Dora Incontri
No mundo contemporâneo, quase
nunca se pode falar da morte. Não é de bom tom. A morte a gente hoje esconde,
do luto muitos se envergonham. Antigamente, quando morria alguém próximo,
carregava-se na roupa um sinal de luto. O doente morria em casa, cercado de
familiares. Os velórios feitos na sala, todos participavam, inclusive as
crianças. Hoje não. A morte fica à distância. Na UTI, a pessoa morre só. Os
velórios, às vezes me choca, são lugares de conversas frívolas – só às vezes,
quando parte alguém mais jovem ou mais tragicamente, ouve-se o pranto dos mais
próximos.
E de repente, a morte invade o
mundo. Não que ela não nos visite todos os dias. Mas agora, são milhares
diariamente, a ponto de faltar covas, a ponto de não termos números exatos. Já
houve outras ondas de morte na história de séculos atrás ou na história
recente: a peste negra, a peste bubônica, a gripe espanhola, as duas grandes
guerras… Nesses momentos, os lutos são mais complicados, deixam marcas mais
profundas. Morrer um ser amado num leito tranquilo, cercado pelos familiares em
despedida (assim morreu minha mãe), é uma dor, mas uma dor pacífica, que se
torna saudade amena. Mas perder um ser amado sem se encontrar o corpo mutilado
numa guerra ou sem se poder despedir como se deve, como agora com esse
coronavírus, aí a dor é mais angustiante e a marca depois terá de ser muito
tratada, com assistência terapêutica e espiritual. É o que se chama luto
complicado.
Entretanto, essas ondas de
mortes coletivas, que nos angustiam tanto, são momentos que nos chamam a pensar
na vida e na morte, nossa e do outro, lembrando que se há algo que nos iguala
enquanto humanidade é a nossa finitude. Todos vamos enfrentar esse momento. Uma
pandemia apenas pode convocar algumas pessoas mais cedo do que o esperado, e
convocar muito mais pessoas ao mesmo tempo.
Pensar na morte faz bem, é
educativo, é necessário – porque, como diria Renato Russo, é preciso amar as
pessoas, como se não houvesse amanhã. Quando temos sempre a consciência de
nossa finitude, ficamos mais perto dos que amamos, criamos com mais
visceralidade, preocupamo-nos em deixar as coisas terminadas e bem feitas a
cada dia. E procuramos uma consciência que esteja em paz, para o grande dia da
passagem.
Estou sendo fúnebre? Não, apenas
a morte faz parte da vida. E agora nos lembramos disso todos os dias.
Para mim, que sou espiritualista
e, mais especificamente espírita, a morte não é o fim, mas apenas um recomeço,
uma passagem para outra dimensão da existência. Eu, que sou médium, tenho
vivências diárias dessa outra dimensão e dos seres que lá habitam e que
continuam nos seguindo de perto. Claro que essa convicção não nos exime do luto
por alguém que partiu, mas nos consola e nos levanta o ânimo, lembrando do
reencontro que virá, quando a nossa hora chegar.
Quando a morte se apresenta
mesmo, não há como revidar, não há como fugir. Ela nos leva e ponto.
Mas há outras espécies de morte
– que podem nos afligir: a morte de nossos sonhos, a morte de nossas
esperanças, a morte de projetos em que investimos suor e sangue. Todos os
brasileiros, conscientes, lúcidos, estamos cientes do imenso número de mortes por
coronavírus, que sequer são notificadas, mas também estamos sentindo a morte da
nossa democracia (que nunca foi muito viva, na verdade), a morte de nossos
projeto de país independente (que nunca foi realizado também), a morte de
elementos civilizatórios em nossa sociedade. Bem no momento em que enfrentamos
a onda de mortes coletivas no mundo e no Brasil, também temos que lidar com a
morte de tudo aquilo que considerávamos princípios e marcos legais e sociais
para sermos minimamente uma nação. Por isso, urge uma reação. Porque contra
essas mortes, podemos lutar. Quando chega a nossa hora de partirmos dessa para
melhor, não há o que nos segure aqui.
Mas não somos obrigados a
aceitar o decreto de morte de tudo o que nos é caro: a cultura, a arte, a
cidadania, a educação, a ciência, o bom senso e o sentimento de sermos
brasileiros. E ainda assim nos sentimos impotentes e por isso a sensação de
luto é maior, parece incontornável. Precisamos sacudir essa passividade e nos
mobilizarmos. Precisamos levantar a cabeça e não colocá-la sob a lâmina no
carrasco. Enquanto seres humanos, vamos morrer, mais dia, menos dia; enquanto
coletividade, sociedade, nação – o que fizermos hoje terá ressonâncias para
nossos filhos e netos. Tenhamos compaixão do futuro e façamos a nossa parte,
para tirar do poder os que o tomaram de assalto para destruir o país.
Fonte: Casa Espírita Nova Era
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