quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Diferenças entre a justiça humana e a divina[1]


 
Ademir Xavier


O que seria o estado de justiça? Na sociedade, corresponde a uma situação de equidade, equilíbrio ou igualdade concebíveis entre todos os atos praticados pelo indivíduo ‒ ou grupo de indivíduos ‒ com relação a si mesmo, com relação aos seus semelhantes, e do coletivo para com esse mesmo indivíduo ou grupo.
Os atos são resultados de ações que nascem como impulsos mentais livremente criados pelo homem, ou oriundos da aplicação da lei como síntese das crenças, valores e sentimentos de justiça do coletivo. A existência de leis e de um sentimento de justiça não implicam, porém, que esse estado de justiça exista absolutamente. Dificilmente tal estado existe em qualquer lugar sobre a Terra ainda que momentaneamente. A sociedade humana é composta de bilhões de indivíduos, de forma que uma ação sempre trará eventuais consequências negativas a qualquer um deles em certo momento de suas existências. Assim, esse estado ou condição de justiça é uma aspiração, um objetivo a ser perseguido, pois não dependente apenas de condições externas, materiais ou ambientais, mas principalmente da maneira como cada um se relaciona com seus semelhantes.
A justiça humana funciona como um processo semiautomático que deve restabelecer esse estado transitório de desequilíbrio (injustiça) por meio da aplicação de suas leis como um mecanismo de compensação. Entretanto, para que as leis sejam aplicadas é necessário validar a causa do desequilíbrio, que está no sujeito, indivíduo ou grupo responsável por ele. Dada a dificuldade e intempestividade em se remontar às causas, frequentemente uma situação de injustiça permanece por muito tempo, se não indefinidamente. Ainda que evidente, uma situação de injustiça leva tempo para ser devidamente compensada: dessa forma, a justiça humana tarda e talvez nunca se faça presente. 
A que se deve isso? A causa última da precariedade da ação da justiça humana está na privacidade dos pensamentos ou intenções dos indivíduos. Em suas diligências, a justiça humana é obrigada a inferir as intenções com base em evidências ou rastros tangíveis deixados pelos responsáveis das ações. Os pensamentos, ideias, intenções, desejos e vontades dos criminosos estão sempre ocultos porque eles são frutos da atividade mental inacessível. As circunstâncias que envolvem um crime podem ser tão complexas que até mesmo a falta de provas aparentes pode tornar-se uma evidência, e não deve passar despercebida a um bom perito. Como é impossível garantir sempre que existirão evidências ou provas de um crime, é impossível também garantir plenamente sua compensação: a justiça humana pode falhar e sua ação será parcial se o criminoso ou responsável não mais estiver entre nós.
Por maior que seja o primor do trabalho dos legisladores humanos, assim é resumidamente a justiça humana: restrita ao prescrito pelo costume e cultura de um povo, limitada em seu alcance no tempo, falível porque dependente do acesso a evidências, e cega das verdadeiras causas da injustiça. Sua força e duração depende da própria sociedade que estabelece e mantem seu funcionamento.
Admitamos, porém, que fosse possível ter acesso completo a registros de vontades e intenções anteriores dos indivíduos. Se o pensamento e os desejos próprios de uma alma se transformassem em objetos publicamente acessíveis. Então, não somente os atos concretos ou os traços tangíveis de um crime estariam à disposição, mas suas verdadeiras causas, a ponto dos primeiros tornarem-se dispensáveis. Admitamos ainda que os perpetradores de um crime, revelados por seus pensamentos e intenções, vivessem para sempre. As circunstâncias que suscitaram as vontades e desejos, materializadas em crimes, tornando-se registros tangíveis, para sempre emoldurados nas consciências dos que os praticaram... Como se aplicaria, então, a justiça?
É frequente imaginar a justiça divina como uma versão aprimorada da justiça humana. Porém, aspectos essenciais que distinguem imensamente uma da outra são completamente ignorados pela falta de uma visão além da vida do ser. Muitas comparações feitas no passado pelas religiões encontram eco na imagem material de um Deus legislador, cópia dos humanos, sentado em um trono a observar as ações humanas e a exercer sua justiça. O Espiritismo permite vislumbrar alguns dos novos aspectos da dinâmica de "causas e efeitos" para aprimorar nossa visão sobre como funcionaria esse processo de justiça espiritual. Nele a sobrevivência do ser tem papel fundamental. O acesso a pensamentos e vontades do espírito são aspectos externos relevantes, porque a atividade mental se exterioriza e deixa rastros, tanto quanto eventuais registros da cena de um crime. Impossível será sempre a um criminoso deixar de registrar as marcas de seu crime porque ele principia exatamente nos pensamentos e desejos que levam finalmente a sua consumação.
A justiça divina funciona como um processo natural automático que tem como objetivo estabelecer um estado definitivo de equilíbrio ou justiça, cuja função última é o aprimoramento espiritual do ser. Não é função desse mecanismo natural punir, embora, para o espírito encarnado, as vicissitudes e provas pelas quais ele é obrigado a passar possam se assemelhar a punições. Porque a maioria dos espíritos encarnados está em aprimoramento, é impossível ter na Terra um estado de justiça completo, que sempre dependerá das circunstâncias e maneiras como essa sociedade terrena está organizada. A justiça divina não tem empecilhos em sua ação porque age através da própria consciência dos envolvidos e dispõem de múltiplas existências como mecanismo de "ação penal".
