Nubor Orlando Facure[2]
"É preciso nascer de novo" passando
por experiências múltiplas no decurso das encarnações. Uma questão em aberto e
extremamente complexa é: até onde podemos saber o quanto e como são
transferidos para o cérebro físico de uma criança, que está por nascer, o
conteúdo de sabedoria e talentos adquiridos pelo Espírito no decurso de suas
existências.
O desenvolvimento do
sistema nervoso
O patrimônio genético dessa
criança põe ordem no seu desenvolvimento, acrescentando aptidões por etapas,
que coincidem, essas fases, com a progressiva mielinização das fibras nervosas.
Primeiro, são mielinizadas fibras de baixo para cima, que permitem a atividade
motora das pernas e depois dos braços. No cérebro, a organização é de trás para
frente, primeiro as áreas visuais nos polos occipitais e depois o lobo frontal
que só completa sua formação depois dos 17 anos.
A memória – quem eu sou? Sou o
que minhas memórias dizem.
O bebê humano ao nascer não está
zerado em suas memórias. Os testes especializados confirmam que ele tem arquivado
a voz da mãe e possivelmente outros sons que ouviu enquanto no útero, sem que
haja confirmação que ouvir músicas de Mozart dará a essa criança um cérebro de
um músico de talento.
O que é do conhecimento geral é
que a criança não consolida, armazena ou retém como memória suas experiências
até aos três anos de idade – esse esquecimento é conhecido como "amnésia
infantil''.
Do ponto de vista espiritual não
temos, como regra geral, nenhuma lembrança de nossas vidas passadas. Ensinam os
autores espíritas que, mesmo não tendo essas lembranças, de uma maneira ou de
outra, podemos perceber em cada um de nós certas tendências trazidas de outras
vidas – ideias inatas ou mesmo pendores que se revelam sem maior esforço. Um
determinado profissional, com formação acadêmica numa área específica, pode
perceber suas tendências e habilidades em competências completamente diferente.
Um professor de matemática ou uma psicóloga podem exercer em paralelo um
talento para música, artesanato, ou um talento literário como fez o médico
Guimarães Rosa.
Personalidade, caráter e
temperamento têm uma base genética e, seguramente, uma influência da bagagem
espiritual de outras vidas. Um Espírito amigo nos ensinou que podemos não saber
o que fomos, mas, não é difícil saber o que fizemos em vidas anteriores.
Uma nota breve sobre
os tipos de memórias
Podemos tirar da classificação
das memórias três expressões fundamentais:
A memória semântica, a episódica,
que fazem parte da memória declarativa e, a memória implícita ou de procedimento.
A memória semântica se refere ao conhecimento adquirido pelas lições
que aprendemos de uma forma ou de outra: quem nasce no Brasil é brasileiro,
Paris é a capital da França, Voltaire foi um grande filósofo do iluminismo, a
América foi descoberta por Cristóvão Colombo.
A memória episódica, é personalizada, refere-se a fatos pessoais
vividos por nós, é narrativa e por isso falha. Sua consolidação é mais firme
nos dados autobiográficos: meu nome, meu endereço, meu estado civil, a cidade
onde nasci, minha nacionalidade, de quem sou filho, que profissão exerço, quem
são meus filhos. A memória episódica de eventos pessoais, se refere a
acontecimentos vividos por nós, recentes ou não: O que almocei ontem? Quem me
telefonou essa tarde? Que praia fui nesse fim de ano? Quem me visitou nesse
domingo? Esse modo de memória (episódica) tem uma marca temporal e é fortemente
contextualizada. Com as marcas do tempo: fui na praia no natal, viajei na
semana santa, fui pescar em fevereiro do ano passado, troquei de carro em dezembro.
Ligadas ao contexto: assisti aquele filme no Shopping com minha esposa. Adorei
o camarão daquele restaurante de Joinville, eu estava no hotel quando ouvi
aquela notícia, foi no jogo de futebol que torci o tornozelo, fiquei em casa
porque chovia muito. Essas memórias podem ser resgatadas, mas, como são retidas
principalmente no hipocampo, ao serem lembradas nós sempre fazemos uma nova
descrição dos fatos. Daí a incerteza dos testemunhos nos episódios da vida.
As memórias episódicas para
eventos pessoais são fugidias e enganosas. Quem relatar sua festa de casamento
faz o mesmo que os pescadores ou os jogadores, a cada relato produzem uma nova
versão. É o que diziam os antigos: "quem conta um conto aumenta um
ponto".
As memórias de procedimento são as habilidades aprendidas. Andar de
bicicleta, dirigir o automóvel, pilotar o avião, dedilhar o teclado, lidar com
a prensa da fábrica, talhar a madeira numa peça de artesanato, tocar ao piano,
desenhar ou pintar uma paisagem.
Por outro lado, são extremamente
corriqueiras, no ambiente familiar de muitos de nós, a ocorrência das memórias
de procedimento. Há em quase toda família os desenhistas, os pintores, os
pianistas, os artesões habilidosíssimos que fazem castelos na areia ou na
madeira sem qualquer ensinamento prévio. Observando bem, em cada um de nós
podemos perceber que as memórias episódicas são consolidadas firmemente até que
alguma demência nos atinja nos fazendo esquecer até mesmo o nome.
Recordando a história
de vidas anteriores. Isso é possível?
São ocorrências raras, mas, vez
por outra encontramos crianças fazendo relatos de terem vivido em outro lugar e
dando as identificações necessárias para essa comprovação. A literatura médica
e o cinema têm relatos enriquecedores que atestam a reencarnação e a ocorrência
de permanência dessas memórias episódicas. Geralmente, com o crescimento da
criança essas memórias se perdem. São também excepcionais, mas bem descritos,
casos de persistência das memórias semânticas. São algumas crianças rotuladas
de autistas, ou “idiots savans” que são capazes de responder brilhantemente
sobre determinado tema de conhecimento geral ou de um domínio particular como
literatura ou matemática.
