J. Herculano Pires[2]
Na ação de Deus sobre a matéria
o pensamento divino aglutina a matéria, dando-lhe estrutura, através da qual
temos a passagem do pensamento do plano do inteligível para o plano do
sensível. Uso a divisão de Platão neste sentido: o inteligível é o intelecto
divino e o sensível é o plano do sensório, das sensações humanas. Dessa
maneira, Deus materializa o seu pensamento para atingir a sensibilidade do
campo material em que o homem vai ser criado. No fiat ou ato inicial da criação temos a ação direta e ativa do
pensamento divino estruturando a matéria. Uma vez formada essa estrutura, surge
um elemento novo que é designado pela expressão princípio inteligente. O pensamento divino ligado à matéria adquire
autonomia, sem com isso desligar-se da fonte que o alimenta. Transforma-se na mônada, elemento básico e estrutural da
matéria, de que são compostas as próprias partículas atômicas. A palavra mônada
procede de Pitágoras, foi empregada por Platão como ideia e desenvolvida
modernamente por Leibniz e Renouvier como uma substância
inteiramente simples (pura indivisível e
refratária a qualquer influência exterior). A mônada é dotada de uma força
interior que a transforma, de potencialidades que se desenvolvem continuamente
e de capacidade de percepção e vontade. As mônadas são diferentes entre si no
tocante a essas potências internas.
Estas correlações filosóficas
são necessárias para entender-se o que é o principio inteligente da concepção
espírita. Trata-se, como se vê, do princípio básico de toda a realidade,
responsável pela formação dos reinos da Natureza, pelo desenvolvimento da vida
e de todas as faculdades vitais e anímicas dos seres. O admirável poder de
intuição dos gregos captou não só a existência dos átomos, como também a das
mônadas, que a Ciência atual já está conseguindo atingir nas profundezas da
misteriosa estrutura da matéria, na pesquisa sobre as partículas atômicas. A
teoria espírita do princípio inteligente é explicada de maneira sintética no O Livro dos Espíritos. No item 23 dessa
obra lemos o seguinte:
Que é o espírito? É o princípio inteligente do Universo. Seguem-se
outras explicações nas quais a inteligência se define como um atributo
essencial do espírito. Geralmente confundimos a substância (espírito) com a
inteligência, que é seu atributo.
Colocado assim o problema,
parece-me explicada a razão pela qual os Espíritos Superiores não esmiuçaram
essa questão fundamental. Na própria tradição filosófica, desde bem antes da
era cristã, já dispúnhamos dos elementos necessários de intuições capazes de nos
fornecerem os dados para uma equação futura. Faltava-nos, porém, o
desenvolvimento, que só mais tarde poderia ocorrer, das pesquisas cientificas
em profundidade. Atualmente já podemos compreender com mais clareza a dinâmica
do processo criador. A teoria filosófica
da mônada, que antes poderia ser considerada como simples hipótese
inverificável, adquire hoje a condição de uma teoria cientifica ao alcance da
comprovação pela pesquisa. Teorias como a do físico inglês Dirac, por
exemplo, segundo a qual o Universo está mergulhado num oceano de elétrons
livres, ou a dos físicos soviéticos, de que esse oceano parece ser de uma luz
violácea proveniente dos primórdios da criação, mostram-nos as possibilidades
novas que as pesquisas espaciais estão abrindo nesse campo. O mesmo se pode
dizer da teoria dos campos de força que preenchem todo o espaço sideral.
É evidente que, diante dessas
novas posições conceptuais, toda a nossa cultura entra em crise, prenunciando o
advento de um novo mundo. A inteligência humana se abre para dimensões mais
amplas e profundas da realidade universal, exigindo a reformulação de conceitos
e estruturas culturais envelhecidas. Não
podemos mais pensar em Deus como uma figura humana, nem do ponto de vista
formal, nem do substancial. Só podemos considerá-lo como o Ser Absoluto, como a Inteligência Suprema,
mas assim mesmo sem lhe atribuir nenhuma das limitações humanas. Os teólogos do
Cristianismo Ateu, da Teologia Radical da Morte de Deus, sentem isso na própria
pele, mas faltam-lhes os dados para uma equação mais positiva do problema.
