terça-feira, 30 de abril de 2019

JULIENNE-MARIE, A MENDIGA[1]


 Conversas de Além-Túmulo



Na comuna da Villatte, perto de Nozai (Loire-Inférieure), havia uma pobre mulher chamada Julienne-Marie, velha, enferma, e que vivia da caridade pública. Um dia caiu num pântano, de onde foi retirada pelo Sr. Aubert, habitante da região, que habitualmente lhe prestava socorro. Transportada ao seu domicílio, morreu pouco tempo depois, em consequência do acidente. Era opinião geral que ela quisera suicidar-se. No mesmo dia de seu falecimento o Sr. Aubert, que é espírita e médium, sentiu sobre toda a sua pessoa como que o roçar de alguém que estivesse ao seu lado, sem, todavia, explicar a sua causa. Quando soube da morte de Julienne-Marie, veio-lhe o pensamento de que talvez o seu Espírito tivesse vindo visitá-lo.
Seguindo o conselho de um de seus amigos, o Sr.Cheminant, membro da Sociedade Espírita de Paris, ao qual havia contado o que se passara, fez a evocação dessa mulher, com o objetivo de lhe ser útil, não sem antes se aconselhar com seus guias protetores, dos quais recebeu a seguinte resposta:
“Tu podes e isto lhe dará prazer, embora seja inútil o serviço que te propões prestar. Ela é feliz e inteiramente devotada aos que lhe foram compassivos. És um de seus bons amigos; ela quase não te deixa e, sem que o percebas, muitas vezes se entretém contigo. Mais cedo ou mais tarde os serviços prestados serão recompensados, se não pelo favorecido, por aqueles que por ele se interessam, antes e depois de sua morte. Quando o Espírito não teve tempo de se reconhecer, outros Espíritos simpáticos, em seu nome, testemunham todo o seu reconhecimento. Eis o que explica o que sentiste no dia de sua morte. Agora é ela quem te ajuda no bem que queres fazer. Lembra-te do que disse Jesus: ‘Aquele que se humilhar será exaltado’. Terás a medida do serviço que ela te pode prestar, se, contudo, só lhe pedires assistência para ser útil a teu próximo”.

Evocação – Bondosa Julienne-Marie, sois feliz; eis tudo quanto eu queria saber. Isto não me impedirá de pensar em vós muitas vezes e de jamais vos esquecer em minhas preces.
– Tem confiança em Deus; inspira aos teus doentes uma fé sincera e triunfarás quase sempre. Não te ocupes jamais com a recompensa que disso virá, pois ela ultrapassará a tua expectativa. Deus sabe sempre recompensar como merece aquele que se dedica ao alívio de seus semelhantes e vota às suas ações um completo desinteresse. Sem isto, tudo não passa de ilusão e quimera. Antes de tudo é preciso ter fé, do contrário, nada.
Lembra-te desta máxima e ficarás admirado dos resultados que obterás. Os dois doentes que curaste disso são a prova; nas circunstâncias em que se encontravam, com os remédios simples terias falhado.
Quando pedires a Deus permissão para que os Espíritos bons derramem sobre ti seus fluidos benfazejos, se o pedido não te fizer sentir um sobressalto involuntário, é que tua prece não foi bastante fervorosa para ser ouvida; ela só o será nas condições que te assinalo. É o que tens experimentado quando dizes do fundo do coração: “Deus Todo-Poderoso, Deus misericordioso, Deus de bondade sem limites, acolhei a minha prece e permiti que os Espíritos bons me assistam na cura de...; tende piedade dele, meu Deus, e restitui-lhe a saúde; sem vós nada posso. Que se faça a vossa vontade”.
Fizestes bem em não desprezar os humildes. A voz do que sofreu e suportou com resignação as misérias deste mundo é sempre ouvida; e, como vês, um serviço prestado sempre recebe a sua recompensa.
Agora, uma palavra a meu respeito; isto te confirmará o que foi dito acima.
O Espiritismo te explica minha linguagem como Espírito. Não preciso entrar em detalhes a respeito. Também creio ser inútil dar-te a conhecer a minha existência anterior. A posição em que me conheceste na Terra deve fazer-te compreender e apreciar minhas outras existências, que nem sempre foram irrepreensíveis. Votada a uma vida de miséria, enferma e não podendo trabalhar, mendiguei a vida toda. Não entesourei; na velhice minhas pequenas economias limitavam-se a uma centena de francos, que reservava para quando as pernas não me pudessem transportar. Deus julgou a minha provação e expiação suficiente e lhes pôs um termo, livrando-me, sem sofrimento, da vida terrena; porque eu não me suicidei, como a princípio pensaram. Caí fulminada à borda do pântano, no momento em que dirigia minha última prece a Deus. O declive do terreno foi a causa da presença de meu corpo na água. Não sofri; estou feliz por ter podido cumprir minha missão sem entraves e com resignação. Tornei-me útil, na medida de minhas forças e de minhas possibilidades, e evitei fazer mal ao próximo. Hoje recebo a recompensa e dou graças a Deus, nosso divino Senhor que, no castigo que inflige, suaviza a amargura fazendo-nos esquecer, durante a vida, as nossas antigas existências, e pondo em nosso caminho almas caridosas, para nos ajudarem a suportar o fardo de nossos erros passados.
Persevera também e, como eu, serás recompensado.
Agradeço-te as boas preces e o serviço que me prestaste. Jamais o esquecerei. Um dia nos reveremos e muitas coisas ser-te-ão explicadas; no momento seriam supérfluas. Basta saberes que te sou muito devotada, muitas vezes estou junto de ti e sempre que necessitares de mim, para o alívio dos que sofrem.
A pobrezinha Julienne-Marie

