terça-feira, 2 de abril de 2019

Instrução de Ciro a seus filhos, no momento da morte[1]


(Extraído da Ciropédia, de Xenofonte, liv. VIII, cap. VII)



Eu vos conjuro, meus filhos, em nome dos deuses de nossa pátria, a ter respeito um pelo outro, caso conserveis algum desejo de me agradar, pois imagino que não considereis como certo que eu não seja mais nada quando tiver cessado de viver. Até agora minha alma ficou oculta aos vossos olhos; mas por suas operações, reconhecíeis que ela existia.
Não notastes também de que terrores são atormentados os homicidas pelas almas dos inocentes que fizeram morrer, e que vinganças elas tomam desses ímpios? Pensais que o culto que se presta aos mortos teria sido mantido até hoje, caso se acreditasse que suas almas fossem destituídas de todo poder? Para mim, meus filhos, jamais pude persuadir-me de que a alma, que vive enquanto está num corpo mortal, se extinga desde que dele saiu, pois vejo que é ela que vivifica os corpos destrutíveis, enquanto os habita. Também jamais me pude convencer de que ela perca sua faculdade de raciocinar no momento em que se separa de um corpo incapaz de pensar; é natural crer que a alma, então mais pura e desprendida da matéria, goze plenamente de sua inteligência.
Quando um homem está morto, veem-se as diferentes partes que o compunham, unir-se aos elementos a que pertenciam: só a alma escapa aos olhares, quer durante sua estada no corpo, quer quando o deixa.
Sabeis que é durante o sono, imagem da morte, que mais a alma se aproxima da Divindade e que, nesse estado, muitas vezes prevê o futuro, sem dúvida porque, então, está inteiramente livre.
Ora, se estas coisas são como penso, e se a alma sobrevive ao corpo que abandona, fazei, em respeito à minha, o que vos recomendo; se eu estiver errado, se a alma ficar com o corpo e perecer com ele, ao menos temei os deuses, que não morrem, que tudo veem, que podem tudo, que sustentam no Universo essa ordem imutável, inalterável, invariável, cuja magnificência e majestade estão acima de qualquer expressão.
Que esse temor vos preserve de toda ação, de todo pensamento que ofenda a piedade ou a justiça... Mas sinto que minha alma me abandona; sinto-o pelos sintomas que de ordinário anunciam a nossa dissolução.

Observação – Um espírita teria bem pouco a acrescentar a essas notáveis palavras, dignas de um filósofo cristão e onde se acham admiravelmente descritos os atributos especiais do corpo e da alma: o corpo material, destrutível, cujos elementos se dispersam, para unir-se aos elementos similares e que, durante a vida, só age por impulso do princípio inteligente; depois a alma, sobrevivendo ao corpo, conservando sua individualidade e gozando das maiores percepções quando desprendida da matéria; a liberdade da alma durante o sono; enfim, a ação da alma dos mortos sobre os vivos.
Além disso, pode ainda notar-se a distinção feita entre os deuses e a Divindade propriamente dita. Os deuses não passavam de Espíritos, em diferentes graus de elevação, encarregados de presidir, cada um em sua especialidade, a todas as coisas deste mundo, na ordem moral e na ordem material. Os deuses da pátria eram os Espíritos protetores da pátria, como os deuses lares o eram da família. Os deuses, ou Espíritos superiores, não se comunicavam aos homens senão por meio de Espíritos subalternos, chamados demônios. O vulgo não ia além disto; mas os filósofos e os iniciados reconheciam um Ser Supremo, criador e ordenador de todas as coisas.




[1] Revista Espírita – Maio/1864 – Allan Kardec

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