quinta-feira, 2 de novembro de 2017

A PROPÓSITO DA COMEMORAÇÃO DOS MORTOS[1]


 


A Sociedade Espírita de Paris reuniu-se especialmente, pela primeira vez, a 2 de novembro de 1864, visando a oferecer uma piedosa lembrança a seus falecidos colegas e irmãos espíritas. Naquela ocasião o Sr. Allan Kardec desenvolveu o princípio da comunhão do pensamento, no discurso seguinte:
Caros irmãos e irmãs espíritas,
Estamos reunidos, neste dia consagrado pelo uso à comemoração dos mortos, para dar aqueles dos nossos irmãos que deixaram a terra, um testemunho particular de simpatia, para continuar as relações de afeição e de fraternidade, que existiam entre eles e nós, enquanto vivos, e para chamar para eles as bondades do Todo-Poderoso. Mas, porque nos reunirmos? Por que nos desviarmos de nossas ocupações? Não pode cada um fazer em particular aquilo que nos propomos fazer em comum? Não o faz cada um pelos seus? Não o pode fazer diariamente todos os dias e a cada hora? Qual, então, a utilidade de assim se reunir num dia determinado? É sobre este ponto, senhores, que me proponho apresentar-vos algumas considerações.
O favor com que a ideia desta reunião foi acolhida é a primeira resposta a essas diversas questões. Ela é o índice da necessidade que experimentamos ao nos acharmos juntos numa comunhão de pensamentos.
Comunhão de pensamentos! Compreendemos bem todo o alcance desta expressão? É permitido duvidá-lo, pelo menos do maior número. O Espiritismo, que nos explica tantas coisas pelas leis que revela, ainda vem explicar a causa, os efeitos e a força dessa situação de espírito.
Comunhão de pensamento quer dizer pensamento comum, unidade de intenção, de vontade, de desejo, de aspiração. Ninguém pode desconhecer que o pensamento é uma força. É, porém, uma força puramente moral e abstrata? Não: do contrário não se explicariam certos efeitos do pensamento e, ainda menos, da comunhão de pensamento. Para compreendê-lo é preciso conhecer as propriedades e a ação dos elementos que constituem nessa essência espiritual, e é o Espiritismo que no-las ensina.
O pensamento é o atributo característico do ser espiritual; é ele que distingue o espírito da matéria; sem o pensamento o espírito não seria espírito. A vontade não é um atributo especial do espírito; é o pensamento chegado a um certo grau de energia; é o pensamento transformado em força motriz. É pela vontade que o espírito imprime aos membros e ao corpo movimentos num determinado sentido. Mas se tem a força de agir sobre os órgãos materiais, quanto maior não deve ser sobre os elementos fluídicos que nos rodeiam! O pensamento age sobre os fluídos ambientes, como o som sobre o ar; esses fluidos nos trazem o pensamento, como o ar nos traz o som. Pode, pois, dizer-se com toda a verdade que há nesses fluidos ondas e raios de pensamento que se cruzam sem se confundir, como há no ar ondas e raios sonoros.
Uma assembleia é um foco onde irradiam pensamentos diversos; é como uma orquestra, um coro de pensamentos onde cada um produz a sua nota. Disto resulta uma porção de correntes e de eflúvios fluídicos dos quais cada um recebe a impressão dos sons pelo sentido da audição.
Mas, assim como há raios sonoros harmônicos ou discordantes. Se o conjunto for harmônico a impressão é agradável; se for discordante, a impressão será penosa. Ora, por isto, é necessário que o pensamento seja formulado em palavras; a radiação fluídica não deixa de existir, quer seja, ou não expressa. Se todas forem benevolentes, todos os assistentes experimentarão um verdadeiro bem-estar, sentir-se-ão à vontade; mas se se misturarem pensamentos maus, produzirão o efeito de uma corrente de ar gelado num meio tépido.
Tal é a causa do sentimento de satisfação que se experimenta numa reunião simpática; aí como que reina uma atmosfera salubre, onde se respira à vontade; dai se sai reconfortado, porque aí nos impregnamos de eflúvios salutares. Assim também se explicam a ansiedade, o mal-estar indefinível dos meios antipáticos, onde pensamentos malévolos provocam, por assim dizer, correntes fluídicas malsãs.
A comunhão de pensamentos produz, pois, uma espécie de efeito físico que age sobre o moral. Só o Espiritismo poderia fazê-lo compreender. O homem o sente instintivamente, desde que procura as reuniões onde sabe encontrar essa comunhão; nessas reuniões homogêneas e simpáticas, colhe novas forças morais; poderia dizer-se que aí recupera pelos alimentos as perdas do corpo material.
Essas considerações, senhores e caros irmãos, parecem nos afastar do objetivo principal de nossa reunião e, contudo, elas para aqui nos conduzem diretamente. As reuniões que têm por objeto a comemoração dos mortos repousam na comunhão de pensamentos. Para compreender a sua utilidade, era necessário bem definir a natureza e os efeitos desta comunhão.
