terça-feira, 10 de julho de 2018

Suicídio Falsamente Atribuído ao Espiritismo[1]




O ardor dos adversários em recolher e, sobretudo, desnaturar os fatos que julgam comprometer o Espiritismo é realmente incrível, a tal ponto que logo não haverá mais nenhum acidente pelo qual ele não seja responsável.
Um fato lamentável passou-se ultimamente em Tours e não podia deixar de ser explorado pela crítica: é o suicídio de dois indivíduos, que muitos se esforçam por atribuir ao Espiritismo.
O jornal Le Monde (antigo Univers Religieux) e, com ele, vários jornais, publicaram um artigo sobre o assunto, do qual extraímos as seguintes passagens:
Um casal em idade avançada, o Sr. e a Sra. ***, ainda em boa forma e desfrutando de uma renda que lhes permitia viver à vontade, entregava-se há cerca de dois anos a operações de Espiritismo. Quase todas as noites reuniam-se em sua casa um certo número de operários, homens e mulheres, e jovens de ambos os sexos, perante os quais nossos dois espíritas faziam suas evocações ou, pelo menos, pretendiam fazê-las.
Não falaremos das questões de toda espécie, cuja solução era pedida aos Espíritos naquela casa. Os que conhecem o casal de longa data e os seus sentimentos sobre religião jamais ficaram surpreendidos com as cenas que ali se produziam. Estranhos a toda ideia cristã, tinham-se atirado à magia, passando por mestres hábeis e perfeitos.
Um e outro estavam convencidos, desde algum tempo, de que os Espíritos os persuadiam vivamente a deixar a Terra, a fim de fruir num outro mundo, o mundo supraterrestre, de uma maior soma de felicidade. Com efeito, não duvidando que assim fosse, consumaram o duplo suicídio com o maior sangue-frio, fato que hoje constitui um grande escândalo na cidade de Tours.
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Assim, é hoje o suicídio que temos a constatar como resultado do Espiritismo e de sua doutrina. Ontem eram os casos de loucura, sem falar das desordens domésticas e de outras desordens que o Espiritismo tão comumente tem provocado. Isto não basta para que os homens compreendam, aqueles que fecham os ouvidos à voz da religião, a que perigos se expõem, entregando-se a essas práticas estúpidas e tenebrosas?
Notemos, antes de tudo, que se os dois indivíduos pretendiam fazer evocações, é que realmente não as faziam; enganavam os outros ou iludiam-se a si mesmos. Portanto, se não faziam evocações reais, era uma quimera, e os Espíritos não lhes podiam dar maus conselhos.
Eram espíritas, isto é, espíritas de coração ou de nome?
O artigo esclarece que eram estranhos a toda ideia cristã; ademais, que passavam por mestres hábeis e perfeitos na magia. Ora, está provado que o Espiritismo é inseparável das ideias religiosas, principalmente das cristãs; que a negação destas é a negação do Espiritismo; que condena as práticas de magia, com as quais nada tem de comum; que denuncia como supersticiosa a crença na virtude dos talismãs, fórmulas, sinais cabalísticos e palavras sacramentais. Portanto, aquelas pessoas não eram espíritas, pois estavam em contradição com os princípios do Espiritismo. Para prestar homenagem à verdade, diremos que, das informações obtidas, conclui-se que aquelas pessoas não se ocupavam de magia e certamente quiseram aproveitar a circunstância para vincular esse nome ao Espiritismo.
Além disso, diz o artigo que em casa deles se faziam perguntas de toda espécie aos Espíritos. O Espiritismo afirma expressamente que não se podem dirigir aos Espíritos toda sorte de perguntas; que eles vêm para nos instruir e nos tornar melhores, e não para se ocuparem de interesses materiais; que é equivocar-se quanto ao objetivo das manifestações nelas ver um meio de conhecer o futuro, descobrir tesouros ou heranças, fazer invenções e descobertas científicas para ilustrar-se ou enriquecer sem trabalho; numa palavra, que os Espíritos não vêm ler a buena-dicha[2]. Por conseguinte, ao fazerem aos Espíritos perguntas de toda espécie, o que é muito real, provavam os indivíduos a sua ignorância quanto ao próprio objetivo do Espiritismo.
O artigo não diz que fizessem profissão daquilo, e realmente não o faziam. Do contrário, lembraríamos o que já foi dito centenas de vezes a respeito dessa exploração e de suas consequências, de que o Espiritismo sério não pode assumir a responsabilidade legal ou outra, como não assume a das excentricidades dos que não o compreendem; não defende os abusos que poderiam ser cometidos em seu nome por aqueles que lhe tomassem a forma ou a máscara sem lhe assimilar os princípios.
Outra prova de que aqueles indivíduos ignoravam um dos pontos fundamentais da Doutrina Espírita é que o Espiritismo demonstra, não por simples teoria moral, mas por numerosos e consideráveis exemplos, que o suicídio é severamente castigado; que aquele que julga escapar às misérias da vida por uma morte voluntária antecipada aos desígnios de Deus, cai num estado muito mais infeliz. Sabe, pois, o espírita – e disso não pode duvidar – que, pelo suicídio, troca-se um mau estado passageiro por outro pior e que pode durar bastante. É o que teriam sabido aqueles indivíduos se tivessem conhecido o Espiritismo. O autor do artigo, avançando que essa doutrina conduz ao suicídio, falou de uma coisa que ele próprio desconhecia.
