terça-feira, 15 de agosto de 2017

Problema Moral – Os Canibais[1]



Um de nossos assinantes dirigiu-nos a seguinte pergunta, rogando-nos que fosse respondida pelos Espíritos que nos assistem, caso ainda não a tivesse sido.
 Os Espíritos errantes, depois de um lapso de tempo mais ou menos longo, desejam e pedem a Deus a reencarnação como meio de progresso espiritual. Escolhem as provas e, usando o livre-arbítrio, elegem naturalmente aquelas que lhes parecem mais apropriadas a esse progresso, no mundo onde a reencarnação lhes é permitida. Ora, durante sua existência errante, que empregam em instruir-se (são eles que nos dizem), ficam sabendo quais as nações que melhor podem fazê-los atingir o fim a que se propõem. Veem populações ferozes, antropófagas e têm a certeza de que, nelas encarnando, tornar-se-ão ferozes e comedores de carne humana.
Seguramente não é nesse meio que haverão de realizar o progresso espiritual; seus instintos brutais apenas terão adquirido mais consistência pela força do hábito. Eis então prejudicado o seu objetivo, quanto à escolha das encarnações entre tal ou qual povo.
“O mesmo acontece com certas posições sociais. Entre estas, certamente há as que apresentam obstáculos invencíveis ao progresso espiritual. Citarei apenas os magarefes[2] nos matadouros, os carrascos etc.. Dizem que tais criaturas são necessárias: umas, porque não podemos passar sem alimentação animal; outras, porque é preciso executar as decisões da justiça, requeridas pela nossa organização social. Não é menos verdade que, reencarnando no corpo de uma criança destinada a abraçar uma ou outra dessas profissões, deve o Espírito saber que envereda por caminho errado e que se priva voluntariamente dos meios que o podem conduzir à perfeição. Não poderia acontecer, com a permissão de Deus, que nenhum Espírito quisesse esses gêneros de existência e, nesse caso, qual a necessidade dessas profissões em nosso estamento[3] social?
A resposta a essa questão decorre de todos os ensinamentos que nos têm sido dados. Podemos, pois, respondê-la, sem ter que submetê-la novamente aos Espíritos.
É evidente que um Espírito já elevado, por exemplo, o de um europeu esclarecido, não poderá escolher como meio de progresso uma existência selvagem: em vez de avançar, retrogradaria.
Mas sabemos que nossos próprios antropófagos não se encontram no último degrau da escala e que há mundos onde o embrutecimento e a ferocidade não têm analogia na Terra. Esses Espíritos ainda são inferiores aos mais atrasados Espíritos de nosso mundo e, renascer entre nossos selvagens é, para eles, um progresso. Se não visam mais alto, é que sua inferioridade moral não lhes permite compreender um progresso mais completo. O Espírito não pode avançar senão gradualmente; deve passar sucessivamente por todos os graus, de forma que cada passo à frente seja uma base para assentar um novo progresso. Ele não pode transpor de um salto a distância que separa a barbárie da civilização, como o escolar não pode ser promovido, sem transição, do á-bê-cê à retórica. É nisso que vemos uma das necessidades da reencarnação, que está verdadeiramente conforme à justiça de Deus. Não fora assim, em que se transformariam esses milhões de seres que morrem no último estado de degradação, caso não tivessem meios de atingir a superioridade? Por que os teria Deus deserdado dos favores concedidos aos outros homens? Nós o repetimos, por ser um ponto essencial: em razão de sua inteligência limitada, não compreendem o que é melhor senão do seu ponto de vista e dentro de estreitos limites. Há, entretanto, alguns que se transviam por quererem subir muito alto, e que nos oferecem o triste espetáculo da ferocidade no meio da civilização. Estes, voltando entre os canibais, lucrarão ainda.
Essas considerações também se aplicam às profissões de que fala o nosso correspondente. É evidente que oferecem superioridade relativa para certos Espíritos e não é nesse sentido que se deve compreender a escolha que farão. Pelo mesmo motivo, elas podem ser escolhidas como expiação ou como missão, porquanto nenhuma existe na qual não se possa encontrar oportunidade de fazer o bem e de progredir, pela própria maneira com que são exercidas.
Quanto à questão de saber em que se tornariam essas profissões, caso nenhum Espírito as quisesse abraçar, está respondida pelos fatos. Desde que os Espíritos que as alimentam procedem de mais baixo, não se deve temer o desemprego. Quando o progresso social permitir a supressão do ofício de carrasco, desaparecerá essa classe e não os candidatos, que se irão apresentar entre outros povos ou em outros mundos menos adiantados.





[1] Revista Espírita – Abril/1859 – Allan Kardec
[2] O que mata e esfola reses no matadouro.
[3] Modo de estar.


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