Marco Milani[2]
Considerado um mistério ou milagre pelas
religiões tradicionais, o desaparecimento do corpo de Jesus após a sua morte
suscita diversas indagações, não somente pela maioria dos cristãos, mas também
pelos historiadores em geral.
Os registros bíblicos não apontam
explicações para o fato, permitindo variadas especulações, dentre elas, a
simples retirada discreta do corpo do sepulcro por uma ou mais pessoas em
momento indeterminado ou, ainda, pela suposição de que seu corpo não seria
carnal, mas fluídico e assim teria sumido.
Muitas correntes de pensamento
que se formaram nos primeiros séculos depois de Cristo, como o docetismo[3]
e o nestorianismo[4],
estruturaram linhas explicativas para a concepção de que Jesus seria o próprio
Deus ou estivesse a ele unido, sendo necessária a diferenciação de sua natureza
divina da simples criatura humana. Os docetas, nesse sentido, abraçavam essa
suposição de que o corpo de Jesus Cristo seria uma ilusão, e que sua
crucificação teria sido apenas aparente. Ainda que nos primeiros concílios
católicos se tenha anatemizada a proposta de corpo aparente, lastreando-se no
Evangelho de João, em que no primeiro capítulo se afirma que "o Verbo se
fez carne", a concepção de que Jesus seria Deus foi reforçada.
Allan Kardec analisa essa
situação no capítulo XV da obra A Gênese,
em que discorre sobre as possíveis explicações sob a perspectiva espírita.
No item 66 do referido capítulo,
ao destacar que o corpo de Jesus era carnal, assim como qualquer homem,
rejeita-se a suposição de um corpo fluídico e de que sua estada na Terra teria
sido um simulacro, iludindo a todos quanto à sua verdadeira condição. Ainda
nesse item, Kardec afirma que Jesus também teve um corpo fluídico enquanto
estava encarnado, como todos também possuem, pois se trata do perispírito, que
é o envoltório fluídico que o Espírito sempre terá, esteja encarnado ou
desencarnado (ver O Livro dos Médiuns,
item 55).
No item 67 da edição original de
A Gênese (na 5ª edição este item foi
eliminado e o item 68 foi renumerado como 67), Kardec destaca que o
esclarecimento do caso ainda permanece em aberto, porém apresenta hipóteses
plausíveis para explicar o desaparecimento do corpo de Jesus. Como explicação
provável, caso não tenha sido decorrente de um rapto clandestino, cogita-se a
ocorrência do duplo fenômeno de transporte e da invisibilidade (ver O Livro dos Médiuns, itens 72 a 99).
Destaca-se que a construção das
hipóteses plausíveis naturalmente desenvolve a discussão do assunto e oferece
elementos lógicos para a análise doutrinária do fenômeno, além de reiterar a
refutação de que Jesus teria um corpo fluídico, uma vez que a hipótese de
simulacro de Jesus nem foi considerada.
Kardec contribuía, dessa
maneira, para a reflexão de alguns supostos adeptos que na ocasião tentavam
reavivar as propostas docetistas apresentadas como novas revelações por Jean
Baptiste Roustaing, na obra Os Quatro Evangelhos. Tal obra, por sinal, contém
diversas contradições com os ensinamentos espíritas, como retrogradação
espiritual e metempsicose, além de forte conotação teísta-igrejeira que
distorcem o caráter libertador do Espiritismo às antigas concepções dogmáticas
de Deus.
Esse tipo de deturpação
doutrinária, assim como outras de caráter místico e supersticioso, já foram
motivos de cisão em alguns grupos no movimento espírita francês após a
desencarnação de Kardec e, como as ideias são disseminadas, também repercutiram
no nascente movimento espírita brasileiro no final do século 19. Até hoje,
pode-se perceber os reflexos de ideias doutrinariamente incoerentes originadas
no passado.
Se, por um lado, é possível
opinar que a supressão das hipóteses para o desaparecimento do corpo carnal de
Jesus não comprometeria a discussão do tema, por outro, certamente, o
conhecimento das hipóteses propostas por Kardec enriquecem e contribuem para o
desenvolvimento do conteúdo (ver Revista Dirigente Espírita, ed. 180, nov/dez
2020, p. 6).
Recomenda-se, assim, a todos os
estudiosos e interessados em geral a leitura integral dos itens 64 a 68 do
capítulo XV, presentes na edição original de A Gênese, destacando-se que as quatro primeiras edições dessa obra
são idênticas.
(Texto publicado na
Revista Dirigente Espírita, ed. 184, jul/ago 2021, p. 8 e 9)
[1] https://educadorespirita1.blogspot.com/2021/07/hipoteses-para-o-desaparecimento-do.html?fbclid=IwAR3_XU4_Y6AY2LiisNh69NhTgInbBxhf0Jl1VIvtLhDmyrjyZFEFLqPGLW0
[2] Diretor de Doutrina da USE-SP e Presidente da USE
Regional de Campinas.
[3] Doutrina existente nos séculos II e III que negava a
existência de um corpo material a Jesus Cristo, que seria apenas espírito.
[4] Doutrina ligada a Nestório (380-451), monge de
Antioquia, que fazia a distinção entre as naturezas divina e humana de Cristo,
o que consequentemente negava a maternidade divina de Maria.
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