“(O
Espírito) pode lembrar-se dos mais minuciosos pormenores e incidentes, assim
relativos aos fatos, como até aos seus pensamentos. Não o faz, porém, quando não
tenha utilidade.” (O Livro dos Espíritos, A. Kardec,
questão # 306a).
Ilustração de Gustave Doré (Wikipédia) para o "Le
Petit Poucet" de Charles Perrault em "Histoires ou Contes du Temps
passé: Les Contes de ma Mère l'Oye” (1697)
Ademir Xavier
Artigos acadêmicos promovidos por textos de
divulgação na internet refs.(1,2,3) relatam o reconhecimento recente de uma
"nova" anomalia psicológica: a "Memória Autobiográfica Altamente
Superior", em inglês HSAM ou "Highly Superior Autobiographical
Memory" (também chamado "Hipertimesia").
Essa anomalia é caracterizada
pela capacidade de alguns indivíduos ‒ a estatística de casos reportados é de
60 no mundo ‒ de se lembrarem de forma bastante detalhada de eventos da sua
vida. Um dos casos que chama a atenção é o de Rebecca Sharrock, que se lembra
de quando era bebê e de acontecimentos de sua primeira infância, embora não
tenha lembranças intrauterinas. Outro é o de Markie Pasternak (2). "Leva
certo tempo para se lembrar", comenta Markie, que se recorda de eventos
com precisão de uma hora. "Eu não decoro as coisas", ela diz,
"não é assim que funciona, eu tenho que ver as coisas, estar lá, tenho que
viver, do contrário, aquilo não me afeta" (2).
Tais relatos são muitas vezes
tomados com ceticismo, afinal, nossas memórias são eventos privados, que não
podem ser "comprovados" externamente. Com a raridade dos casos, há
céticos obtusos (os "neuro céticos") que consideram todos fraudes.
Para eles essas memórias são baseadas em registros obsessivos em agendas de
papel... De uma forma ou de outra, os poucos casos de super memória hoje fazem
parte de material de pesquisa realizada no "Centro de Neurobiologia da
Memória e do Aprendizado" da UC Irvine (4). De acordo com a descrição
desse centro de pesquisa, responsável pelo registro e classificação da síndrome
de forma pioneira em 2006 (5):
Indivíduos que tem HSAM têm
uma habilidade superior de se lembrar de detalhes específicos de eventos
autobibliográficos, gastam uma grande quantidade de tempo lembrando de seu
passado e têm uma compreensão detalhada do calendários e de suas
características. (4)
O indivíduo não só consegue
dizer qual o dia da semana a que se refere determinada data (sem nenhum tipo de
cálculo, apenas de "memória da data" mesmo), mas também se lembra em
detalhes do que fez ou sofreu naquele dia específico. De acordo com testes
feitos na instituição, indivíduos com HSAM não demonstram habilidade superior
em testes padrão de memória em comparação a pessoas consideradas
"normais". Há também indícios de que a capacidade extraordinária de
se lembrar de detalhes do passado seja um empecilho à realização de atividades
do dia a dia, mas, ao que parece, portadores dessa capacidade apreciam ser
exatamente como são.
A que podemos atribuir essa
capacidade? Para a ciência desprovida da ideia de espírito imortal, a HSAM deve
ser atribuída a alguma anomalia neuronal importante ‒ possivelmente herdada
(dai a crença em uma base genética) e rastreável por meio de exames (com os de
imagem por ressonância magnética). Segundo a página da ref.(4), algumas
evidências observadas do cérebro indicam "regiões ou redes neurais
específicas que se distinguem de grupos de controle, embora esse trabalho ainda
seja bastante preliminar" (veja, sobre isso a ref.(6)). A cautela se
justifica, já que o estudo foi feito com base em apenas um indivíduo e
variações anatômicas do cérebro tendem a ocorrer de forma distribuída na
população. Ou seja, pode ser o caso de que por mera chance aquele indivíduo que
mostra HSAM tem também um cérebro algo diferente anatomicamente.
A HSAM e sua base no
espírito
Independente da explicação
materialista, chama a atenção a um espírita com alguma leitura de O Livro dos Espíritos (LE), de A.
Kardec, as claras bases espirituais dessa nova capacidade. Basta para isso
lembrar a questão #306 e # 306a:
306. O Espírito se lembra,
pormenorizadamente, de todos os acontecimentos de sua vida? Apreende o conjunto
deles de um golpe de vista retrospectivo?
