Quando surgiam casos de obsessão
no grupo, recorria-se, imediatamente, a Sinfrônio Lacerda.
Era ele, sem dúvida, o
companheiro ideal para a situação.
Dotado de altas qualidades
magnéticas, sabia orientar como ninguém.
Tratava-se, efetivamente, dum
amigo generoso e bem-intencionado.
Não regateava a colaboração
fraterna aos doentes, nem se inclinava a preferências individuais.
Primava pela delicadeza e pela
pontualidade onde fosse convidado a contribuir para o bem.
Por sua clarividência admirável,
aliada a firme disposição de servir, atingia as melhores realizações.
Especializara-se, por isso, na
assistência aos obsidiados, em que obtinha verdadeiros prodígios a lhe coroarem
a dedicação.
Sinfrônio, contudo, não obstante
a inteireza de caráter e a bondade ativa em determinados setores do serviço,
não se conduzia nas mesmas normas, diante dos desencarnados sofredores ou
ignorantes.
Dispensava aos médiuns enfermos
ou perseguidos o maior carinho, concentrando, porém, sobre as entidades em
desequilíbrio a máxima rispidez.
À maneira de grande número de
doutrinadores, via nos obsidiados inocentes vítimas e, nos transviados
invisíveis, os verdugos de sempre. Em razão disso, tratava os Espíritos
infelizes, desapiedadamente.
Não raro, Jerônimo, um de seus
mentores espirituais, se lhe fazia visível e recomendava:
– Meu amigo não te afaste do
entendimento necessário. Não vicies o olhar, no capítulo das obsessões. Nem
sempre o perseguido está isento de culpas. Os que exibem a carne doente podem
ser grandes devedores. Não desejo furtar-te ao espírito de caridade e serviço
aos semelhantes, mas devo esclarecer-te que não nos cabe olvidar a obrigação de
repartir os recursos do auxílio com as vítimas e os algozes, em porções iguais.
Por vezes, Sinfrônio, o desencarnado desditoso é mais digno de amparo que o
encarnado aparentemente sofredor.
As chagas abertas e as
necessidades dolorosas permanecem nos dois planos. Não te dirijas, pois, às
pobres entidades da sombra, com descabidas exigências. Sê enérgico, porque todo
sistema de construir ou restaurar demanda robustez de atitudes; entretanto, não
sejas cruel nas palavras. Atende aos perturbados da esfera invisível, com
decisão e fortaleza de ânimo; todavia, não excluas a fraternidade e a
compreensão.
Lacerda, contudo, parecia pouco
disposto a observar os pareceres.
Não sabia tratar os comunicantes
perturbados senão em tom áspero, como quem ordena, sem cogitar dos direitos
alheios.
Frequentemente, palestrava
sereno e gentil, antes do contato com os irmãos infelizes; no entanto, tão logo
se via à frente dos transviados do Além, assumia diversa posição. Emitia conceituação
pesada e agressiva, dentro de francas hostilidades.
Desdobrava-se lhe a experiência
sem alterações, quando foi surpreendido por aflitiva ocorrência no próprio lar.
A sua filha Angelina, jovem de
quinze anos, revelou perturbações psíquicas muito graves.
Assinalava-se lhe a enfermidade
por desmaios sucessivos e inquietantes. Em plena tranquilidade doméstica, caía,
de súbito, palidíssima, ofegante, perdendo a noção de si mesma.
O pai carinhoso, extremamente
impressionado com a situação, iniciou o tratamento, através de passes
curativos, sem resultados positivos na cura.
Alarmou-se a família, em virtude
dos acessos frequentes, e movimentaram-se providências diversas.
A esposa de Sinfrônio reclamou a
consulta ao psiquiatra, e o companheiro, embora convicto da legitimidade do
fenômeno de obsessão, por verificar a presença do perseguidor, com os próprios
olhos, foi compelido a valer-se do especialista, que diagnosticou a epilepsia
comum.
As injeções e os comprimidos,
porém, não resolveram o problema.
A prostração da enferma era cada
vez maior.
O genitor, não obstante conhecer
centenas de casos daquela natureza, achava-se atônito. A obsessão da filha
desconcertava-o. Mobilizara todos os recursos ao seu alcance, sem que se fizesse
sentir qualquer resultado satisfatório. Via a entidade perturbadora que lhe
minava a tranquilidade doméstica, anotava as ocasiões em que se aproximava
sutilmente da jovem, despendia esforços variados, mas não conseguia deslocar o
estranho perseguidor.
Às vezes, na intimidade, quando
Angelina desfalecia, de súbito, o devotado pai debalde recorria à palavra
forte. Acusava o infeliz, asperamente, admoestava-o com rigor.
A filha, contudo, parecia piorar
com semelhante prática.
Atormentado pela ineficiência do
seu método, Sinfrônio, esperançoso, organizou um programa de reuniões semanais,
no próprio ambiente da família, buscando atender ao caso complexo.
