David Robson - BBC Future –
26/03/2015
O caso deixou boquiabertos todos os
envolvidos: uma mulher de 74 anos começou a apresentar uma irritação na pele
que não melhorava. Quando finalmente procurou um hospital, parte de sua perna
direita estava coberta de nódulos. Os testes confirmaram que se tratava de um
carcinoma, um tipo de câncer de pele.
Por causa da maneira como os
tumores estavam espalhados, a radioterapia não seria eficiente. E os médicos
não poderiam removê-los. Alan Irvine, oncologista responsável pelo tratamento
da paciente no Hospital St. James, em Dublin, na Irlanda, lembra que a
amputação parecia ser a única opção viável, mas por causa da idade da paciente,
seria difícil que ela se adaptasse bem a uma prótese.
"Decidimos simplesmente
esperar e pensar em outras possibilidades, mesmo sabendo que haveria muito
sofrimento pela frente", conta.
Foi aí que o "milagre"
começou: apesar de não terem sido tratados, os tumores diminuíram e murcharam
até desaparecerem completamente. Depois de 20 semanas, a paciente estava
curada. "Não tínhamos dúvida alguma de que o diagnóstico estava correto,
mas depois disso nada aparecia nas biópsias ou nos exames de imagem", diz
o médico. "O caso mostra que é possível para o corpo combater o câncer,
mesmo que isso seja incrivelmente raro."
A questão é: como? A paciente de
Irvine acredita ter sido a "mão de Deus". Mas cientistas estão
estudando a biologia por trás da chamada "regressão espontânea" para
buscar pistas que possam fazer casos de autocura algo mais comum.
Recuperada pela
gravidez
Em tese, nosso sistema
imunológico deveria perseguir e destruir células que sofrem mutações antes que
elas comecem a evoluir para um câncer. Mas às vezes essas células conseguem
passar despercebidas, reproduzindo-se até formarem um tumor.
Até o câncer ser detectado pelos
médicos, é altamente improvável que o paciente consiga se recuperar sozinho:
acredita-se que apenas um em cada 100 mil pacientes pode se livrar da doença
sem receber tratamento.
Mas entre esses raríssimos casos
há algumas histórias realmente inacreditáveis. Um hospital da Grã-Bretanha, por
exemplo, recentemente tornou público o caso de uma paciente que descobriu um
tumor entre o reto e o útero pouco antes de saber que estava grávida. A
gestação correu bem e o bebê nasceu saudável. Quando ela se encaminhava para o
doloroso tratamento para o câncer, seus médicos notaram, com muito espanto, que
o tumor desapareceu misteriosamente durante a gravidez. Nove anos depois, a
mulher não apresenta nenhum sinal de recaída.
Casos semelhantes de recuperação
extraordinária foram observados em muitos tipos de câncer, inclusive em formas
mais agressivas como a leucemia mieloide aguda, que provoca o crescimento
anormal dos glóbulos brancos do sangue.
"Um paciente que não receba
tratamento pode morrer em poucas semanas ou até em uma questão de dias",
conta Armin Rashidi, da Universidade Washington, em St. Louis. Ele, no entanto,
encontrou 46 casos em que essa doença regrediu sozinha. "É possível que
99% dos oncologistas digam que isso é impossível de acontecer", afirma
Rashidi, que escreveu um artigo sobre o assunto com o colega Stephen Fisher.
Crianças que se
salvam
Por outro lado, é
surpreendentemente comum ver crianças se recuperando do neuroblastoma, um tipo
de câncer infantil, oferecendo algumas das melhores pistas sobre o que pode
acarretar a regressão espontânea.
Esse tipo de câncer surge com
tumores no sistema nervoso e nas glândulas. Se ele se espalhar, pode levar ao
aparecimento de nódulos na pele e pólipos no fígado, e o inchaço do abdômen
dificulta a respiração.
Trata-se de uma doença muito
desgastante, mas ela pode desaparecer tão rapidamente como surgiu, mesmo sem
intervenção médica. Na realidade, para bebês com menos de 1 ano, a regressão é
tão comum que muitos médicos evitam realizar a quimioterapia imediatamente, na
esperança de que os tumores diminuam por conta própria.
"Cuidei de três casos com
metástases impressionantes, mas apenas observamos os pacientes e eles se
recuperaram", lembra Garrett Brodeur, do Hospital Infantil da Filadélfia.
Para evitar o sofrimento dessa
espera, Brodeur está buscando entender os mecanismos por trás do
desaparecimento de um câncer. "Queremos desenvolver agentes específicos
que possam iniciar a regressão para não termos que esperar que a natureza tome
seu rumo ou que 'Deus' decida", afirma o médico.