‒ Lembra-se das coisas, de
conformidade com as consequências que delas resultaram para o estado em que se
encontra como Espírito errante. Bem compreendes, no entanto, que muitas
circunstâncias haverá de sua vida a que não ligará importância alguma e das
quais nem sequer procurará recordar-se.
a) Mas, se o quisesse,
poderia lembrar-se delas?
‒ Pode lembrar-se dos mais
minuciosos pormenores e incidentes, assim relativos aos fatos, como até aos
seus pensamentos. Não o faz, porém, quando não tenha utilidade.
As respostas dadas pelos
Espíritos também afirmam que o espírito se interessa pelas lembranças que
tenham impacto em sua vida maior, principalmente as de vidas anteriores. Não é
que o Espírito não tenha a capacidade de se lembrar, mas sim que, a medida que
evolui, atribui menos importância aos pequenos fatos do dia a dia que em nada
ajudariam ao seu progresso:
308. O Espírito se recorda
de todas as existências que precederam a que acaba de ter?
Todo o seu passado se lhe
desdobra à vista, quais a um viajor os trechos do caminho que percorreu. Mas,
como já dissemos, não se recorda de modo absoluto de todos os seus atos.
Lembra-se destes na medida da influência que tiveram na criação do seu estado
atual. Quanto às primeiras existências, as que se podem considerar a infância
do Espírito, essas se perdem no vago e desaparecem na noite do esquecimento.
É compreensível que as
lembranças das primeiras existências tenham se perdido, uma vez que a própria
estrutura corpórea era menos aprimorada, de forma que concluímos que, quanto
mais evoluído o Espírito, tanto maior será sua capacidade de reter, na memória,
pequenos fatos. É provável que a condição da HSAM reflita uma modificação
corporal recente (afinal o corpo também está evoluindo) que leve a disseminação
dessa capacidade na população em um futuro ainda distante (e então a
Hipertimesia será "epidêmica"...).
Na figura acima, esta imagem
simboliza o funcionamento da memória. Lembrar-se significa jogar luz e
"ver de novo", através da lanterna do espírito, nas memórias do
passado que são registradas de forma perene na mente imortal. Dai que a falta
da luz não significa que não há memórias, mas que essas jazem na escuridão
criada pelo corpo físico (leia-se "cérebro") como uma restrição
imposta ao espírito encarnado.
Também chama a atenção as
desvantagens da HSAM, que nos remetem à importância do esquecimento dos fatos
passados, uma necessidade que o Espiritismo também foi pioneiro em identificar.
Sobre isso, a ref.(7) de J. Marshall, publicada na revista "New
Scientist" parece validar essa relevante lição espírita ao afirmar que o
"esquecimento é a chave para uma mente saudável". Certamente é, se
tais fatos anteriores prejudicarem nosso progresso espiritual, exatamente como
previram os Espíritos no LE.
Não há dúvidas para nós de que a
HSAM se acha estabelecida no espírito imortal e o cérebro é apenas a interface
que permite registrar tais fatos a partir do mundo material externo (ver Fig. acima).
Se ele os registra, é ele também que os oculta em grande parte da visão interna
pela qual o espírito se lembra e retém em sua memória "espiritual"
todos esses acontecimentos. Ainda que, no estado encarnado, ele não se lembre
de um fato porque passou ‒ seja na presente existência, mas, principalmente,
nas passadas ‒ isso não implica que ele não o guarde, retido nas camadas mais
profundas de sua memória extrafísica.
Para leitores interessados em
publicações acadêmicas sobre o assunto, recomendamos a leitura de (5) a (7).
Referências:
1 - A mulher que lembra de
como era ser um bebê:
2 - Only 60 People in the World
Have This Insanely Powerful Memory:
3 - TV24. Esta mulher
lembra-se de tudo o que viveu desde que nasceu:
4 - Center for the Neurobiology of Learning and Memory, C CNLM Ayala
School of Biological Sciences. Highly Superior Autobiographical Memory:
5 - Parker, E. S., Cahill, L., & McGaugh, J. L. (2006). A case of
unusual autobiographical remembering. Neurocase, 12(1), 35-49.
6 - LePort, A. K., Mattfeld, A. T., Dickinson-Anson, H., Fallon, J. H.,
Stark, C. E., Kruggel, F., ... & McGaugh, J. L. (2012). Behavioral and
neuroanatomical investigation of highly superior autobiographical memory
(HSAM). Neurobiology of learning and memory, 98(1), 78-92.
7 - Marshall, J. (2008). Forgetfulness is Key to a Healthy Mind. New
Scientist Magazine, (2643). Ver:
Nenhum comentário:
Postar um comentário