Allan Kardec
O acontecimento literário do dia
é a representação de Galileu, drama em versos do Sr. Ponsard. Embora nele não
se cogite de Espiritismo, a ele se liga por um lado essencial: o da pluralidade
dos mundos habitados e, sob tal ponto de vista, podemos considerá-lo como uma
das obras chamadas a favorecer o desenvolvimento da Doutrina, popularizando um
de seus princípios fundamentais.
O destino da Humanidade está
ligado à organização do Universo, como o do habitante o está à sua habitação.
Na ignorância desta organização, o homem deve ter feito sobre o seu passado e o
seu futuro ideias em conformidade com o estado de seus conhecimentos. Se
tivesse sempre conhecido a estrutura da Terra, jamais teria pensado em situar o
inferno em suas entranhas; se tivesse conhecido o infinito do espaço e a
multidão de astros que aí se movem, não teria localizado o céu acima do céu das estrelas; não teria feito da
Terra o ponto central do Universo, a única habitação dos seres vivos; não teria
condenado a crença nos antípodas como uma heresia; se tivesse conhecido a
Geologia, jamais teria acreditado na formação da Terra em seis dias e em sua
existência desde seis mil anos.
A ideia mesquinha que o homem
fazia da Criação devia dar-lhe uma ideia mesquinha da Divindade. Não pôde
compreender a grandeza, o poder e a sabedoria infinitos do Criador senão quando
seu pensamento pôde abarcar a imensidade do Universo e a sabedoria das leis que
o regem, como se julga o gênio de um mecânico pelo conjunto, a harmonia e a
precisão de um mecanismo, e não à vista de uma simples engrenagem. Só então
suas ideias puderam crescer e elevar-se acima de seu horizonte limitado. Em todos
os tempos suas crenças religiosas foram calcadas na ideia que fazia de Deus e
de sua obra. O erro de suas crenças sobre a origem e o destino da Humanidade
tinha por causa sua ignorância das verdadeiras leis da Natureza; se, desde a
origem, tivesse conhecido essas leis, outros teriam sido seus dogmas.
Galileu, um dos primeiros a
revelar as leis do mecanismo do Universo, não por hipóteses, mas por uma
demonstração irrecusável, abriu caminho a novos progressos. Por isto mesmo
devia produzir uma revolução nas crenças, destruindo os fundamentos científicos
errôneos sobre os quais elas se apoiavam.
A cada um a sua missão. Nem
Moisés, nem o Cristo tinham a de ensinar aos homens as leis da Ciência; o
conhecimento dessas leis devia ser o
resultado do trabalho e das pesquisas do homem, da atividade e do
desenvolvimento de seu próprio espírito, e não de uma revelação a priori, que lhe tivesse dado o saber
sem esforço.
Eles não deviam nem podiam lhes
ter falado senão numa linguagem apropriada ao seu estado intelectual, sem o que
não teriam sido compreendidos. Moisés e o Cristo tiveram sua missão
moralizadora; a gênios de uma outra ordem são deferidas missões científicas.
Ora, como as leis morais e as leis da Ciência são leis divinas, a religião e a
filosofia só podem ser verdadeiras pela aliança destas leis.
O Espiritismo baseia-se na
existência do princípio espiritual, como elemento constitutivo do Universo;
repousa sobre a universalidade e a perpetuidade dos seres inteligentes, sobre
seu progresso indefinido, através dos mundos e das gerações; sobre a
pluralidade das existências corporais, necessárias ao seu progresso individual;
sobre sua cooperação relativa, como encarnados ou desencarnados, na obra geral,
na medida do progresso realizado; sobre a solidariedade que une todos os seres
de um mesmo mundo e dos mundos entre si. Nesse vasto conjunto, encarnados e
desencarnados, cada um tem sua missão, seu papel, deveres a cumprir, desde o
mais ínfimo até os anjos, que nada mais são que Espíritos humanos chegados ao
estado de Espíritos puros, e aos quais são confiadas as grandes missões, o
governo dos mundos, como a generais experimentados. Em vez das solidões
desertas do espaço sem limites, por toda parte a vida e a atividade, em parte
alguma a ociosidade inútil; por toda parte o emprego dos conhecimentos
adquiridos; em toda parte o desejo de progredir ainda e de aumentar a soma de
felicidades, pelo emprego útil das faculdades da inteligência. Em vez de uma
existência efêmera e única, passada num cantinho da Terra, que decide para
sempre de sua sorte futura, impõe limite ao seu progresso e torna estéril, para
o futuro, o trabalho a que se entrega para instruir-se, o homem tem por domínio
o Universo; nada do que sabe ou do que faz fica perdido: o futuro lhe pertence;
em vez do isolamento egoísta, a solidariedade universal; em lugar do nada,
segundo alguns, a vida eterna; em lugar da beatitude contemplativa perpétua,
segundo outros, que a tornaria de uma inutilidade perpétua, um papel ativo, proporcionado
ao mérito adquirido; em vez de castigos irremissíveis por faltas temporárias, a
posição que cada um conquista por sua perseverança no bem ou no mal; em vez de
uma mancha original, que o torna passível de faltas que não cometeu, a
consequência natural de suas próprias imperfeições nativas; em vez das chamas
do inferno, a obrigação de reparar o mal que se fez e recomeçar o que se fez
mal; em vez de um Deus colérico e vingativo, um Deus justo e bom, que leva em
conta todo arrependimento e toda boa vontade.