Por outro lado, certos eventos
de nossa vida podem ocorrer carregados de forte emoção e um susto ou uma ameaça
pode consolidar com mais força determinada ocorrência. Uma batida com o nosso
carro em que alguém sai ferido, a ameaça de um assalto ou um sequestro, o medo
de enfrentar uma cirurgia de risco, a dor de um fêmur fraturado na queda de uma
bicicleta
Considerando a reencarnação, é
provável que as memórias episódicas, carregadas de forte emoção física ou
psíquica, podem ser uma boa explicação para nossos medos, as crises de pânico,
as fobias, as dificuldades para enfrentar o elevador, o avião, uma picada da
vacina, uma cobra, uma aranha, uma simples barata ou falar em público.
As memórias de procedimento
No decorrer da vida vamos
aprendendo habilidade e adquirindo competências comuns a nós humanos: andar,
correr, escrever, nadar, dirigir, pilotar, andar de bicicleta, soltar uma pipa
e outras de maior destaque: tocar piano, violino, cantar com o violão, pintura,
artesanato entre muitas outras.
O maior destaque nesse tipo de
memória é que ela é mais ou menos permanente. Ninguém esquece como nadar ou
andar de bicicleta. O dedilhar o violão ou o piano, por outro lado, exige
treinamento constante, mas, os rudimentos básicos permanecem para sempre. Nunca
me esqueço que o primeiro paciente que conheci com a doença de Alzheimer era um
alfaiate. Não sabia dizer o nome da esposa, nem o seu endereço, mas,
gesticulava com as mãos e mostrava como fazia o corte de tecido para fazer um
terno – o paciente com essa doença é treinável e capaz de aprender certas
habilidades motoras novas, mas, não retém um conhecimento novo, como por
exemplo o endereço do hospital.
Pode-se conjecturar que as
memórias de procedimento são as que mais se conservam de uma encarnação para
outra. Elas permanecem sempre mais firmemente consolidadas em nosso cérebro –
principalmente nos núcleos basais e no cerebelo – e os exemplos são parte da
história de todas as famílias – são as aptidões, os talentos, as tendências, os
pendores artísticos e os desempenhos que surgem facilmente no artesanato, na
música, na pintura, no esporte entre tantos outros.
Um resumo simples
A memória autobiográfica é
firme, confiável, nos acompanha pela vida toda sem distorções. Nós a perdemos
quando ocorrem leões cerebrais graves. Dificilmente ela permanece no transcurso
de uma vida para outra.
A memória episódica é facilmente
distorcida. Ela é regatada sempre com uma nova versão, não é recuperada. É
recontada. É sensível aos eventos emocionais que aumentam os seus traços. Podem
justificar o que sentimos hoje em forma de medos, fobias, traumas psíquicos, déjà-vu e outros fenômenos da
psicopatologia humana.
A memória de conhecimentos,
semântica, é acumulativa é pode favorecer o aprendizado em determinadas áreas
de uma vida para outra.
E, finalmente, as memórias de procedimento
que se expressam, geralmente, em habilidades motoras. São mais sólidas,
costumamos dizer que ninguém esquece como andar de bicicleta. De uma encarnação
para outra, elas podem permanecer como uma tendência profissional, talentos
artísticos diversos, predisposição para esse ou aquele esporte.
E o que a morte fará
com as nossas memórias?
Diz o povo que “dessa vida nada
se leva”. Eu costumo dizer que, obrigatoriamente, vamos levar os nossos
neurônios, estão impressos neles a nossa identidade. Um neurocirurgião famoso
fazia suas cirurgias com o paciente acordado. Com o crânio aberto ele
estimulava eletricamente várias áreas cerebrais. Além das repostas motoras e
sensitivas ele conseguia estimular a região temporal onde produzia
reminiscências guardadas pelo paciente. Sabemos todos, como espíritas, que o
que ocorre no cérebro é transferido ao Espírito através de um veículo semimaterial,
o perispírito. Mas, durante toda nossa vida, as redes neurais acumulam um rico
aprendizado que consolida nossos comportamentos e enriquece nossas memórias. Os
exames de Ressonância Funcional e a estimulação direta nos neurônios detectam
essas competências.
A pergunta é: tudo isso se
desfaz com a morte? Aprendemos com a doutrina espírita que esse material é
inteiramente transferido para o perispírito. Esse fenômeno nos permite
conjecturar algumas consequências:
Logo após a morte, seremos
exatamente os mesmos que somos hoje. Com as mesmas memórias, comportamentos e
experiências. Isso explica porque, mesmo desencarnados, há Espíritos que
continuarão duvidando da reencarnação. E, para maioria de nós, não será de um
dia para o outro que teremos acesso as memórias do nosso passado.
[2] Nubor Orlando Facure - é formado em Medicina, com especialização em Neurologia e
Neurocirurgia, trabalhou durante 30 anos na UNICAMP, onde se tornou professor
titular de Neurocirurgia. Em 1990, criou no Departamento de Neurologia da
universidade e o primeiro curso de pós-graduação sobre "Cérebro e
Mente", com enfoque espiritualista. Hoje é diretor do Instituto do Cérebro
de Campinas, que fundou em 1987. É conhecido no meio espírita de Campinas como
pesquisador e expositor de temas da Ciência Espírita, tendo desenvolvido estudos
pioneiros em Neurociência aplicada à Mediunidade.
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