O que seria o estado de justiça?
Na sociedade, corresponde a uma situação de equidade, equilíbrio ou igualdade
concebíveis entre todos os atos praticados pelo indivíduo ‒ ou grupo de
indivíduos ‒ com relação a si mesmo, com relação aos seus semelhantes, e do
coletivo para com esse mesmo indivíduo ou grupo.
Os atos são resultados de ações
que nascem como impulsos mentais livremente criados pelo homem, ou oriundos da
aplicação da lei como síntese das crenças, valores e sentimentos de justiça do
coletivo. A existência de leis e de um sentimento de justiça não implicam,
porém, que esse estado de justiça exista absolutamente. Dificilmente tal estado
existe em qualquer lugar sobre a Terra ainda que momentaneamente. A sociedade
humana é composta de bilhões de indivíduos, de forma que uma ação sempre trará
eventuais consequências negativas a qualquer um deles em certo momento de suas
existências. Assim, esse estado ou condição de justiça é uma aspiração, um
objetivo a ser perseguido, pois não dependente apenas de condições externas,
materiais ou ambientais, mas principalmente da maneira como cada um se
relaciona com seus semelhantes.
A justiça humana funciona como
um processo semiautomático que deve restabelecer esse estado transitório de
desequilíbrio (injustiça) por meio da aplicação de suas leis como um mecanismo
de compensação. Entretanto, para que as leis sejam aplicadas é necessário
validar a causa do desequilíbrio, que está no sujeito, indivíduo ou grupo
responsável por ele. Dada a dificuldade e intempestividade em se remontar às
causas, frequentemente uma situação de injustiça permanece por muito tempo, se
não indefinidamente. Ainda que evidente, uma situação de injustiça leva tempo
para ser devidamente compensada: dessa forma, a justiça humana tarda e talvez nunca se faça presente.
A que se deve isso? A causa
última da precariedade da ação da justiça humana está na privacidade dos
pensamentos ou intenções dos indivíduos. Em suas diligências, a justiça humana
é obrigada a inferir as intenções com base em evidências ou rastros tangíveis
deixados pelos responsáveis das ações. Os pensamentos, ideias, intenções,
desejos e vontades dos criminosos estão sempre ocultos porque eles são frutos
da atividade mental inacessível. As circunstâncias que envolvem um crime podem
ser tão complexas que até mesmo a falta de provas aparentes pode tornar-se uma
evidência, e não deve passar despercebida a um bom perito. Como é impossível
garantir sempre que existirão evidências ou provas de um crime, é impossível
também garantir plenamente sua compensação: a
justiça humana pode falhar e sua ação será parcial se o criminoso ou
responsável não mais estiver entre nós.
Por maior que seja o primor do
trabalho dos legisladores humanos, assim é resumidamente a justiça humana: restrita
ao prescrito pelo costume e cultura de um povo, limitada em seu alcance no
tempo, falível porque dependente do acesso a evidências, e cega das verdadeiras
causas da injustiça. Sua força e duração depende da própria sociedade que
estabelece e mantem seu funcionamento.
Admitamos, porém, que fosse
possível ter acesso completo a registros de vontades e intenções anteriores dos
indivíduos. Se o pensamento e os desejos próprios de uma alma se transformassem
em objetos publicamente acessíveis. Então, não somente os atos concretos ou os
traços tangíveis de um crime estariam à disposição, mas suas verdadeiras
causas, a ponto dos primeiros tornarem-se dispensáveis. Admitamos ainda que os
perpetradores de um crime, revelados por seus pensamentos e intenções, vivessem
para sempre. As circunstâncias que suscitaram as vontades e desejos,
materializadas em crimes, tornando-se registros tangíveis, para sempre
emoldurados nas consciências dos que os praticaram... Como se aplicaria, então,
a justiça?
É frequente imaginar a justiça
divina como uma versão aprimorada da justiça humana. Porém, aspectos essenciais
que distinguem imensamente uma da outra são completamente ignorados pela falta
de uma visão além da vida do ser.
Muitas comparações feitas no passado pelas religiões encontram eco na imagem
material de um Deus legislador, cópia dos humanos, sentado em um trono a
observar as ações humanas e a exercer sua justiça. O Espiritismo permite
vislumbrar alguns dos novos aspectos da dinâmica de "causas e
efeitos" para aprimorar nossa visão sobre como funcionaria esse processo
de justiça espiritual. Nele a sobrevivência do ser tem papel fundamental. O
acesso a pensamentos e vontades do espírito são aspectos externos relevantes,
porque a atividade mental se exterioriza e deixa rastros, tanto quanto
eventuais registros da cena de um crime. Impossível será sempre a um criminoso
deixar de registrar as marcas de seu crime porque ele principia exatamente nos
pensamentos e desejos que levam finalmente a sua consumação.
A justiça divina funciona como um
processo natural automático que tem como objetivo estabelecer um estado
definitivo de equilíbrio ou justiça, cuja função última é o aprimoramento espiritual do ser. Não é
função desse mecanismo natural punir, embora, para o espírito encarnado, as
vicissitudes e provas pelas quais ele é obrigado a passar possam se assemelhar
a punições. Porque a maioria dos espíritos encarnados está em aprimoramento, é
impossível ter na Terra um estado de justiça completo, que sempre dependerá das
circunstâncias e maneiras como essa sociedade terrena está organizada. A
justiça divina não tem empecilhos em sua ação porque age através da própria
consciência dos envolvidos e dispõem de múltiplas existências como mecanismo de
"ação penal".
