Uma parte de "Cristo carregando a cruz" de Hieronymus
Bosch (1490)
Ademir Xavier
Ai do mundo por
causa dos escândalos; pois é necessário que venham escândalos; mas, ai do homem
por quem o escândalo venha. (Mateus 18:6)
Não nos dirigimos
nem aos curiosos nem aos apreciadores de escândalo, mas àqueles que querem
seriamente instruir-se. (A. Kardec - "O Céu e o Inferno",
Capítulo 1, "A passagem")
É difícil hoje em dia não se
comover com os dramas, desgraças e análises pessimistas destilados todos os
dias por inúmeros meios de informação. Em parte esses resumos diários,
excessivamente ruidosos e carregados de infortúnios alheios, revelam um excesso
de sensacionalismo, potencializado pelo alcance e rapidez das mídias sociais,
dos meios de comunicação digital em um mundo cada vez mais conectado. Nunca foi
tão fácil e rápido noticiar. Um verdadeiro exército de jornalistas improvisados
bombardeiam todos os dias as pessoas com informações, na sua maioria sem
qualquer utilidade prática, mas que servem para definir a pauta do ânimo de
cada dia.
Grupos com interesses altamente
específicos, indivíduos desqualificados e propagandistas sem escrúpulos têm
seus multiplicadores em uma guerra silenciosa, cujo objetivo é captar o máximo
interesse do público e atingir grupos e inimigos diversos. O analfabetismo
filosófico e a incapacidade de perceber mesmo as mais grosseiras fraudes
argumentativas acabam ressoando entre multidões imensas, sedentas de
informação, mas cativas de sua própria falta de formação e equilíbrio.
Em comum os informantes seguem o
mais puro materialismo, a ausência completa de discernimento sobre a vida
futura. A noção de justiça que transmitem é quase sempre a do aqui agora, a dos
ânimos embrutecidos na revolta pelo não cumprimento aparente de uma justiça
idealizada, que muda conforme os interesses.
De fato, não faz sentido, entre os que nada creem, exigir justiça: se
nada existe para além dessa vida, por que se preocupar? A justiça por eles
cobrada é uma convenção transitória em um universo brutal em que os desejos,
aspirações e mais nobres intenções humanas desfazem-se lentamente como espuma
para cada criatura que morre…
Diante desse quadro em que o
nada é propaganda velada de todos os dias, faz bastante sentido ver se
espalharem os crimes, as mais torpes transgressões, as mais incríveis
iniquidades e o aumento do suicídio entre os que não conseguem suportar. É como se estivesse em curso uma gigantesca
catástrofe anunciada, em que cada um pensa poder sobreviver, faz o que pode
para garantir os seus direitos, e passa
por cima de qualquer um, no salve-se quem puder de cada dia.
Afogados nesse verdadeiro
apocalipse de desgraças, nunca foi tão necessário o discernimento ‒ separar o
joio da verdade do trigo da ilusão ‒ e o equilíbrio moral ‒ não se deixar
abater pela revolta, que cria o estado de desânimo e pode trazer para nossas
vidas problemas que são dos outros. Ainda mais porque, muitos dos que clamam
por justiça, porque querem ser vistos, pregam o ódio como método. Ora, é
bastante óbvio que nada de bom pode resultar de meios que pregam o ódio de
forma sistemática, ou que acreditam poder gerar o bem fazendo o mal.
A antítese da combinação mórbida
do ódio com o nada é o amor e a certeza da vida futura. Contra essas duas
crenças, por que se impõe a dúvida? Porque a certeza da eficácia dessas duas
verdades é também um bem que o indivíduo deve conquistar todos os dias, se a
ele faltam os recursos internos. Esses recursos são semeados ao longo de
sucessivas vidas, razão porque eles se encontram tão desigualmente distribuídos
entre as pessoas. Não se trata, portanto, de uma injustiça desde o nascimento.
Aqui vemos um sujeito que em nada acredita, que nutre rancor contra seu
semelhante ou que segue amargurado, sem ânimo para a vida. Mas eis que, ao seu
lado, alguém o suporta bravamente, escorando-se na fé ou em pequenos atos de
gratidão, muitas vezes despercebidos, mas que pouco a pouco surtem efeito. Esse quadro multiplica-se aos milhões em
todas as partes do globo.
Essa é também a principal razão
porque a Humanidade, não obstante todas as conquistas tecnológicas, continua em
sua maioria crente em Deus através das inúmeras religiões, que têm suas
próprias formas de conceber a vida futura. O que seria do mundo se não fosse a
fé que conforta e permite viver? Independente de como concebem Deus e o futuro
no além túmulo, essa é a principal razão porque todas as religiões, em certo
sentido profundo, estão certas ao mesmo tempo. Investem a seu modo na certeza da vida maior,
adaptadas conforme a formação e o grau de discernimento de cada pessoa. Não se
deve imputar às religiões (ou seja, às doutrinas que professam) a culpa pelos
males praticados em seu nome: de fato, tratam-se de aberrações que surgem
quando a incúria e a iniquidade reinterpretam do seu jeito as lições da vida
superior. As distorções observadas se explicam porque alguns religiosos apenas
se apegam intelectualmente a uma verdade maior e continuam a viver do mesmo
jeito. Ainda assim, quem poderia garantir que não seriam muito piores se não
fosse a parca luz que pregam?
Em resumo, temos como certo que
é "necessário o escândalo", pois ele faz parte do processo de
aprendizado a que cada pessoa está sujeito neste mundo de testes morais
incessantes. Mas, entre ser afetado pela onda do mal e viver com serenidade,
podemos escolher semear a certeza de que o amor e a vida futura são patrimônios
inalienáveis da alma dos quais somos todos herdeiros no futuro. O quão distante
esse futuro se encontra, depende inteiramente de nós.
[2] Versão original posteriormente publicada com algumas
modificações no jornal Correio Fraterno, Edição 486 - março/abril 2019.
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