sexta-feira, 5 de junho de 2020

A QUE SE DEVE MUITO DO EXCESSO DE DESGRAÇAS DOS ÚLTIMOS TEMPOS[1], [2]



Uma parte de "Cristo carregando a cruz" de Hieronymus Bosch (1490)

Ademir Xavier

Ai do mundo por causa dos escândalos; pois é necessário que venham escândalos; mas, ai do homem por quem o escândalo venha. (Mateus 18:6)
Não nos dirigimos nem aos curiosos nem aos apreciadores de escândalo, mas àqueles que querem seriamente instruir-se. (A. Kardec - "O Céu e o Inferno", Capítulo 1, "A passagem")

É difícil hoje em dia não se comover com os dramas, desgraças e análises pessimistas destilados todos os dias por inúmeros meios de informação. Em parte esses resumos diários, excessivamente ruidosos e carregados de infortúnios alheios, revelam um excesso de sensacionalismo, potencializado pelo alcance e rapidez das mídias sociais, dos meios de comunicação digital em um mundo cada vez mais conectado. Nunca foi tão fácil e rápido noticiar. Um verdadeiro exército de jornalistas improvisados bombardeiam todos os dias as pessoas com informações, na sua maioria sem qualquer utilidade prática, mas que servem para definir a pauta do ânimo de cada dia.
Grupos com interesses altamente específicos, indivíduos desqualificados e propagandistas sem escrúpulos têm seus multiplicadores em uma guerra silenciosa, cujo objetivo é captar o máximo interesse do público e atingir grupos e inimigos diversos. O analfabetismo filosófico e a incapacidade de perceber mesmo as mais grosseiras fraudes argumentativas acabam ressoando entre multidões imensas, sedentas de informação, mas cativas de sua própria falta de formação e equilíbrio.
Em comum os informantes seguem o mais puro materialismo, a ausência completa de discernimento sobre a vida futura. A noção de justiça que transmitem é quase sempre a do aqui agora, a dos ânimos embrutecidos na revolta pelo não cumprimento aparente de uma justiça idealizada, que muda conforme os interesses.  De fato, não faz sentido, entre os que nada creem, exigir justiça: se nada existe para além dessa vida, por que se preocupar? A justiça por eles cobrada é uma convenção transitória em um universo brutal em que os desejos, aspirações e mais nobres intenções humanas desfazem-se lentamente como espuma para cada criatura que morre… 
Diante desse quadro em que o nada é propaganda velada de todos os dias, faz bastante sentido ver se espalharem os crimes, as mais torpes transgressões, as mais incríveis iniquidades e o aumento do suicídio entre os que não conseguem suportar.  É como se estivesse em curso uma gigantesca catástrofe anunciada, em que cada um pensa poder sobreviver, faz o que pode para garantir os seus  direitos, e passa por cima de qualquer um, no salve-se quem puder de cada dia.
Afogados nesse verdadeiro apocalipse de desgraças, nunca foi tão necessário o discernimento ‒ separar o joio da verdade do trigo da ilusão ‒ e o equilíbrio moral ‒ não se deixar abater pela revolta, que cria o estado de desânimo e pode trazer para nossas vidas problemas que são dos outros. Ainda mais porque, muitos dos que clamam por justiça, porque querem ser vistos, pregam o ódio como método. Ora, é bastante óbvio que nada de bom pode resultar de meios que pregam o ódio de forma sistemática, ou que acreditam poder gerar o bem fazendo o mal.
A antítese da combinação mórbida do ódio com o nada é o amor e a certeza da vida futura. Contra essas duas crenças, por que se impõe a dúvida? Porque a certeza da eficácia dessas duas verdades é também um bem que o indivíduo deve conquistar todos os dias, se a ele faltam os recursos internos. Esses recursos são semeados ao longo de sucessivas vidas, razão porque eles se encontram tão desigualmente distribuídos entre as pessoas. Não se trata, portanto, de uma injustiça desde o nascimento. Aqui vemos um sujeito que em nada acredita, que nutre rancor contra seu semelhante ou que segue amargurado, sem ânimo para a vida. Mas eis que, ao seu lado, alguém o suporta bravamente, escorando-se na fé ou em pequenos atos de gratidão, muitas vezes despercebidos, mas que pouco a pouco surtem efeito.  Esse quadro multiplica-se aos milhões em todas as partes do globo.
Essa é também a principal razão porque a Humanidade, não obstante todas as conquistas tecnológicas, continua em sua maioria crente em Deus através das inúmeras religiões, que têm suas próprias formas de conceber a vida futura. O que seria do mundo se não fosse a fé que conforta e permite viver? Independente de como concebem Deus e o futuro no além túmulo, essa é a principal razão porque todas as religiões, em certo sentido profundo, estão certas ao mesmo tempo. Investem  a seu modo na certeza da vida maior, adaptadas conforme a formação e o grau de discernimento de cada pessoa. Não se deve imputar às religiões (ou seja, às doutrinas que professam) a culpa pelos males praticados em seu nome: de fato, tratam-se de aberrações que surgem quando a incúria e a iniquidade reinterpretam do seu jeito as lições da vida superior. As distorções observadas se explicam porque alguns religiosos apenas se apegam intelectualmente a uma verdade maior e continuam a viver do mesmo jeito. Ainda assim, quem poderia garantir que não seriam muito piores se não fosse a parca luz que pregam?
Em resumo, temos como certo que é "necessário o escândalo", pois ele faz parte do processo de aprendizado a que cada pessoa está sujeito neste mundo de testes morais incessantes. Mas, entre ser afetado pela onda do mal e viver com serenidade, podemos escolher semear a certeza de que o amor e a vida futura são patrimônios inalienáveis da alma dos quais somos todos herdeiros no futuro. O quão distante esse futuro se encontra, depende inteiramente de nós.




[2] Versão original posteriormente publicada com algumas modificações no jornal Correio Fraterno, Edição 486 - março/abril 2019.

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