Controle do Ensino Espírita[1]
A organização que propusemos
para a formação dos grupos espíritas tem como objetivo preparar o caminho que
deve facilitar as relações mútuas entre eles. Entre as vantagens que resultarão
de tais relações, deve-se colocar em primeira linha a unidade de doutrina, que
será a sua consequência natural. Esta unidade já se acha em grande parte
realizada e as bases fundamentais do Espiritismo são hoje admitidas pela imensa
maioria dos adeptos. Mas ainda há questões duvidosas, seja porque não tenham
sido resolvidas, seja porque o foram em sentido diverso pelos homens e, até
mesmo, pelos Espíritos.
Se por vezes os sistemas são
produtos dos cérebros humanos, sabe-se que, a tal respeito, certos Espíritos
nada ficam a dever. Com efeito, veem-se alguns que engendram as mais absurdas ideias
com maravilhosa habilidade, encadeando-as com muita arte e delas fazendo um
conjunto mais engenhoso que sólido, mas que poderia falsear a opinião de
pessoas que não se dão ao trabalho de aprofundar, ou que são incapazes de o
fazer pela insuficiência de seus conhecimentos. Sem dúvida as ideias falsas
acabam caindo ante a experiência e a lógica inflexível; mas, antes disso, podem
lançar a incerteza.
Também é sabido, conforme sua
elevação, que os Espíritos podem ter, sobre certos pontos, uma maneira de ver mais
ou menos justa; que as assinaturas das comunicações nem sempre são uma garantia
de autenticidade, e que os Espíritos orgulhosos procuram, às vezes, fazer passar
utopias, protegidos por nomes respeitáveis, com os quais se paramentam. É, incontestavelmente,
uma das principais dificuldades da ciência prática, e contra a qual muitos se
chocaram.
Em caso de divergência, o melhor
critério é a conformidade dos ensinos por diferentes Espíritos e transmitidos por
médiuns completamente estranhos entre si. Quando o mesmo princípio for
proclamado ou condenado pela maioria, é preciso dar-nos conta da evidência. Se
há um meio de chegar à verdade, seguramente é pela concordância e pela
racionalidade das comunicações, auxiliadas pelos meios que temos à nossa
disposição para constatar a superioridade ou a inferioridade dos Espíritos. Ao deixar
de ser individual para se tornar coletiva, a opinião adquire um maior grau de
autenticidade, já que não pode ser considerada como resultado de uma influência
pessoal ou local. Os que ainda se acham em dúvida terão uma base para fixar as ideias,
porquanto será irracional pensar que aquele que em seu ponto de vista está só, ou
quase só, tenha razão contra todos.
O que acima de tudo contribuiu
para o crédito da doutrina de O Livro dos
Espíritos foi precisamente o fato de ser ela o produto de um trabalho
semelhante, que repercute em toda parte.
Como o dissemos, nem é obra de
um único Espírito, que poderia ser sistemático, nem de um único médium, que
poderia ser enganado, mas, ao contrário, um ensino coletivo, dado por uma grande
diversidade de Espíritos e de médiuns, e os princípios que encerra são
confirmados mais ou menos por toda parte. Dizemos mais ou menos considerando
que, pela razão acima explicada, há Espíritos que procuram fazer prevaleçam
suas ideias pessoais. É, pois, inútil submeter ideias divergentes ao controle
que propomos.
Se a doutrina ou algumas teorias
que professamos fossem reconhecidas unanimemente como errôneas,
submeter-nos-íamos sem murmuração, sentindo-nos felizes que outros tenham encontrado
a verdade; mas se, ao contrário, elas forem confirmadas, hão de permitir
creiamos estar com a verdade.
A Sociedade Espírita de Paris,
compreendendo toda a importância de semelhante trabalho e tendo, ela mesma,
primeiro que se esclarecer e depois provar que não pretende absolutamente arvorar-se
em árbitro absoluto das doutrinas que professa, submeterá aos diversos grupos
que com ela se correspondem as questões que julgar mais úteis à propagação da
verdade. Essas questões serão comunicadas, seja por correspondência particular,
seja por intermédio da Revista Espírita.
Compreende-se que para ela, e em
razão da maneira séria por que encara o Espiritismo, a autoridade das
comunicações depende das condições em que se realizam as reuniões, do caráter dos
membros e do objetivo a que se propõem. Oriundas de grupos formados sobre as
bases indicadas em nosso artigo sobre a organização do Espiritismo, as
comunicações terão tanto mais peso a seus olhos quanto melhores forem as
condições desses grupos.
Submetemos aos nossos
correspondentes as questões que se seguem, enquanto aguardam as que lhes
dirigiremos ulteriormente.
1o – Formação da Terra
Existem dois sistemas sobre
a origem e a formação da Terra. Segundo a opinião mais comum, a que parece geralmente
adotada pela Ciência, seria o produto da condensação gradual da matéria cósmica
sobre um ponto determinado do espaço. O mesmo teria ocorrido com os demais
planetas.
Conforme outro sistema,
preconizado nos últimos tempos e segundo a revelação de um Espírito, a Terra
teria sido formada pela incrustação de quatro satélites de um antigo planeta desaparecido.
Tal adjunção teria resultado da própria vontade da alma desses planetas. Um
quinto satélite, nossa Lua, ter-se-ia recusado, em virtude de seu
livre-arbítrio, a essa associação. Os vazios deixados entre eles pela ausência
da Lua teriam formado as cavidades preenchidas pelos mares. Cada um desses
planetas teria trazido consigo seres catalépticos – homens, animais e plantas –
que lhe eram peculiares.