Divagam através de suposições ameaçadoras e caem irremediavelmente num
torvelinho de contradições. Se tivessem a humildade de consultar a Filosofia
Espírita, essa pedra rejeitada da parábola evangélica, encontrariam nela a
pedra angular do novo edifício a construir.
O Espírito a que a Bíblia se
refere em numerosos tópicos e que nos Evangelhos torna o nome de Espírito Santo
é o Espírito de Deus em sua manifestação universal. A Criação tem dois
aspectos, o material e o espiritual. O sopro de Deus é o espírito criado no fiat e o homem de barro, o Adão
terreno, o ápice da criação nos mundos em desenvolvimento, como a Terra. O
sopro de Deus nas ventas do homem de barro, para infundir-lhe o princípio da
vida e da inteligência, é a ligação do espírito com a matéria na formação da
mônada. No pensamento divino todo o quadro da criação estava presente desde o
princípio. E tudo era perfeito. A perfeição do ideal constituía o modelo da
realidade (o mundo da rés, das coisas) que devia projetar-se no Infinito. Por
isso, as mônadas diferenciadas, com características específicas, seriam
semeadas no espaço, para a germinação lenta, mas segura e contínua, dos
conteúdos essenciais de cada uma delas. A mônada é a semente do ser, da criatura
humana e divina que dela surgirá nas dimensões da temporalidade.
Não se pode conceber, em nossa
relatividade humana, mais grandiosa e perfeita concepção do ato criador.
Podemos perguntar por que Deus, que é o supremo poder, precisa do tempo para
realizar essa obra gigantesca. Mas o Espiritismo ensina que a nossa
relatividade decorre de necessidades nossas e não de Deus. O que para nós são
séculos e milênios, para Deus pode ser apenas aquele instante que, para
Kierkegaard, era o encontro do tempo com a eternidade. Um instante de
profundidade e extensão imensas, que resume para o homem todas as suas
existências nas duas dimensões do Universo que hoje nos são acessíveis: a espiritual e a material.
É, sem dúvida, espantoso pensar,
como Gustave Geley, que tudo quanto consideramos inconsciente, desde o grão de
areia aos mundos que giram em torno dos sóis, possui a potencialidade da
consciência em desenvolvimento no seu interior. Mas quando compreendemos que a
mônada, síntese de espírito e matéria, é uma unidade infinitesimal, sobre a
qual se apoia toda a realidade — o que corresponde à concepção atômica da
Ciência em nossos dias — nossa mente começa a abrir-se para um entendimento
superior. Se o poder do átomo nos espanta, a potencialidade da mônada nos
aturdiria. E ambos esses poderes nada mais são do que fragmentos do poder de
Deus. Quando pensamos nisso, a teoria do princípio inteligente começa a
revelar-nos a grandeza da doutrina espírita.
E no entanto os seus fundamentos
estão nos princípios evangélicos, sobre os quais milhares de teólogos,
filósofos, místicos e pregadores escreveram e falaram sem cessar, numa catadupa
de páginas e palavrórios ao longo de dois mil anos? Essa opacidade da
inteligência humana, esse embotamento da capacidade de compreensão poderia
fazer-nos descrer das potencialidades do principio inteligente se não
soubéssemos que o instinto gregário do homem o leva à imitação e à repetição
dos papagaios. Quando Kardec se atreveu, utilizando-se de todos os recursos de
sensatez e equilíbrio, apoiando-se na cultura do Século XIX — para não provocar
reações precipitadas que lhe prejudicariam a obra — a publicar “O Livro dos Espíritos“, todos os
anátemas da Religião, da Ciência e da Filosofia caíram sobre ele como as bombas
norte-americanas sobre o Vietnã. Somente agora se abre uma perspectiva
favorável, em todos aqueles campos reacionários, para uma possível compreensão
do seu gigantesco trabalho de reposição das coisas em seus lugares. Mas então
aparecem os que pretendem reformar, atualizar e tecnicizar as suas obras ao
invés de estudá-las e aprofundar-lhes o sentido. Isso nos prova quanto
necessitamos do tempo para que a mônada oculta se abra e se atualize em nós.