Sem dúvida, ainda por muito tempo a lei será repressiva e castigará os culpados. Ainda não chegamos ao momento em que só a consciência da falta será o mais cruel castigo daquele que a cometeu. Mas, como vedes todos os dias, as penas se abrandam; tem-se em vista a moralização do ser; criam-se instituições para preparar a sua renovação moral; torna-se o seu abatimento útil a ele próprio e à sociedade. O criminoso não será mais a fera a ser expurgada do mundo a qualquer preço. Será a criança extraviada na qual deve ser corrigido o raciocínio falseado pelas más paixões e pela influência do meio perverso! (Instrução do Espírito do Sr. Bonnamy, pai. Revue Spirite, março de 1866. Médium: Sr. Desliens).
O aprimoramento do espírito é tão lento que a duração de uma existência humana não é suficiente para se reparar as faltas.  Assim, existe um tempo entre o cometimento de uma ação criminosa e sua correção posterior. A justiça divina aguarda condições e circunstâncias propícias para que elementos naturais ajam, restabelecendo um ordenamento que tenha sido intencionalmente perdido. Esse ordenamento não visa senão a compensação por situações que eram, elas mesmas momentâneas. Dessa forma, direitos eventualmente violados serão restabelecidos de forma transitória porque em si mesmos nunca poderiam durar para sempre. No cômputo dos ganhos do espírito, tudo que for material desaparecerá, subsistindo apenas as vivências do espírito como ganhos que aperfeiçoam a personalidade eterna.
Frequentemente diz-se que a justiça divina é infalível. De fato é como podemos inferir a partir da lei de cause e efeito. Porém, ela não existe para satisfazer a noção humana de justiça. Ela não age para punir ou satisfazer desejos de vingança ‒ nesse sentido nem mesmo a lei humana tem esse objetivo. Seu fim último é a educação moral do ser que não pode ser destruído. A justiça divina visa, como dissemos, o restabelecimento de uma ordem provisória, mesmo que em contexto totalmente diferente daquele em que uma falta foi gerada. 
Não se pode falar em um equivalente divino do que se concebe presentemente como "estado de justiça" meramente humano. Isso porque, com a evolução moral e intelectual do espírito, as ações praticadas nas coletividades também se aperfeiçoam a ponto de cessar qualquer condição, oportunidade ou circunstância para a injustiça. A lei de justiça entre os homens é incompleta porque deve ser substituída ou complementada por outra: a de amor e caridade. Para os homens dos dias de hoje, a meta maior é atingir um estado em cada um cumpra com suas obrigações legais, deixando de prejudicar os outros. Para a lei divina, a meta é o próprio aperfeiçoamento da justiça, o que só pode acontecer se, além de se respeitarem mutualmente, os homens passarem a se amar verdadeiramente. A aplicação da lei do amor e da caridade é ainda um capítulo recentemente aberto e, portanto, raramente reconhecido como uma necessidade dessa justiça maior. E no quê consiste esse amor?
Amar, no sentido profundo do termo; é o homem ser leal, probo, consciencioso, para fazer aos outros o que queira que estes lhe façam; é procurar em torno de si o sentido íntimo de todas as dores que acabrunham seus irmãos, para suavizá-las; é considerar como sua a grande família humana, porque essa família todos a encontrareis, dentro de certo período, em mundos mais adiantados; e os Espíritos que a compõem são, como vós, filhos de Deus, marcados na fronte para se elevarem ao infinito. É por isso que não podeis recusar aos vossos irmãos o que Deus liberalmente vos outorgou, porquanto, de vossa parte, muito vos alegraria que vossos irmãos vos dessem aquilo de que necessitais. Para todos os sofrimentos, tende, pois, sempre uma palavra de esperança e de apoio, a fim de que sejais inteiramente amor e justiça. (Parágrafo 10 de "A Lei de Amor", do Cap. XI de O Evangelho Segundo o Espiritismo)
Como lei universal, a lei de amor e caridade somente ela poderá transformar o mundo e sua justiça, porque deverá transformar cada indivíduo em um agente dessa justiça maior. Sem ela jamais será possível falar em estado de justiça verdadeiro, dado que cada um sempre agirá de acordo com seus próprios interesses e, fatalmente, o outro será prejudicado. E será sempre impossível ao Estado fiscalizar todas as ações humanas pelas razões que apresentamos acima. Para a lei humana, intensões e desejos maus, se não materializados em atos, não constituem crimes. Para a lei divina, uma má intensão, pensamento ou ato demonstra necessidade de correção sem o que é impossível ao indivíduo progredir em sua vida maior.
A incredulidade, o egoísmo e o cinismo poderão rir de nossas conclusões sobre as diferenças entre a justiça divina e a humana, considerando-as devaneios religiosos. Mas, felizmente, o incrédulo, o egoísta e o cínico morrerão milhares de vezes para renascer vezes sem conta a fim de aprender, no esquecimento, a lei de amor e caridade, que haverá de transformar a justiça humana para sempre.
 
Referências
 A. Kardec. O Livro dos Espíritos, III Parte, Das leis morais, Cap. VIII. "Lei do progresso".
 A. Kardec. O Evangelho segundo o Espiritismo, Cap. XI, Instruções dos Espíritos: "A Lei de Amor".




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