Saídos de sua letargia,
depois de operada a adjunção e restabelecido o equilíbrio, esses seres teriam
povoado o globo atual.
Tal seria a origem das
raças-mãe do homem da Terra: a raça negra na África, a amarela na Ásia, a
vermelha na América e a branca na Europa.
Qual destes dois sistemas
pode ser considerado como expressão da verdade?
A propósito deste assunto,
bem como dos outros, solicitamos uma solução explícita e racional.
Observação –
É verdade que esta e outras questões se afastam do ponto de vista moral, que é
a meta essencial do Espiritismo. Eis por que seria um equívoco fazê-las objeto
de preocupações constantes. Sabemos, aliás, no que respeita ao princípio das
coisas, que os Espíritos, por não saberem tudo, só dizem o que sabem ou o que
pensam saber. Mas como há pessoas que poderiam tirar da divergência desses
sistemas uma indução contra a unidade do Espiritismo, precisamente porque são formulados
pelos Espíritos, é útil poder comparar as razões pró e contra, no interesse da
própria doutrina, e apoiar no assentimento da maioria o julgamento que se pode
fazer do valor de certas comunicações.
2o – Alma da Terra
Encontramos a seguinte
proposição numa brochura intitulada Resumo da Religião Harmônica.
“Deus criou o homem, a
mulher e todos os mais belos e melhores seres, mas concedeu a todos os astros o
poder de criar seres de ordem inferior, a fim de completar o seu mobiliário,
quer pela combinação de seu próprio fluido fecundante, conhecido em nosso globo
pelo nome de aurora boreal, quer com a combinação desse fluido com o de outros
astros. Ora, a alma do globo terrestre, desfrutando, como as almas humanas, de
seu livre-arbítrio, isto é, da faculdade de escolher o caminho do bem ou do
mal, deixou-se arrastar por este último. Daí as criações imperfeitas e más,
tais os animais ferozes e venenosos e os vegetais peçonhentos. Mas a Humanidade
fará desaparecer esses seres nocivos quando, ao se pôr de acordo com a alma da
Terra para marchar pelo caminho do bem, ocupar-se de maneira mais inteligente
da gestão do globo terrestre, no qual será criado um mobiliário mais perfeito”.
O que há de verdadeiro
nesta proposição, e o que se deve entender por alma da Terra?
3o – Sede da alma humana
Lê-se na mesma obra a
passagem seguinte, citada como extrato de A Chave da Vida, página 751: “A alma
é de natureza luminosa, divina. Tem a forma do ser humano que anima. Reside num
espaço situado na substância cerebral mediana, que reúne os dois lobos do cérebro
por sua base. No homem harmonioso e na unidade, a alma, diamante
resplandecente, é cingida por uma branca coroa luminosa: a coroa da harmonia”.
O que há de verdadeiro
nesta proposição?
4o – Morada das Almas
Na mesma obra: “Enquanto
habitam as regiões planetárias, os Espíritos são obrigados a reencarnar para
progredirem. Desde que chegam às regiões solares, não mais necessitam da
reencarnação e progridem indo habitar outros sóis de ordem superior, de onde passam
às regiões celestes. A Via-Láctea, de luz tão suave, é a morada dos anjos ou
Espíritos superiores”.
Isto é verdade?
5o – Manifestação dos Espíritos
Conforme a doutrina
ensinada por um Espírito, nenhum Espírito humano pode manifestar-se ou
comunicar-se com os homens, nem servir de intermediário entre Deus e a Humanidade,
considerando-se que sendo Deus onipotente e onipresente, não necessita de
auxiliares para a execução de sua vontade, pois tudo faz por si mesmo. Em todas
as comunicações ditas espíritas, só Deus se manifesta, tomando a forma nas aparições,
e a linguagem nas comunicações escritas, dos Espíritos que evocamos e aos quais
julgamos falar. Em consequência, estando morto o homem, não poderá mais haver
relações entre ele e os que ficaram na Terra, até que, por uma série de
reencarnações sucessivas, durante as quais progridem, tenham atingido o mesmo grau
de adiantamento no mundo dos Espíritos. Como só Deus pode manifestar-se,
segue-se que as comunicações grosseiras, triviais, blasfematórias e mentirosas
também são dadas por Ele – mas como prova – do mesmo modo que as dá boas, a fim
de instruir. Naturalmente o Espírito que ditou esta teoria faz-se passar pelo
próprio Deus, formulando, sob esse nome, uma extensa doutrina filosófica,
social e religiosa.
Que se deve pensar de tal
sistema, de suas consequências e da natureza do Espírito que o ensina?
6o – Anjos rebeldes, anjos decaídos e paraíso perdido
Que pensar da teoria
formulada a respeito disto, no artigo acima publicado pelo Sr. Allan Kardec?
[1] Revista
Espírita – Janeiro/1862 – Allan Kardec
[2] N. do T.: Aqui Allan Kardec já começa a esboçar algumas
teorias que, desenvolvidas posteriormente, passarão a integrar o último livro
da Codificação Espírita. (Vide A Gênese, capítulo VIII).
[3] Nota da Editora: Ver “Nota Explicativa”‒ Revista Espírita
– Janeiro/1862 ‒ p. 529.
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