terça-feira, 27 de março de 2018

O Padeiro Desumano – Suicídio[1]




Uma correspondência de Crefled (Prússia Renana), de 25 de janeiro de 1862, inserida no Constitutionnel de 4 de fevereiro, contém o seguinte fato:
Uma pobre viúva, mãe de três filhos, entra numa padaria e pede insistentemente que lhe vendam um pão fiado.
Porque o padeiro recusasse, a viúva reduz o seu pedido a meio pão e, por fim, a uma libra de pão, apenas, para os filhos famintos. O padeiro recusa ainda, deixa o lugar e se dirige para o fundo da padaria. Crendo não ser vista, a mulher se apossa de um pão e sai.
Mas o roubo, imediatamente descoberto, é denunciado à polícia.
 Um agente vai à casa da viúva e a surpreende cortando o pão em pedaços para dar aos filhos. Ela não nega o roubo, mas se desculpa com a necessidade. Embora censurando a crueldade do padeiro, o agente insiste para que ela o acompanhe à delegacia.
A viúva pede apenas alguns instantes para trocar de roupa e entra no quarto; porque demorasse, o agente, perdendo a paciência, resolve abrir a porta: a infeliz jazia no chão, inundada de sangue. Com a mesma faca com que acabara de cortar o pão para os filhos pusera fim aos seus dias.
Tendo sido lida a notícia na sessão da Sociedade de 14 de fevereiro de 1862, foi proposta a evocação dessa infeliz mulher, quando ela mesma veio manifestar-se espontaneamente, conforme comunicação a seguir. Acontece muitas vezes que os Espíritos de quem falamos se revelam dessa maneira. É incontestável que são atraídos pelo pensamento, que é uma espécie de evocação tácita.
Sabem que a gente se ocupa deles e vêm; então se comunicam, se a ocasião lhes parece oportuna ou se encontram o médium que lhes convém. De acordo com isto, compreende-se não haver necessidade de ter um médium, nem mesmo de ser espírita para atrair os Espíritos com os quais nos preocupamos.
Deus foi bom para a pobre alucinada e venho agradecer-vos a simpatia que houvestes por bem testemunhar-me.
Infelizmente, diante da miséria e da fome de meus pobres filhinhos, esqueci-me e fali. Então disse de mim para mim: visto que és impotente para alimentar teus filhos e que o padeiro recusa o pão aos que não podem pagar; desde que não tens dinheiro nem trabalho, morre! Porque, quando não estiveres mais com eles, virão em seu auxílio. Efetivamente, hoje a caridade pública adotou esses pobres órfãos. Deus me perdoou, porque viu a minha razão vacilar e meu pungente desespero. Fui a vítima inocente de uma sociedade má, muito mal regulada. Ah! Agradecei a Deus por vos ter feito nascer nesta bela região da França, onde a caridade vai procurar e aliviar todas as misérias.
Rogai por mim, a fim de que em breve eu possa reparar a falta cometida, não por covardia, mas por amor materno.
Como os vossos Espíritos protetores são bons! Consolam-me, fortificam-me, encorajam-me e dizem que meu sacrifício não foi desagradável ao grande Espírito que, sob o olho e a mão de Deus, preside aos destinos da Humanidade”.
A pobre Mary (Médium: Sr. d’Ambel)
Depois dessa comunicação, o Espírito Lamennais fez a seguinte apreciação sobre o fato em questão:
Esta infeliz mulher é uma das vítimas de vosso mundo, de vossas leis e de vossa sociedade. Deus julga as almas, mas também julga os tempos e as circunstâncias; julga as coisas forçadas e o desespero; julga o fundo e não a forma. E ouso afirmar: esta infeliz morreu não por crime, mas por pudor, por medo da vergonha. É que onde a justiça humana é inexorável, julga e condena os fatos materiais, a justiça divina constata o fundo do coração e o estado da consciência. Seria desejável que em certas naturezas privilegiadas fosse desenvolvido um dom que seria muito útil, não para os tribunais, mas para o adiantamento de algumas pessoas: esse dom é uma espécie de sonambulismo do pensamento, que muitas vezes descobre as coisas ocultas, mas que o homem habituado à corrente da vida, negligencia e atenua por sua falta de fé. É certo que um médium desse gênero, examinando esta pobre mulher, teria dito: Esta mulher é abençoada por Deus porque é infeliz e este homem é amaldiçoado porque lhe recusou pão. Ó Deus! quando, pois, todos os teus dons serão reconhecidos e postos em prática? Aos olhos da tua justiça, aquele que recusou o pão será punido, porquanto o Cristo disse: “Aquele que dá pão ao seu próximo, a mim mesmo o dá.
Lamennais (Médium: Sr. A. Didier)




[1] Revista Espírita – Maio/1862 – Allan Kardec

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