terça-feira, 6 de julho de 2021

GALILEU: A PROPÓSITO DO DRAMA DO SR. PONSARD[1]

 

Allan Kardec

 

O acontecimento literário do dia é a representação de Galileu, drama em versos do Sr. Ponsard. Embora nele não se cogite de Espiritismo, a ele se liga por um lado essencial: o da pluralidade dos mundos habitados e, sob tal ponto de vista, podemos considerá-lo como uma das obras chamadas a favorecer o desenvolvimento da Doutrina, popularizando um de seus princípios fundamentais.

O destino da Humanidade está ligado à organização do Universo, como o do habitante o está à sua habitação. Na ignorância desta organização, o homem deve ter feito sobre o seu passado e o seu futuro ideias em conformidade com o estado de seus conhecimentos. Se tivesse sempre conhecido a estrutura da Terra, jamais teria pensado em situar o inferno em suas entranhas; se tivesse conhecido o infinito do espaço e a multidão de astros que aí se movem, não teria localizado o céu acima do céu das estrelas; não teria feito da Terra o ponto central do Universo, a única habitação dos seres vivos; não teria condenado a crença nos antípodas como uma heresia; se tivesse conhecido a Geologia, jamais teria acreditado na formação da Terra em seis dias e em sua existência desde seis mil anos.

A ideia mesquinha que o homem fazia da Criação devia dar-lhe uma ideia mesquinha da Divindade. Não pôde compreender a grandeza, o poder e a sabedoria infinitos do Criador senão quando seu pensamento pôde abarcar a imensidade do Universo e a sabedoria das leis que o regem, como se julga o gênio de um mecânico pelo conjunto, a harmonia e a precisão de um mecanismo, e não à vista de uma simples engrenagem. Só então suas ideias puderam crescer e elevar-se acima de seu horizonte limitado. Em todos os tempos suas crenças religiosas foram calcadas na ideia que fazia de Deus e de sua obra. O erro de suas crenças sobre a origem e o destino da Humanidade tinha por causa sua ignorância das verdadeiras leis da Natureza; se, desde a origem, tivesse conhecido essas leis, outros teriam sido seus dogmas.

Galileu, um dos primeiros a revelar as leis do mecanismo do Universo, não por hipóteses, mas por uma demonstração irrecusável, abriu caminho a novos progressos. Por isto mesmo devia produzir uma revolução nas crenças, destruindo os fundamentos científicos errôneos sobre os quais elas se apoiavam.

A cada um a sua missão. Nem Moisés, nem o Cristo tinham a de ensinar aos homens as leis da Ciência; o conhecimento dessas leis devia ser o resultado do trabalho e das pesquisas do homem, da atividade e do desenvolvimento de seu próprio espírito, e não de uma revelação a priori, que lhe tivesse dado o saber sem esforço.

Eles não deviam nem podiam lhes ter falado senão numa linguagem apropriada ao seu estado intelectual, sem o que não teriam sido compreendidos. Moisés e o Cristo tiveram sua missão moralizadora; a gênios de uma outra ordem são deferidas missões científicas. Ora, como as leis morais e as leis da Ciência são leis divinas, a religião e a filosofia só podem ser verdadeiras pela aliança destas leis.

O Espiritismo baseia-se na existência do princípio espiritual, como elemento constitutivo do Universo; repousa sobre a universalidade e a perpetuidade dos seres inteligentes, sobre seu progresso indefinido, através dos mundos e das gerações; sobre a pluralidade das existências corporais, necessárias ao seu progresso individual; sobre sua cooperação relativa, como encarnados ou desencarnados, na obra geral, na medida do progresso realizado; sobre a solidariedade que une todos os seres de um mesmo mundo e dos mundos entre si. Nesse vasto conjunto, encarnados e desencarnados, cada um tem sua missão, seu papel, deveres a cumprir, desde o mais ínfimo até os anjos, que nada mais são que Espíritos humanos chegados ao estado de Espíritos puros, e aos quais são confiadas as grandes missões, o governo dos mundos, como a generais experimentados. Em vez das solidões desertas do espaço sem limites, por toda parte a vida e a atividade, em parte alguma a ociosidade inútil; por toda parte o emprego dos conhecimentos adquiridos; em toda parte o desejo de progredir ainda e de aumentar a soma de felicidades, pelo emprego útil das faculdades da inteligência. Em vez de uma existência efêmera e única, passada num cantinho da Terra, que decide para sempre de sua sorte futura, impõe limite ao seu progresso e torna estéril, para o futuro, o trabalho a que se entrega para instruir-se, o homem tem por domínio o Universo; nada do que sabe ou do que faz fica perdido: o futuro lhe pertence; em vez do isolamento egoísta, a solidariedade universal; em lugar do nada, segundo alguns, a vida eterna; em lugar da beatitude contemplativa perpétua, segundo outros, que a tornaria de uma inutilidade perpétua, um papel ativo, proporcionado ao mérito adquirido; em vez de castigos irremissíveis por faltas temporárias, a posição que cada um conquista por sua perseverança no bem ou no mal; em vez de uma mancha original, que o torna passível de faltas que não cometeu, a consequência natural de suas próprias imperfeições nativas; em vez das chamas do inferno, a obrigação de reparar o mal que se fez e recomeçar o que se fez mal; em vez de um Deus colérico e vingativo, um Deus justo e bom, que leva em conta todo arrependimento e toda boa vontade.