As manifestações através da
obsidiada começaram imprecisas; entretanto, a entidade perturbadora não
conseguia articular palavra. Incorporava-se em Angelina, prostrava-a dolorosamente,
mas tanto o comunicante quanto a médium pareciam enfermos espirituais em
posição grave.
Sinfrônio, na maioria das vezes,
internava-se pela extrema excitação.
– No dia em que eu puder falar a
esse obsessor infame, na certeza de ser ouvido – comentava, irritadiço –, expulsá-lo-ei
para sempre. Movimentarei todos os meus recursos magnéticos para enxotá-lo como
se fosse um cão.
Depois de dez meses, decorridos
sobre as reuniões sistemáticas, certa noite articulou o infeliz as primeiras
frases angustiosas.
Sinfrônio escutou-lhe as
lamentações, num misto de sentimentos contraditórios, experimentando, acima de
tudo, certa satisfação por atingir a presa na esfera verbal.
– Desventurado salteador das
trevas – exclamou o doutrinador após ouvi-la –, é chegado o momento de tua rendição!
Vai-te daqui! Ouve-me as determinações!... Não mais voltes a esta casa! Nunca,
nunca mais!...
– Não é possível – gemeu o
infortunado –, Angelina e eu estamos ligados, desde muitos séculos... E não
somente nós ambos sofremos nesta situação... Você também, Sinfrônio, foi meu
perverso inimigo... Algemas de ódio me ligam ao seu lar, muito antes que as
paredes de sua casa se levantassem...
Sinfrônio Lacerda, neurastênico,
interceptou-lhe a confissão e, concentrando todo o seu potencial magnético,
bradou, autoritário :
– Nem mais uma palavra! Não
desejamos ouvir-te! Retira-te, cruel perseguidor!... Ordeno! Afasta-te,
afasta-te!...
Como se a mísera entidade fora
premida por uma pinça de vastas proporções, desgarrou, de chofre, caindo,
porém, Angelina em terrível imobilidade.
Esforçou-se o pai por
despertá-la, mas em vão.
Três, quatro, cinco horas
escoaram aflitivas.
Agravado assim o problema, foi
chamado o médico, que identificou o estado comatoso.
Depois de catorze horas de
angústia, Sinfrônio Lacerda, chorando pela primeira vez, convidou alguns irmãos
para uma prece de socorro urgente, desfazendo-se em lágrimas na rogativa, de
auxílio aos benfeitores espirituais.
Finda a súplica, Jerônimo, o
sábio mentor que o acompanhava de perto, falou, conselheirático:
– Meu amigo, todas as obsessões,
quanto às moléstias de qualquer procedência, podem ser tratadas, mas nem todas
podem ser curadas, segundo os propósitos do homem. No caso de Angelina, temo-la
profundamente unida ao obsessor, desde alguns séculos, quase na mesma proporção
de tempo em que os dois se encontram intimamente associados ao teu próprio
espírito. No passado, perturbaste-lhes o lar e, agora, consoante a Lei Divina, procuram-te
ansiosos de equilíbrio no caminho reto.
Com o teu poder magnético,
isolaste o perseguidor, violentamente, mas não podes sustentar semelhante
medida, sem grave dano para ti mesmo. Não se arranca o carvalho de trezentos anos
sem algum trabalho, como não se pode desfazer uma construção milenária, de um minuto
para outro, sem ofensa à harmonia geral. Se não buscares a mesma entidade para junto
da filha, utilizando o mesmo influxo magnético, por intermédio do qual a
afastaste, Angelina desencarnará, em breves horas, para reunir-se ao
companheiro.
– Sim, agora compreendo –
soluçou o pai aflito.
E, acabrunhado, indagou :
– Jerônimo, meu benfeitor, como
proceder então? Ensina-me o caminho da ação por amor de Deus!
O venerável amigo, com serena
inflexão de voz, respondeu, comovidamente :
– Esqueceste, Sinfrônio, que há
doutrinações pela palavra e doutrinações através do exemplo.
Traze o obsessor e recebe-o no
teu santuário doméstico, afetuosamente, qual se o fizesse a um filho.
Cura-lhe as mágoas, orienta-o
para o Senhor.
Ama-o, quanto puderes, porque só
o amor pode curar o ódio.
E, reparando que Lacerda chorava
resignado, copiando a atitude do aprendiz inquieto, quando em dificuldade na
lição, Jerônimo concluiu :
– Não te sintas humilhado, meu
filho! Tens agora muitos conhecimentos e possibilidades, mas tens igualmente
muitas dívidas. E quem deve, Sinfrônio, precisa desembaraçar-se ao débito, a
fim de seguir, em paz, na gloriosa e divina jornada para Deus.
[1] Pontos e
Contos – pelo Irmão X, psicografado
por Francisco C. Xavier
Muito grata...excelente explicação!
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