Não nos surpreendemos de modo algum com o resultado do barulho que fizeram desse acontecimento.
Apresentando-o como consequência da Doutrina Espírita aguçaram a curiosidade e cada um quis conhecer essa doutrina por si mesmo, sob a condição de a repelir se se mostrasse tal como a retratavam. Ora, reconheceram que dizia exatamente o contrário do que pretendiam que dissesse; assim, pois, ela não pode senão lucrar em se tornar conhecida, o que os nossos adversários parecem encarregar-se com um ardor pelo qual só lhes podemos ser gratos, salvo, todavia, quanto à intenção. Se por suas diatribes produzem uma pequena perturbação local e momentânea, esta não tarda a ser seguida por um recrudescimento do número dos adeptos. É o que se vê por toda parte.
“Se, pois – nos escrevem de Tours – esses indivíduos resolveram misturar os Espíritos em sua fatal resolução e em suas excentricidades bem conhecidas, é evidente que nada haviam compreendido do Espiritismo e que não se pode tirar nenhuma conclusão contra a doutrina; de outro modo, seria preciso responsabilizar as doutrinas mais sérias e mais sagradas pelos abusos e até crimes cometidos em seu nome por pobres insensatos e fanáticos. A Sra. F... pretendia ser médium, mas todos quantos a ouviram jamais puderam levá-la a sério. As ideias muito repisadas, o exagero e as excentricidades do casal de velhos, principalmente da mulher, fizeram se lhes fossem fechadas as portas do círculo espírita de Tours, ao qual não foram admitidos a uma única sessão”.
O jornal supracitado não deu boas informações sobre as verdadeiras causas do suicídio. Nós as colhemos de peças autênticas, registradas num cartório de Tours, bem como de uma carta que, a respeito, nos escreveu o Sr. X..., procurador dessa cidade.
Os esposos F..., a mulher com sessenta e dois anos e o marido com oitenta, longe da abastança em que viveram, foram impelidos ao suicídio unicamente pela perspectiva da miséria. Tinham acumulado uma pequena fortuna com o comércio de tecidos em Nova Orléans; arruinados por falências, vieram para Nantes, depois para Tours, com o pouco que lhes restou do naufrágio financeiro. Uma renda vitalícia de 480 fr., que era seu principal recurso, faltou-lhes em 1856, em consequência de uma nova falência. Já por três vezes, e muito antes que se cogitasse de Espiritismo, tinham tentado o suicídio. Nestes últimos tempos, perseguidos por antigos credores, um processo infeliz tinha acabado por arruiná-los, fazendo-lhes perder a coragem e a razão.
A carta a seguir, escrita pela Sra. F... Antes de morrer e que se acha entre as peças acima relatadas, assinadas pelo presidente do tribunal, ne varietur[3], dá a conhecer a verdadeira razão da morte. Nós a transcrevemos textualmente, na grafia original:
Sr. e Sra. B..., antes de ir para o Céu quero entender-me convosco mais uma vez, aceitai meu último adeus, espero muito entretanto que nos veremos, como parto antes de vós vou guardar o vosso lugar para quando vier o momento eu vos dar parte de nosso projeto, desde nossas adversidades temos alimentado no coração uma mágoa que não se apagou, é mais que um aborrecimento, tudo se torna um peso para mim, tenho sempre o coração cheio de amargura, é preciso que vos diga que há seis anos que o negócio de nossa casa não termina, talvez seja preciso consumir mais dois mil francos, como vemos que não podemos sair disso senão com grandes privações que é preciso sempre recomeçar sem ver o fim, é preciso acabar com isso, agora estamos velhos as forças começam a nos abandonar, a coragem falta, a partida não é mais igual, é preciso acabar com isto e chegamos à determinação. Peço que aceiteis meus votos sinceros. Esposa F...
 Hoje se sabe em Tours como proceder quanto às verdadeiras causas desse acontecimento; e o ruído que fazem a respeito reverte-se em favor do Espiritismo, porquanto, diz o nosso correspondente, fala-se dele em toda parte, querem saber ao certo o que ele é e, desde então, as livrarias da cidade têm vendido mais Livros espíritas do que nunca.
É realmente curioso ver o tom lamentável de alguns, a cólera furibunda de outros, e, em meio a tudo isto, o Espiritismo prosseguir sua marcha ascendente, como um soldado que planeja um assalto sem se inquietar com a metralha. Vendo a zombaria impotente, depois de haverem dito que era um fogo-fátuo[4], agora os adversários dizem que é um cão raivoso.




[1] Revista Espírita – Abril/1863 – Allan Kardec
[2] Sina, fortuna, sorte.
[3] Locução latina que significa "para não variar”.
[4] Brilho transitório; prazer ou glória de pouca duração.

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