Tal é, em resumo, o quadro que
apresenta o Espiritismo, e que ressalta da situação mesma dos Espíritos que se manifestam;
não é mais uma simples teoria, mas resultado da observação. O homem que encara
as coisas deste ponto de vista, sente-se crescer; ergue-se aos seus próprios
olhos; é estimulado em seus instintos progressivos ao ver um objetivo para os
seus trabalhos, para os seus esforços em se melhorar.
Mas, para compreender o
Espiritismo em sua essência, na imensidade das coisas que ele abarca, para
compreender o objetivo e o destino do homem, não era preciso relegar a Humanidade
a um pequeno globo, limitar a existência a alguns anos, rebaixar o Criador e a
criatura. Para que o homem pudesse fazer uma ideia justa de seu papel no
Universo, era preciso que compreendesse, pela pluralidade dos mundos, o campo
aberto às suas explorações futuras e a atividade de seu espírito; para recuar indefinidamente
os limites da Criação, para destruir os preconceitos sobre os lugares especiais
de recompensa e de punição, sobre os diferentes estágios dos céus, era preciso
que penetrasse as profundezas do espaço; que em lugar do cristalino e do
empíreo, aí visse circular, em majestosa e perpétua harmonia, os mundos inumeráveis,
semelhantes ao seu; que em toda parte seu pensamento encontrasse a criatura
inteligente.
A história da Terra se liga à da
Humanidade. Para que o homem pudesse desfazer-se de suas mesquinhas e falsas
opiniões sobre a época, a duração e o modo de criação do nosso globo, de suas
crenças lendárias sobre o dilúvio e sua própria origem; para que consentisse em
desalojar do seio da terra o inferno e o império de Satã, era preciso que
pudesse ler nas camadas geológicas a história de sua formação e de suas
revoluções físicas. A Astronomia e a Geologia, secundadas pelas descobertas da
Física e da Química, apoiadas sobre as leis da Mecânica, são as duas poderosas
alavancas que atacarão os seus preconceitos sobre a sua origem e o seu destino.
A matéria e o espírito são os
dois princípios constitutivos do Universo. Mas o conhecimento das leis que
regem a matéria devia preceder o das leis que regem o elemento espiritual; só
as primeiras poderiam combater vitoriosamente os preconceitos, pela evidência
dos fatos. O Espiritismo, que tem como objetivo especial o conhecimento do
elemento espiritual, só podia vir depois; para que pudesse tomar o seu impulso
e dar frutos, para que pudesse ser compreendido em seu conjunto, era preciso
que encontrasse o terreno preparado, o campo do espírito humano liberto dos
preconceitos e das ideias falsas, se não na totalidade, ao menos em grande
parte, sem o que só se teria tido um Espiritismo acanhado, bastardo, incompleto
e misturado a crenças e práticas absurdas, como ainda hoje o é nos povos
atrasados. Se se considerar a situação das nações adiantadas, reconhecer-se-á
que ele veio em tempo oportuno, para preencher os vazios que se fazem nas
crenças.
Galileu abriu o caminho.
Rasgando o véu que ocultava o infinito, alargou o domínio da inteligência e
desferiu um golpe fatal nas crenças errôneas; destruiu mais superstições e ideias
falsas do que todas as filosofias, porque as sapou pela base, mostrando a realidade.
O Espiritismo deve colocá-lo na classe dos grandes gênios que rasgaram a via,
diminuindo as barreiras opostas pela ignorância. As perseguições de que foi
objeto, e que são o quinhão de quem quer que ataque os preconceitos, fizeram-no
grande aos olhos da posteridade, ao mesmo tempo em que rebaixaram os perseguidores.
Quem é hoje maior: ele ou eles?
Lamentamos que a falta de espaço
não nos permita citar alguns fragmentos do belo drama do Sr. Ponsard.
Fá-lo-emos no próximo número.
Documentário: Galileu
Galilei - Gênios da Ciência (Legendado)
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