Até agora, Brodeur conseguiu
boas evidências. Uma delas é de que as células em tumores de neuroblastoma
parecem ter desenvolvido a capacidade de sobreviver sem o fator de crescimento
nervoso (NFG, na sigla em inglês), o que permite que elas se reproduzam bem em
locais do corpo onde não há o NFG.
A remissão espontânea pode ser
provocada por uma mudança natural nas células tumorais, talvez envolvendo os
receptores que se ligam ao NFG. Isso pode fazer com que as células percam esse
nutriente essencial e não consigam sobreviver.
Se isso for verdade, um
medicamento que consiga atuar nesses receptores seria capaz de iniciar a
recuperação em outros pacientes, sem os indesejáveis efeitos colaterais
provocados por tratamentos mais tradicionais para o câncer.
O poder da infecção
Infelizmente, recuperações
inesperadas de outros tipos de câncer foram menos estudadas. Mas algumas
evidências conhecidas hoje foram descobertas há mais de 100 anos por um médico
americano pouco conhecido.
No século 19, William Bradley
Coley se surpreendeu quando um paciente que tinha um enorme tumor no pescoço se
curou completamente quando pegou uma infecção na pele e teve febre alta.
Coley testou o princípio em
alguns outros pacientes e descobriu que, ao infectá-los deliberadamente com
bactérias, ou tratando-os com toxinas segregadas por micróbios, tumores
impossíveis de serem retirados cirurgicamente foram destruídos.
Será que uma infecção seria uma
maneira de estimular a remissão espontânea? Análises recentes dão apoio à ideia.
O estudo de Rashidi e Fisher descobriu que 90% dos pacientes que se recuperaram
de leucemia tinham sofrido alguma outra doença, como pneumonia, antes do
desaparecimento do câncer.
Outros artigos mostraram que
tumores sumiram depois de casos de difteria, gonorreia, hepatite, gripe,
malária, sarampo e sífilis.
Mas não são os germes sozinhos
que provocam a cura: a infecção é quem provoca uma resposta imunológica que
torna o ambiente inóspito para o tumor. O aquecimento provocado pela febre, por
exemplo, pode tornar as células cancerígenas mais vulneráveis ou até fazer com
que elas "se suicidem".
Ou talvez seja importante o fato
de que quando estamos lutando contra uma bactéria ou um vírus, nosso sangue
está saturado de moléculas inflamatórias que agem como uma
"convocatória" para os macrófagos do organismo, transformando essas
células imunes em guerreiros que matam e engolem micróbios – e potencialmente o
câncer.
Ao mesmo tempo, essas células
podem estimular outras do sistema imunológico a reconhecerem as células
cancerígenas, e assim atacá-las caso o câncer volte.
Contraindo a cura
Outros cientistas estão
avaliando uma linha de combate mais radical. Uma das abordagens é
deliberadamente contaminar um paciente de câncer com uma doença tropical.
A técnica, desenvolvida pela
start-up americana PrimeVax, tem duas etapas: inicialmente, retira-se uma
amostra do tumor e coleta-se células dentríticas do sangue do paciente. Essas
células ajudam a coordenar a resposta do sistema imunológico a uma ameaça e, ao
serem expostas ao tumor em laboratório, elas podem ser programadas para
reconhecer as células cancerígenas.
Na segunda etapa, o paciente é
contaminado com o vírus da dengue, antes de receber as novas células
dendríticas programadas.
Sob supervisão médica, o
paciente acaba desenvolvendo uma febre alta e libera moléculas inflamatórias –
colocando o resto do sistema imunológico em alerta vermelho.
O tumor passa a ser o alvo
principal de um ataque ostensivo das células imunológicas, lideradas pelas
células dendríticas. "A febre da dengue derruba e reagrupa o sistema
imunológico, fazendo ele assumir com toda a força seu papel de matar células
cancerígenas", explica Burce Lyday, da PrimeVax.
A ideia de infectar pacientes
vulneráveis com uma doença tropical pode parecer loucura, mas os cientistas
argumentam que a dengue, curiosamente, mata menos adultos do que a gripe comum.
E, uma vez que a febre passe, as
células programadas vão se manter alertas para o caso de o tumor reincidir.
"O câncer é um alvo em movimento. Muitas terapias atacam de apenas uma
frente", afirma Lyday.
O cientista espera realizar os
primeiros testes com pacientes de melanoma até o fim deste ano.
É claro que todo cuidado é
pouco. Como lembra o irlandês Irvine, "a remissão espontânea é uma pequena
peça em um quebra-cabeças muito complicado". Mas se esse tipo de
tratamento der certo, as implicações são extraordinárias.
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