Para a explicação das coisas espirituais, por vezes me sirvo de comparações muito materiais e, talvez mesmo, um tanto forçadas, que nem sempre devem ser tomadas ao pé da letra. Mas é procedendo por analogia, do conhecido para o desconhecido, que chegamos a nos dar conta, ao menos aproximadamente, do que escapa aos nossos sentidos; é tais comparações que a doutrina espírita deve, em grande parte, ter sido facilmente compreendida, mestiço pelas mais vulgares inteligências, ao passo que se eu tivesse ficado nas abstrações da filosofia metafísica, ainda hoje ela não teria sido partilhada senão de algumas inteligências de escol. Ora, desde o princípio, importava que ela fosse aceita pelas massas, porque a opinião das massas exerce uma pressão que acaba fazendo lei e triunfando das oposições mais tenazes. Eis por que me esforcei em simplificá-la e torná-la clara, a fim de a pôr ao alcance de todos, com o risco de a fazer contestada por certa gente quanto ao título de filosofia, por que não é bastante abstrata e saiu do nevoeiro da metafísica clássica.
Aos efeitos que acabo de descrever, tocante a comunhão de pensamentos junta-se um outro, que é sua consequência natural, e que importa não perder de vista: é a força que adquire o pensamento, ou à vontade, pelo conjunto dos pensamentos ou vontades reunidas. Sendo a vontade uma força ativa, essa força é multiplicada pelo número de vontades idênticas, como a força muscular é multiplicada pelo número de braços.
Estabelecido este ponto, concebe-se que nas relações que se estabelecem entre os homens e os Espíritos haja, numa reunião onde reine perfeita comunhão de pensamentos, uma força atrativa ou repulsiva, que nem sempre possui a criatura isolada. Se, até o presente, as reuniões muito numerosas são menos favoráveis, é pela dificuldade de obter uma perfeita homogeneidade de pensamentos, e que se deve à imperfeição da natureza humana na terra. Quanto mais numerosas as reuniões, mais aí se mesclam elementos heterogêneos, que paralisam a ação dos bons elementos, e que são como os grãos de areia numa engrenagem. Assim não é nos mundos mais avançados e tal estado de coisas mudará na terra, à medida que os homens se tornarem melhores.
Para os Espíritas, a comunhão dos pensamentos tem um resultado ainda mais especial. Temos visto o efeito desta comunhão de homem a homem. O Espiritismo nos prova que ele não é menor dos homens aos Espíritos, e reciprocamente. Com efeito, se o pensamento coletivo adquire força pelo número, um conjunto de pensamentos idênticos, tendo o bem por objetivo, terá mais força para neutralizar a ação dos maus Espíritos. Também vemos que a tática destes últimos é levar à divisão e ao isolamento. Sozinho, um homem pode sucumbir, ao passo que se sua vontade for corroborada por outras vontades, ele poderá resistir, conforme o axioma: A união faz a força, axioma verdadeiro, tanto no moral quanto no físico.
Por outro lado, se a ação dos Espíritos malévolos pode ser paralisada por um pensamento comum, é evidente que a dos bons Espíritos será ajudada; sua influência salutar não encontrará obstáculos; seus eflúvios fluídicos, não sendo detidos por correntes contrárias, espalhar-se-ão sobre todos os assistentes, precisamente porque todos os terão atraído pelo pensamento, não cada um em proveito pessoal, mas em proveito de todos, conforme a lei da caridade. Descerão sobre eles como em línguas de fogo, para nos servirmos de uma admirável imagem do Evangelho.
Assim, pela comunhão de pensamentos, os homens se assistem entre si e, ao mesmo tempo, assistem os Espíritos e são por estes assistidos. As relações do mundo visível e do mundo invisível não são mais individuais, são coletivas e, por isto mesmo, mais poderosas em proveito das massas, como no dos indivíduos. Numa palavra, estabelece a solidariedade, que é a base da fraternidade. Ninguém trabalha para si só, mas para todos; e trabalhando para todos, cada um aí encontra a sua parte. É o que o egoísmo não compreende.
Todas as reuniões religiosas, seja qual for o culto a que pertençam, são fundadas na comunhão de pensamentos; é aí, com efeito, que podem e devem exercer toda a sua força, porque o objetivo deve ser o desligamento do pensamento do domínio da matéria. Infelizmente a maioria se afasta deste princípio, à medida que tornam a religião uma questão de forma. Disto resulta que cada um, fazendo seu dever consistir na realização da forma, se julga quites com Deus e com os homens, desde que praticou uma formula. Resulta ainda que cada um vai aos lugares de reuniões religiosas com um pensamento pessoal, por conta própria e, na maioria das vezes, sem nenhum sentimento de confraternidade, em relação aos outros assistentes: isola-se em meio à multidão e só pensa no céu para si próprio.
