os olhos para dentro; ela deve fixar os olhos sobre
ele. A princípio as pupilas se contraem, depois se dilatam bastante e, em
poucos instantes, produz-se o estado cataléptico. Levantando os membros do
paciente, estes conservam a posição que lhes dermos. Este é apenas um dos
fenômenos produzidos; dos outros falaremos oportunamente.
O Sr. Azam,
professor substituto de Clínica Cirúrgica da Escola de Medicina de Bordeaux,
tendo repetido com sucesso as experiências do Dr. Braid, trocou opiniões com o
Dr. Broca, que pensava que as pessoas hipnotizadas talvez fossem insensíveis à
dor das intervenções cirúrgicas. A
carta que acaba de dirigir à Academia das Ciências é o resumo de suas
experiências a respeito. Antes de tudo, porém, devia assegurar-se da realidade
do hipnotismo. E o conseguiu sem dificuldades.
Visitando uma
senhora de cerca de quarenta anos, algo histérica, e que se mantinha acamada
por ligeira indisposição, o Dr. Broca fingia querer examinar os olhos da doente
e lhe pedia que fixasse detidamente um pequeno frasco dourado que ele segurava
a mais ou menos quinze centímetros de distância da base do nariz daquela senhora.
Ao cabo de três minutos os olhos tornaram-se um pouco vermelhos, os traços
imóveis, as respostas lentas e difíceis, mas perfeitamente racionais. O Dr.
Broca levantou o braço da enferma e este se manteve na posição em que foi
deixado; submeteu os dedos às mais extremas situações e eles as conservaram;
beliscou a pele em vários lugares, com certa força, mas a paciente nada parecia
sentir. Catalepsia, insensibilidade! O Dr. Broca não levou adiante a
experiência: esta lhe havia ensinado o que queria saber. Uma fricção sobre os
olhos, uma insuflação de ar frio na fronte trouxeram a doente ao estado normal.
Não guardava a menor lembrança do que acabara de passar-se.
Restava saber se a
insensibilidade hipnótica resistiria à prova das intervenções cirúrgicas.
Entre os internos do
Hospital Necker, no serviço do Dr. Follin, achava-se uma pobre mulher de 24
anos, vitimada por extensa queimadura nas costas e nos dois membros direitos e
por um enorme abscesso, extremamente doloroso. Os menores movimentos lhe eram
um suplício. Esgotada pelo sofrimento e, ademais, muito pusilânime, essa
infeliz pensava com terror na operação que se fazia necessária. Foi nela que,
de acordo com o Dr. Follin, o Dr. Broca resolveu completar a prova do
hipnotismo.
Colocaram-na sobre
um leito em frente à janela, prevenindo-a de que iam fazê-la dormir. Ao cabo de
dois minutos suas pupilas se dilatam; levantado quase verticalmente acima do leito,
seu braço esquerdo fica imóvel. Ao quarto minuto suas respostas são lentas e
quase penosas, mas perfeitamente sensatas. Quinto minuto: O Dr. Follin espeta a
pele do braço esquerdo e a doente nem sequer se mexe; nova espetadela mais
profunda, que produz sangramento, e a mesma impassibilidade. Erguem o braço direito,
que fica no ar. Então as cobertas são levantadas e afastados os membros
inferiores para pôr à mostra a sede do abscesso. A doente não esboça reação e
disse com tranquilidade que, sem dúvida irão prejudicá-la. Ao ser aberto o
abscesso, um fraco grito foi o único sinal de reação de sua parte, e durou
menos de um segundo. Nem o menor tremor nos músculos da face ou dos membros,
nem um só estremecimento nos braços, sempre elevados verticalmente acima do
leito. Um pouco injetados, os olhos estavam largamente abertos; o rosto tinha a
imobilidade de uma máscara...
Levantado, o pé
esquerdo mantém-se suspenso. Tiram o corpo brilhante (uma luneta): a catalepsia
persiste. Pela terceira vez picam o braço esquerdo, o sangue goteja e a operada
nada sente. Há treze minutos que o braço guarda a posição que lhe foi dada.
Enfim, uma fricção
nos olhos, uma insuflação de ar fresco despertam a jovem senhora quase
subitamente; relaxados, os braços e a perna esquerda caem de repente na cama.
Ela esfrega os olhos, readquire a consciência, de nada se lembra e
surpreende-se de que a tenham operado. A experiência havia durado dezoito a vinte
minutos; o período de anestesia, de doze a quinze.
Tais são, em resumo,
os fatos essenciais comunicados pelo Sr. Broca à Academia das Ciências. Já não
são mais isolados. Grande número de cirurgiões de nossos hospitais teve a honra
de os repetir, e o fizeram com sucesso. O objetivo do Dr. Broca e de seus
distintos colegas era e deveria ser cirúrgico. Esperemos tenha o hipnotismo,
como meio de provocar a insensibilidade, todas as vantagens dos agentes
anestésicos, sem deles guardar os inconvenientes. Mas a Medicina não é de nossa
alçada e, para não sair de suas atribuições, nossa Revista não deve considerar
o fato senão sob o ponto de vista fisiológico.
Depois de haver
reconhecido a veracidade do Dr. Braid sobre o ponto essencial, sem dúvida
ter-se-á que verificar tudo que respeita a este estado singular, ao qual ele dá
o nome de hipnotismo. Os fenômenos que ele lhe atribui podem ser classificados
da seguinte maneira:
Exaltação da sensibilidade – O olfato é levado a um grau de acuidade
que no mínimo se iguala ao observado nos animais de melhor faro. A audição
torna-se igualmente muito penetrante. O tato adquire, sobretudo em relação à
temperatura, uma incrível delicadeza.
Sentimentos sugeridos – Ponde o rosto, o corpo ou os membros do
paciente na atitude que convém à expressão de um sentimento particular e logo o
estado mental correspondente é despertado. Assim, colocando-se a mão do
hipnotizado sobre sua cabeça, ele se endireita espontaneamente, inclinando para
trás; seu porte é o do mais vivo orgulho. Se nesse momento se lhe curvar para
frente a cabeça, fletindo levemente o corpo e os membros, o orgulho dará lugar
à mais profunda humildade. Afastando delicadamente os cantos da boca, como no
riso, logo se produz uma tendência alegre; o mau humor entra em campo imediatamente
quando se faz as sobrancelhas convergirem para baixo.
Ideias provocadas – Levantai a mão do paciente acima da cabeça
e fleti os dedos sobre a palma: logo é suscitada a ideia de subir, de se
balançar ou puxar uma corda. Se, ao contrário, forem os dedos fletidos,
deixando o braço pendente, provoca-se a ideia de levantar um peso. Se os dedos
forem fletidos e o braço levado à frente, como para dar um soco, surge a ideia
de lutar box. (A cena se passa em Londres.)
Incremento da força muscular – Se se quiser suscitar uma força
extraordinária num grupo de músculos, basta sugerir ao paciente a ideia da ação
que reclama essa força e assegurar-lhe que o pode realizar com a maior
facilidade, caso queira. Diz o Dr. Carpenter: “Vimos um dos pacientes
hipnotizados pelo Dr. Braid, notável pela pobreza de seu desenvolvimento
muscular, levantar, com o auxílio de seu dedo mínimo, um peso de quatorze
quilos e fazê-lo girar em volta da cabeça, com a única garantia de que o peso era
tão leve como uma pluma.
Limitamo-nos, por hoje, à indicação deste programa.
Aos fatos a palavra; as
reflexões virão mais tarde.
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