Tal é, em resumo, o quadro que apresenta o Espiritismo, e que ressalta da situação mesma dos Espíritos que se manifestam; não é mais uma simples teoria, mas resultado da observação. O homem que encara as coisas deste ponto de vista, sente-se crescer; ergue-se aos seus próprios olhos; é estimulado em seus instintos progressivos ao ver um objetivo para os seus trabalhos, para os seus esforços em se melhorar.

Mas, para compreender o Espiritismo em sua essência, na imensidade das coisas que ele abarca, para compreender o objetivo e o destino do homem, não era preciso relegar a Humanidade a um pequeno globo, limitar a existência a alguns anos, rebaixar o Criador e a criatura. Para que o homem pudesse fazer uma ideia justa de seu papel no Universo, era preciso que compreendesse, pela pluralidade dos mundos, o campo aberto às suas explorações futuras e a atividade de seu espírito; para recuar indefinidamente os limites da Criação, para destruir os preconceitos sobre os lugares especiais de recompensa e de punição, sobre os diferentes estágios dos céus, era preciso que penetrasse as profundezas do espaço; que em lugar do cristalino e do empíreo, aí visse circular, em majestosa e perpétua harmonia, os mundos inumeráveis, semelhantes ao seu; que em toda parte seu pensamento encontrasse a criatura inteligente.

A história da Terra se liga à da Humanidade. Para que o homem pudesse desfazer-se de suas mesquinhas e falsas opiniões sobre a época, a duração e o modo de criação do nosso globo, de suas crenças lendárias sobre o dilúvio e sua própria origem; para que consentisse em desalojar do seio da terra o inferno e o império de Satã, era preciso que pudesse ler nas camadas geológicas a história de sua formação e de suas revoluções físicas. A Astronomia e a Geologia, secundadas pelas descobertas da Física e da Química, apoiadas sobre as leis da Mecânica, são as duas poderosas alavancas que atacarão os seus preconceitos sobre a sua origem e o seu destino.

A matéria e o espírito são os dois princípios constitutivos do Universo. Mas o conhecimento das leis que regem a matéria devia preceder o das leis que regem o elemento espiritual; só as primeiras poderiam combater vitoriosamente os preconceitos, pela evidência dos fatos. O Espiritismo, que tem como objetivo especial o conhecimento do elemento espiritual, só podia vir depois; para que pudesse tomar o seu impulso e dar frutos, para que pudesse ser compreendido em seu conjunto, era preciso que encontrasse o terreno preparado, o campo do espírito humano liberto dos preconceitos e das ideias falsas, se não na totalidade, ao menos em grande parte, sem o que só se teria tido um Espiritismo acanhado, bastardo, incompleto e misturado a crenças e práticas absurdas, como ainda hoje o é nos povos atrasados. Se se considerar a situação das nações adiantadas, reconhecer-se-á que ele veio em tempo oportuno, para preencher os vazios que se fazem nas crenças.

Galileu abriu o caminho. Rasgando o véu que ocultava o infinito, alargou o domínio da inteligência e desferiu um golpe fatal nas crenças errôneas; destruiu mais superstições e ideias falsas do que todas as filosofias, porque as sapou pela base, mostrando a realidade. O Espiritismo deve colocá-lo na classe dos grandes gênios que rasgaram a via, diminuindo as barreiras opostas pela ignorância. As perseguições de que foi objeto, e que são o quinhão de quem quer que ataque os preconceitos, fizeram-no grande aos olhos da posteridade, ao mesmo tempo em que rebaixaram os perseguidores. Quem é hoje maior: ele ou eles?

Lamentamos que a falta de espaço não nos permita citar alguns fragmentos do belo drama do Sr. Ponsard. Fá-lo-emos no próximo número.

 

 

Documentário: Galileu Galilei - Gênios da Ciência (Legendado)



[1] Revista Espírita – Abril/1867 – Allan Kardec

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