Certamente não era assim que o entendia Jesus, quando disse: Quando estiverdes diversos, reunidos em meu nome, eu estarei em vosso meio. Reunidos em meu nome, isto é, com um pensamento comum. Mas não se pode estar reunido em nome de Jesus sem assimilar os seus princípios, a sua doutrina. Ora, qual é o princípio fundamental da doutrina de Jesus? A caridade em pensamentos, palavras e ação. Os egoístas e os orgulhosos mentem quando se dizem reunidos em nome de Jesus, porque Jesus não os conhece por seus discípulos.
Tocados por esses abusos e desvios, algumas pessoas negam a utilidade das assembleias religiosas e, consequentemente, dos edifício a elas consagrados. Em seu radicalismo, pensam que seria melhor construir hospícios do que templos, visto como o templo de Deus está em toda a parte e em toda a parte pode ser adorado, que cada um pode orar em sua casa e a qualquer hora, ao passo que os pobres, os doentes e os enfermos necessitam de lugar de refúgio.
Mas porque se cometem abusos, porque se afastam do reto caminho, segue-se que não existe o reto caminho e que é mau tudo de que se abusa? Não, por certo. Falar assim é desconhecer a fonte e os benefícios da comunhão de pensamentos, que deve ser a essência das assembleias religiosas; é ignorar as causas que a provocam. Que os materialistas professam semelhantes ideias, compreende-se; porque, para eles, em tudo fazem abstração da vida espiritual; mas da parte dos espiritualistas e, melhor ainda, dos Espíritas, seria insensatez. O isolamento religioso, como o isolamento social, conduz ao egoísmo. Que alguns homens sejam bastante fortes por si mesmos, fartamente dotados pelo coração, para que sua fé e caridade não necessitem ser aquecidas num foco comum, é possível. Mas não é assim com as massas, a que falta um estimulante, sem o qual poderiam deixar-se tomar pela indiferença. Além disso qual o homem que poderá dizer-se bastante esclarecido para nada ter que aprender no tocante aos interesses futuros? Bastante perfeito para prescindir dos conselhos para a vida presente? Será sempre capaz de instruir-se por si mesmo? Não. A maioria necessita de ensinamentos diretos em matéria de religião e moral, como em matéria de ciência. Sem contradita, tais ensinos podem ser dados em toda a parte, sob a abóbada do céu, como sob a de um templo. Mas, por que os homens não haveriam de ter lugares especiais para as coisas celestes, como os têm para as terrenas? Porque não teriam assembleias religiosas, como têm assembleias políticas, científicas e industriais? Isto impede as fundações em beneficio dos infelizes. Dizemos, ainda mais, que quando os homens compreenderem melhor seus interesses do céu, haverá menos gente nos hospícios.
Falando de maneira geral e sem alusão a nenhum culto, se as assembleias religiosas muitas vezes se afastaram de seu objetivo principal, que é a comunhão fraterna do pensamento; se o ensino que aí é dado nem sempre seguiu o movimento progressivo da humanidade, é que os homens não cumprem todos os progressos ao mesmo tempo; o que não fazem num período, fazem em outro; à medida que se esclarecem, veem as lacunas existentes em suas instituições, e as preenchem; compreendem que o que era bom numa época, em relação ao grau de civilização, torna-se insuficiente numa etapa mais adiantada, e restabelecem o nível. Sabemos que o Espiritismo é a grande alavanca do progresso em todas as coisas; ele marca uma era de renovação. Saibamos, pois, esperar, e não peçamos a uma época mais do que ela pode dar. Como as plantas, é preciso que as ideias amadureçam para colher os frutos. Saibamos, além disso, fazer as necessárias concessões às épocas de transição, porque nada na natureza se opera de maneira brusca e instantânea.
Em razão do motivo que hoje nos reúne, senhores e caros irmãos, julguei oportuno aproveitar a circunstância para desenvolver o princípio da comunhão de pensamentos, do ponto de vista do Espiritismo. Sendo o nosso objetivo unirmo-nos em intenção para oferecer, em comum, um testemunho particular de simpatia aos nossos irmãos falecidos, poderia ser útil chamar nossa atenção para as vantagens da reunião. Graças ao Espiritismo, compreendemos a força e os efeitos do pensamento coletivo; podemos melhor explicar-nos o sentimento de bem-estar que se experimenta num meio homogêneo e simpático; mas, igualmente, sabemos que o mesmo se dá com os Espíritos, porque eles sabem receber os eflúvios de todos os pensamentos benevolentes, que para eles se elevam, como uma nuvem de perfume. Os que são felizes experimentam a maior alegria neste concerto harmonioso; os que sofrem sentem com isto o maior alívio. Cada um de nós, em particular, ora de preferência por aqueles que o interessam ou que mais estima. Façamos que aqui todos tenham sua parte nas preces dirigidas a Deus.



[1] Revista Espírita – 12/1864 – Allan Kardec

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