Sem dúvida, ainda por muito tempo a lei será repressiva e castigará os
culpados. Ainda não chegamos ao momento em que só a consciência da falta será o
mais cruel castigo daquele que a cometeu. Mas, como vedes todos os dias, as
penas se abrandam; tem-se em vista a moralização do ser; criam-se instituições
para preparar a sua renovação moral; torna-se o seu abatimento útil a ele
próprio e à sociedade. O criminoso não será mais a fera a ser expurgada do
mundo a qualquer preço. Será a criança extraviada na qual deve ser corrigido o
raciocínio falseado pelas más paixões e pela influência do meio perverso! (Instrução
do Espírito do Sr. Bonnamy, pai. Revue
Spirite, março de 1866. Médium: Sr. Desliens).
O aprimoramento do espírito é
tão lento que a duração de uma existência humana não é suficiente para se
reparar as faltas. Assim, existe um
tempo entre o cometimento de uma ação criminosa e sua correção posterior. A
justiça divina aguarda condições e circunstâncias propícias para que elementos
naturais ajam, restabelecendo um ordenamento que tenha sido intencionalmente
perdido. Esse ordenamento não visa senão a compensação por situações que eram,
elas mesmas momentâneas. Dessa forma, direitos eventualmente violados serão
restabelecidos de forma transitória porque em si mesmos nunca poderiam durar
para sempre. No cômputo dos ganhos do espírito, tudo que for material
desaparecerá, subsistindo apenas as vivências do espírito como ganhos que
aperfeiçoam a personalidade eterna.
Frequentemente diz-se que a
justiça divina é infalível. De fato é como podemos inferir a partir da lei de
cause e efeito. Porém, ela não existe para satisfazer a noção humana de
justiça. Ela não age para punir ou satisfazer desejos de vingança ‒ nesse
sentido nem mesmo a lei humana tem esse objetivo. Seu fim último é a educação
moral do ser que não pode ser destruído. A justiça divina visa, como dissemos,
o restabelecimento de uma ordem provisória, mesmo que em contexto totalmente
diferente daquele em que uma falta foi gerada.
Não se pode falar em um
equivalente divino do que se concebe presentemente como "estado de
justiça" meramente humano. Isso porque, com a evolução moral e intelectual
do espírito, as ações praticadas nas coletividades também se aperfeiçoam a
ponto de cessar qualquer condição, oportunidade ou circunstância para a
injustiça. A lei de justiça entre os homens é incompleta porque deve ser
substituída ou complementada por outra: a de amor e caridade. Para os homens
dos dias de hoje, a meta maior é atingir um estado em cada um cumpra com suas
obrigações legais, deixando de prejudicar os outros. Para a lei divina, a meta
é o próprio aperfeiçoamento da justiça, o que só pode acontecer se, além de se
respeitarem mutualmente, os homens passarem a se amar verdadeiramente. A
aplicação da lei do amor e da caridade é ainda um capítulo recentemente aberto
e, portanto, raramente reconhecido como uma necessidade dessa justiça maior. E
no quê consiste esse amor?
Amar, no sentido profundo do termo; é o homem ser leal, probo,
consciencioso, para fazer aos outros o que queira que estes lhe façam; é
procurar em torno de si o sentido íntimo de todas as dores que acabrunham seus
irmãos, para suavizá-las; é considerar como sua a grande família humana, porque
essa família todos a encontrareis, dentro de certo período, em mundos mais
adiantados; e os Espíritos que a compõem são, como vós, filhos de Deus,
marcados na fronte para se elevarem ao infinito. É por isso que não podeis
recusar aos vossos irmãos o que Deus liberalmente vos outorgou, porquanto, de
vossa parte, muito vos alegraria que vossos irmãos vos dessem aquilo de que
necessitais. Para todos os sofrimentos, tende, pois, sempre uma palavra de
esperança e de apoio, a fim de que sejais inteiramente amor e justiça.
(Parágrafo 10 de "A Lei de Amor", do Cap. XI de O Evangelho Segundo o Espiritismo)
Como lei universal, a lei de
amor e caridade somente ela poderá transformar o mundo e sua justiça, porque
deverá transformar cada indivíduo em um agente dessa justiça maior. Sem ela
jamais será possível falar em estado de justiça verdadeiro, dado que cada um
sempre agirá de acordo com seus próprios interesses e, fatalmente, o outro será
prejudicado. E será sempre impossível ao Estado fiscalizar todas as ações
humanas pelas razões que apresentamos acima. Para a lei humana, intensões e
desejos maus, se não materializados em atos, não constituem crimes. Para a lei
divina, uma má intensão, pensamento ou ato demonstra necessidade de correção
sem o que é impossível ao indivíduo progredir em sua vida maior.
A incredulidade, o egoísmo e o
cinismo poderão rir de nossas conclusões sobre as diferenças entre a justiça
divina e a humana, considerando-as devaneios religiosos. Mas, felizmente, o
incrédulo, o egoísta e o cínico morrerão milhares de vezes para renascer vezes
sem conta a fim de aprender, no esquecimento, a lei de amor e caridade, que
haverá de transformar a justiça humana para sempre.
Referências
A. Kardec. O
Livro dos Espíritos, III Parte, Das leis morais, Cap. VIII. "Lei do
progresso".
A. Kardec. O
Evangelho segundo o Espiritismo, Cap. XI, Instruções dos Espíritos: "A
Lei de Amor".
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