Tendo sido evocado na Sociedade de Paris, a 10 de junho de 1864 (médium: Sra. Patet), o Espírito Julienne-Marie ditou a seguinte comunicação:
Obrigado porque me admitistes em vosso meio, caro presidente; sentistes bem que minhas existências anteriores foram mais elevadas do ponto de vista social; e, se voltei para sofrer a prova da pobreza, era para me punir de um vão orgulho, que me fazia repelir quem fosse pobre e miserável. Então sofri essa lei justa de talião, que me tornou a mais horrenda mendiga desta região; mas, como que para me provar a bondade de Deus, eu não era repelida por todos; isto era todo o meu medo. Suportei minha prova sem murmurar, pressentindo uma vida melhor, de onde não devia mais voltar a esta Terra de exílio e de calamidade. Que felicidade o dia em que nossa alma, ainda jovem, puder entrar na vida espiritual para rever os seres amados! Porque, eu também, amei e sou feliz por ter encontrado os que me precederam.
Obrigado a esse bom Aubert; ele me abriu a porta do reconhecimento; sem a sua mediunidade eu não lhe poderia agradecer e provar-lhe que minha alma não esquece as felizes influências de seu bom coração e recomendar-lhe que propague sua divina crença. Ele é chamado a recolher as almas transviadas; que se convença bem do meu apoio. Sim, eu lhe posso retribuir ao cêntuplo o que ele me fez, instruindo-o na via que seguis.
Agradecei ao Senhor o me haver permitido que os Espíritos vos possam dar instruções para encorajar o pobre em suas penas e deter o rico em seu orgulho. Sabei compreender a vergonha que há em repelir um infeliz; que eu vos sirva de exemplo, a fim de que eviteis, como eu, de vir expiar as vossas faltas nessas dolorosas posições sociais, que vos colocam tão baixo e vos fazem a escória da sociedade.
Julienne-Marie

Observação – Este caso está cheio de ensinamentos para quem quer que medite as palavras deste Espírito nestas duas comunicações. Todos os grandes princípios do Espiritismo aí se acham reunidos. Desde a primeira, o Espírito revela a sua superioridade pela linguagem; como fada benfeitora, vem proteger aquele que não a rejeitou em seus farrapos de miséria. É uma aplicação destas máximas do Evangelho: “Os grandes serão humilhados e os pequenos serão exaltados; bem-aventurados os humildes; bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados; não desprezeis os pequenos, pois quem é pequeno neste mundo talvez seja maior do que credes”. Que os que negam a reencarnação como contrária à justiça de Deus, expliquem a posição dessa mulher, condenada à infelicidade desde o nascimento, por suas enfermidades, se não por uma vida anterior!
Transmitida esta comunicação ao Sr. Aubert, ele obteve, por sua vez, a que segue, que vem confirmar a anterior:
P. – Boa Julienne-Marie, já que quereis ajudar-me com os vossos bons conselhos, a fim de me fazer progredir na via da nossa divina doutrina, tende a bondade de vos comunicardes comigo. Envidarei todos os esforços para tirar proveito dos vossos ensinamentos.
– Lembra-te da recomendação que te vou fazer e dela jamais te afastes. Sê sempre caridoso, na medida de tuas possibilidades; compreendes a caridade suficientemente tal qual deve ser praticada em todas as posições da vida terrena. Não preciso, pois, vir dar-te um ensinamento a respeito; serás tu mesmo o melhor juiz, seguindo, contudo, a voz da consciência, que jamais te enganará, quando a escutares sinceramente.
Não te iludas quanto às missões que tens a cumprir na Terra; pequenos e grandes têm a sua; a minha foi muito penosa, mas eu merecia semelhante punição, por minhas existências precedentes, conforme o confessei ao bom presidente da sociedade mãe de Paris, à qual todos vos reunireis um dia. Esse dia não está tão longe quanto pensas; o Espiritismo marcha a passos de gigante, a despeito de tudo quanto têm feito para entravá-lo. Marchai, pois, todos sem medo, fervorosos adeptos da doutrina, e vossos esforços serão coroados de sucesso. Pouco vos importe o que disserem de vós. Colocai-vos acima de uma crítica irrisória, que cairá sobre os adversários do Espiritismo.
Os orgulhosos! Eles se julgam fortes e pensam abater-vos facilmente. Vós, meus bons amigos, ficai tranquilos e não temais vos medir com eles. Eles são mais fáceis de vencer do que imaginais; muitos dentre eles têm medo e temem que a verdade, enfim, lhes venha ofuscar os olhos. Esperai; eles virão, por sua vez, ajudar no coroamento do edifício.
Julienne-Marie



[1] Revista Espírita – Agosto/1864 – Allan Kardec

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