sexta-feira, 27 de novembro de 2015

AS PROVAS E A MORTE[1]

 

Estabelecido o alvo da existência, mais alto que a fortuna, mais elevado que a felicidade, uma Inteira revolução produz-se em nossos intuitos.
O Universo é uma arena em que a alma luta pelo seu engrandecimento, e este só é obtido por seus trabalhos, sacrifícios e sofrimentos. A dor, física ou moral, é um meio poderoso de desenvolvimento e de progresso. As provas auxiliam-nos a conhecer, a dominar as nossas paixões e a amarmos realmente os outros. No curso que fazemos, o que devemos procurar adquirir é a ciência e o amor alternadamente. Quanto mais soubermos, mais amaremos e mais nos elevaremos. A fim de podermos combater e vencer o sofrimento, cumpre estudarmos as causas que o produzem, e, com o conhecimento dos seus efeitos e a submissão às suas leis, despertar em nós uma simpatia profunda para com aqueles que o suportam. A dor é a purificação suprema, é a escola em que se aprendem a paciência, a resignação e todos os deveres austeros. É a fornalha onde se funde o egoísmo, em que se dissolve o orgulho. Algumas vezes, nas horas sombrias, a alma submetida à prova revolta-se, renega a Deus e sua justiça; depois, passada a tormenta, quando se examina a si mesma, vê que esse mal aparente era um bem; reconhece que a dor tornou-a melhor, mais acessível à piedade, mais caritativa para com os desgraçados.
Todos os males da vida concorrem para o nosso aperfeiçoamento. Pela dor, pela prova, pela humilhação, pelas enfermidades, pelos reveses o melhor desprende-se lentamente do pior. Eis por que neste mundo há mais sofrimento que alegria. A prova retempera os caracteres, apura os sentimentos, doma as almas fogosas ou altivas.
A dor física também tem sua utilidade; desata quimicamente os laços que prendem o Espírito à carne; liberta-o dos fluídos grosseiros que o retêm nas regiões inferiores e que o envolvem, mesmo depois da morte. Essa ação explica, em certos casos, as curtas existências das crianças mortas com pouca idade. Essas almas puderam adquirir na Terra o saber e a virtude necessários para subirem mais alto; como um resto de materialidade Impedisse ainda o seu voo, elas vieram terminar, pelo sofrimento, a sua completa depuração.
Não imitemos esses que maldizem a dor e que, nas suas imprecações contra a vida, recusam admitir que o sofrimento seja um bem. Desejariam levar uma existência a gosto, toda de bem-estar e de repouso, sem compreenderem que o bem adquirido sem esforço não tem nenhum valor e que, para apreciar a felicidade, é necessário saber-se quanto ela custa. O sofrimento é o instrumento de toda elevação, é o único meio de nos arrancarmos à indiferença, à volúpia. É quem esculpe nossa alma, quem lhe dá mais pura forma, beleza mais perfeita.
A prova é um remédio infalível para a nossa inexperiência. A Providência procede para conosco como mãe precavida para com seu filho. Quando resistimos aos seus apelos, quando recusamos seguir-lhe os conselhos, ela deixa-nos sofrer decepções e reveses, sabendo que a adversidade é a melhor escola da prudência.
Tal o destino do maior número neste mundo. Debaixo de um céu algumas vezes sulcado de raios, é preciso seguir o caminho árduo, com os pés dilacerados pelas pedras e pelos espinhos. Um Espírito de vestes lutuosas guia os nossos passos; é a dor santa que devemos abençoar, porque só ela sacode e desprende-nos o ser das futilidades com que este gosta de paramentar-se, torna-o apto a sentir o que é verdadeiramente nobre e belo.
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Sob o efeito desses ensinos, a que se reduz a ideia da morte? Perde todo o caráter assustador. A morte mais não é que uma transformação necessária e uma renovação, pois nada perece realmente. A morte é só aparente; somente muda a forma exterior; o princípio da vida, a alma, fica em sua unidade permanente, indestrutível. Esta se acha, além do túmulo, na plenitude de suas faculdades, com todas as aquisições com que se enriqueceu durante as suas existências terrestres: luzes, aspirações, virtudes e potências. Eis ai os bens imperecíveis a que se refere o Evangelho, quando diz: “Os vermes e a ferrugem não os consumirão nem os ladrões os furtarão.” São as únicas riquezas que poderemos levar conosco e utilizar na vida futura.