Todas as coisas têm sua origem
no mundo das ideias, como Platão, levado pelas mãos de Sócrates, percebeu
claramente. Nos planos superiores do Universo não se usa a linguagem articulada
das hipóstases inferiores. Fala-se do pensamento, na linguagem telepática pura.
Sócrates descobriu essa linguagem ao encontrar o conceito no fundo de cada palavra.
Podemos assim conceber que a linguagem de Deus seja puramente mental. Na mente
divina a ideia do Universo delineia-se perfeita, mas a projeção dessa ideia no
plano inferior da matéria tem de vencer os obstáculos e as resistências da
materialidade. Foi o que Hegel viu e
descreveu com precisão em sua teoria estética, mostrando a luta do belo para se
sobrepor, no tempo, às imperfeições materiais.
O mesmo se dá com o princípio
inteligente, que, para vencer a opacidade da matéria, para inteligenciá-la, segundo
Kardec, tem de lutar na temporalidade. Mas, podemos perguntar, porque Deus não
fez em condições transparentes a matéria, ao invés de opaca? O Espiritismo
explica que a matéria se torna transparente na proporção em que visualizamos os
planos superiores, de tal maneira que a confundimos com o espírito. Isso nos
mostra que a técnica dos contrastes desaparece naquilo que Buda chamou de Nirvana e que a nossa apoucada inteligência
considerou como o Nada. Kant teve
razão ao localizar os limites da razão humana no momento em que cessam as
contradições dialéticas. Mas nesse momento, nessa linha divisória entre o mundo
real e o mundo ideal, começa a razão angélica. Os homens transformados em anjos
– não com asas nem com estrelas na fronte mas com a mente e o coração
purificados, passam a ver e a compreender a realidade pela intuição direta e
global. Nesse momento descobrem a perfeição do Universo, aquela perfeição que,
desde o princípio, estava na concepção ideal de Deus, mas que nas hipóstases
materiais tornava-se irreconhecível como a Vênus
de Milo coberta de terra e lama quando á arrancaram do subsolo.
O próprio tempo desaparece nesse
momento. Não há mais necessidade do véu de Isis da temporalidade para encobrir
a verdade das coisas e dos seres. Mergulhamos no eterno, que não é estático e
inerte como o supomos, mas tem a dinâmica e a lucidez de que o pensamento nos
pode dar um vago exemplo. Kardec verificou, em suas pesquisas espíritas, que a
esquematização do sensório humano, com a divisão das faculdades sensoriais em
órgãos específicos e rigidamente localizados no corpo, não existe para os
espíritos libertos das impressões materiais. Os espíritas percebem, veem e
sentem de maneira global, por todo o seu ser em sintonia com toda a realidade.
As deslocalizações e transferências das sensações nas práticas hipnóticas
comprovam, em nosso plano, a veracidade dessa descoberta efetuada nas suas
pesquisas mediúnicas. Seu ensaio sobre a sensação nos espíritos, que se
encontra no livro básico da doutrina, é uma peça de esclarecimento lúcido e
didático desse problema.
As pesquisas atuais da
Parapsicologia, que até agora só puderam refazer o caminho percorrido por
Kardec, representam uma confirmação da validade das suas afirmações de mais de
um século. Apesar disso, e no interesse inferior da defesa de posições
sectárias, toda uma multidão de falsos cientistas se empenha na tarefa ingrata
de desmentir o Espiritismo através de capciosos argumentos temperados na panela
da mentira ou nos caldeirões da trapaça diabólica. Mas nada disso impedirá que
a verdade triunfe, pois a verdade é, existe par si mesma e não pede licença a
nenhum censor religioso ou ateu para se revelar como ela é, aos olhos de todos
os que se fizerem dignos dela.