Uma correspondência de Crefled
(Prússia Renana), de 25 de janeiro de 1862, inserida no Constitutionnel de 4 de
fevereiro, contém o seguinte fato:
Uma pobre viúva, mãe
de três filhos, entra numa padaria e pede insistentemente que lhe vendam um pão
fiado.
Porque o padeiro
recusasse, a viúva reduz o seu pedido a meio pão e, por fim, a uma libra de
pão, apenas, para os filhos famintos. O padeiro recusa ainda, deixa o lugar e
se dirige para o fundo da padaria. Crendo não ser vista, a mulher se apossa de
um pão e sai.
Mas o roubo,
imediatamente descoberto, é denunciado à polícia.
Um agente vai à casa da viúva e a surpreende
cortando o pão em pedaços para dar aos filhos. Ela não nega o roubo, mas se
desculpa com a necessidade. Embora censurando a crueldade do padeiro, o agente
insiste para que ela o acompanhe à delegacia.
A viúva pede apenas
alguns instantes para trocar de roupa e entra no quarto; porque demorasse, o
agente, perdendo a paciência, resolve abrir a porta: a infeliz jazia no chão,
inundada de sangue. Com a mesma faca com que acabara de cortar o pão para os
filhos pusera fim aos seus dias.
Tendo sido lida a notícia na
sessão da Sociedade de 14 de fevereiro de 1862, foi proposta a evocação dessa
infeliz mulher, quando ela mesma veio manifestar-se espontaneamente, conforme comunicação
a seguir. Acontece muitas vezes que os Espíritos de quem falamos se revelam
dessa maneira. É incontestável que são atraídos pelo pensamento, que é uma
espécie de evocação tácita.
Sabem que a gente se ocupa deles
e vêm; então se comunicam, se a ocasião lhes parece oportuna ou se encontram o
médium que lhes convém. De acordo com isto, compreende-se não haver necessidade
de ter um médium, nem mesmo de ser espírita para atrair os Espíritos com os
quais nos preocupamos.
Deus foi bom para a
pobre alucinada e venho agradecer-vos a simpatia que houvestes por bem
testemunhar-me.
Infelizmente, diante
da miséria e da fome de meus pobres filhinhos, esqueci-me e fali. Então disse
de mim para mim: visto que és impotente para alimentar teus filhos e que o
padeiro recusa o pão aos que não podem pagar; desde que não tens dinheiro nem trabalho,
morre! Porque, quando não estiveres mais com eles, virão em seu auxílio.
Efetivamente, hoje a caridade pública adotou esses pobres órfãos. Deus me
perdoou, porque viu a minha razão vacilar e meu pungente desespero. Fui a
vítima inocente de uma sociedade má, muito mal regulada. Ah! Agradecei a Deus
por vos ter feito nascer nesta bela região da França, onde a caridade vai
procurar e aliviar todas as misérias.
Rogai por mim, a fim
de que em breve eu possa reparar a falta cometida, não por covardia, mas por
amor materno.
Como os vossos
Espíritos protetores são bons! Consolam-me, fortificam-me, encorajam-me e dizem
que meu sacrifício não foi desagradável ao grande Espírito que, sob o olho e a
mão de Deus, preside aos destinos da Humanidade”.
A pobre Mary (Médium: Sr. d’Ambel)
Depois dessa comunicação, o
Espírito Lamennais fez a seguinte apreciação sobre o fato em questão:
Esta infeliz mulher
é uma das vítimas de vosso mundo, de vossas leis e de vossa sociedade. Deus
julga as almas, mas também julga os tempos e as circunstâncias; julga as coisas
forçadas e o desespero; julga o fundo e não a forma. E ouso afirmar: esta
infeliz morreu não por crime, mas por pudor, por medo da vergonha. É que onde a
justiça humana é inexorável, julga e condena os fatos materiais, a justiça
divina constata o fundo do coração e o estado da consciência. Seria desejável
que em certas naturezas privilegiadas fosse desenvolvido um dom que seria muito
útil, não para os tribunais, mas para o adiantamento de algumas pessoas: esse
dom é uma espécie de sonambulismo do pensamento, que muitas vezes descobre as
coisas ocultas, mas que o homem habituado à corrente da vida, negligencia e
atenua por sua falta de fé. É certo que um médium desse gênero, examinando esta
pobre mulher, teria dito: Esta mulher é abençoada por Deus porque é infeliz e
este homem é amaldiçoado porque lhe recusou pão. Ó Deus! quando, pois, todos os
teus dons serão reconhecidos e postos em prática? Aos olhos da tua justiça,
aquele que recusou o pão será punido, porquanto o Cristo disse: “Aquele que dá
pão ao seu próximo, a mim mesmo o dá.
Lamennais (Médium: Sr. A. Didier)
[1] Revista
Espírita – Maio/1862 – Allan Kardec
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