A morte e a reencarnação que se lhe segue, em um tempo dado, são duas condições essenciais do progresso. Rompendo os hábitos acanhados que havíamos contraído, elas colocam-nos em meios diferentes; obrigam a adaptarmo-nos às mil faces da ordem social, e universal.
Quando chega o declínio da vida, quando nossa existência, semelhante à página de um livro, vai voltar-se para dar lugar a uma página branca e nova, aquele que for sensato consulta o seu passado e revê os seus atos. Feliz quem nessa hora puder dizer: meus dias foram bem preenchidos! Feliz aquele que aceitou as suas provas com resignação e suportou-as com coragem! Esses, macerando a alma, deixaram expelir tudo o que nela havia de amargor e fel.
Rememorando na consciência as suas tribulações, bendirão os sofrimentos que suportaram, e, com a paz íntima, verão sem receio aproximar-se o momento da morte.
Digamos adeus às teorias que fazem da morte a porta do nada, ou o prelúdio de castigos Intermináveis. Adeus sombrios fantasmas da Teologia, dogmas medonhos, sentenças inexoráveis, suplícios infernais! Chegou a vez da esperança e da vida eterna! Não mais há negrejantes trevas, porém, sim, luz deslumbrante que surge dos túmulos.
Já vistes a borboleta de asas multicores despir a informe crisálida, esse invólucro repugnante, no qual, como lagarta, se arrastava pelo solo? Já a vistes solta, livre, voejar ao calor do Sol, no meio do perfume das flores? Não há imagem mais fiel para o fenômeno da morte. O homem também está numa crisálida que a morte decompõe. O corpo humano, vestimenta de carne, volta ao grande monturo; o nosso despojo miserável entra no laboratório da Natureza; mas, o Espírito, depois de completar a sua obra, lança-se a uma vida mais elevada, para essa vida espiritual que sucede à vida corpórea, como o dia sucede à noite. Assim se distingue cada uma das nossas encarnações.
Firmes nestes princípios, não mais temeremos a morte. Como os gauleses, ousaremos encará-la sem terror. Não mais haverá motivo para receio, para lágrimas, cerimônias sinistras e cantos lúgubres. Os nossos funerais tornar-seão uma festa pela qual celebraremos a libertação da alma, sua volta à verdadeira pátria.
A morte é uma grande reveladora. Nas horas de provação, quando as sombras nos rodeiam, perguntamos algumas vezes: Por que nasci eu? Por que não fiquei mergulhado lá na profunda noite, onde não se sente, onde não se sofre, onde só se dorme o eterno sono? E, nessas horas de dúvida e de angústia, uma voz vem até nós e diz-nos: Sofre para te engrandeceres, para te depurares! Fica sabendo que teu destino é grande. Esta terra fria não é teu sepulcro. Os mundos que brilham no âmbito dos céus são tuas moradas futuras, a herança que Deus te reserva. Tu és para sempre cidadão do Universo; pertences aos séculos passados como aos futuros, e, na hora atual, preparas a tua elevação. Suporta, pois, com calma, os males por ti mesmo escolhidos. Semeia na dor e nas lágrimas o grão que reverdecerá em tuas próximas vidas. Semeia também para os outros assim como semearam para ti! Ser imortal, caminha com passo firme sobre a vereda escarpada até às alturas de onde o futuro te aparecerá sem véu! A ascensão é rude, e o suor inundará muitas vezes o teu rosto, mas, no cimo, verás brilhar a grande luz, verás despontar no horizonte o Sol da Verdade e da Justiça!
A voz que assim nos fala é a voz dos mortos, é a voz das almas queridas que nos precederam no país da verdadeira vida. Bem longe de dormirem nos túmulos, elas velam por nós. Do pórtico do invisível veem-nos e sorriem para nós. Adorável e divino mistério! Comunicam-se conosco e dizem: Basta de dúvidas estéreis; trabalhai e amai. Um dia, preenchida a vossa tarefa, a morte reunir-nos-á.



[1] Depois da morte – Léon Denis

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