Marco Milani
O Espiritismo teve sua origem
num contexto histórico em que o interesse por fenômenos mediúnicos já se
espalhava por diversos países, sobretudo após o surgimento do chamado
espiritualismo moderno nos Estados Unidos. O ponto de partida desse movimento
foi o célebre episódio das irmãs
Fox, em Hydesville, no Estado de Nova York, em 1848, e rapidamente
popularizou sessões mediúnicas por diversas regiões do país. No entanto, Allan
Kardec, ao examinar o fenômeno com rigor filosófico e método científico,
reconheceu os méritos iniciais do movimento americano, mas também apontou com
clareza suas limitações e diferenças fundamentais em relação ao Espiritismo.
Em seu artigo intitulado “A
escola espírita americana”, publicado na Revista
Espírita em maio de 1864, Kardec analisou diretamente o espiritualismo
anglo-saxão, com atenção às suas características e implicações. Ele destacou
que os fatos observados nos Estados Unidos desempenharam um papel importante ao
provar, de modo público e ostensivo, a existência de uma inteligência além da
matéria. No entanto, ele observou que no espiritualismo americano a atenção aos
fenômenos predominou, sem se ocupar da compreensão racional das causas nem da
dedução de suas consequências morais.
Uma das diferenças mais
evidentes apontadas por Kardec é que, enquanto o espiritualismo moderno gerou
espetáculos e abordagens superficiais, o Espiritismo nasceu como uma doutrina
com estrutura filosófica e metodológica próprias. A mediunidade, para o Espiritismo,
não foi objeto de adoração nem de exibição, mas uma ferramenta para a aquisição
de conhecimento e a elevação moral do ser humano. Kardec estruturou sua
investigação a partir de princípios de controle
universal, coerência lógica e finalidade educativa, elementos ausentes nas
práticas mais comuns do espiritualismo popular americano.
Outra diferença significativa,
segundo Kardec, centrou-se no tratamento dado à reencarnação. Enquanto o
espiritualismo anglo-saxão, bastante enraizado em tradições protestantes,
rejeitava ou ignorava essa ideia, o Espiritismo a colocava como um dos pilares
fundamentais da evolução do Espírito. Para Kardec, a resistência à reencarnação
por parte dos norte-americanos e ingleses estava ligada a preconceitos sociais
e a uma visão teológica restritiva. Ele destacou que, nas comunicações
mediúnicas recebidas em diversos locais europeus, esse princípio era tratado de
forma mais aberta e coerente, o que indicava um meio cultural mais propício e
maduro para absorver conceitos mais avançados sobre justiça divina, progresso,
liberdade e responsabilidade individual.
Kardec criticou, ainda, a
tendência do espiritualismo americano de absorver conceitos esotéricos e
místicos, observando com cautela a promoção dos fenômenos espirituais sem o
devido discernimento doutrinário. Ele defendeu que a comunicação com os Espíritos
não podia ser vista como fonte de oráculos infalíveis ou conselhos terrenos,
mas como um meio de aprendizado moral e racional sobre a realidade espiritual.
Dessa maneira, o Espiritismo não se trata de uma simples continuação do que
ocorria na América do Norte.
Sendo uma doutrina autônoma, com
objetivos distintos, o Espiritismo não apenas comprova a existência da alma,
mas também esclarece sobre as leis que regem sua existência antes, durante e
após a encarnação. Mais do que fenômenos, o Espiritismo apresenta uma visão
integrada e progressiva da vida, que une ciência, filosofia e moral em torno da
imortalidade da alma e da evolução espiritual.
A originalidade do Espiritismo
está, portanto, na sua proposta de transformação do ser humano a partir da
razão esclarecida e da moral vivida. Ao sistematizar os ensinamentos dos
Espíritos, Kardec não apenas racionalizou o invisível, como também ofereceu à
humanidade uma chave de leitura para o sofrimento, a justiça, a liberdade e o
amor, sem dogmatismo, sem hierarquias sacerdotais e sem mistificações. Nesse
sentido, o Espiritismo é um ponto de superação do espiritualismo moderno, cuja
força está não na autoridade humana, mas na coerência das ideias e na
universalidade do ensino dos Espíritos.
As diferenças entre o
espiritualismo anglo-saxão e o Espiritismo não apenas persistiram ao longo do
tempo, mas se consolidaram em razão de suas bases metodológicas antagônicas.
Enquanto o primeiro manteve-se frequentemente vinculado a uma abordagem mais intuitiva
e menos crítica, o segundo firmou-se sobre o princípio da fé raciocinada, que
rejeita a aceitação passiva de crendices em favor de uma compreensão lógica e
experimental dos fenômenos espirituais. Essa distinção fundamental explica por
que o Espiritismo logrou desenvolver uma doutrina coerente, enquanto o
espiritualismo americano, em muitos aspectos, fragmentou-se em correntes
esotéricas e práticas desconexas.
A fé raciocinada propõe uma
espiritualidade crítica, onde comunicações mediúnicas e princípios doutrinários
devem ser analisados pela razão e moral, evitando os excessos do misticismo e a
banalização dos fenômenos espirituais. No entanto, em contextos marcados pelo
sincretismo religioso e pouca formação analítica, esse ideal enfrenta desafios,
representados por práticas sem fundamentação doutrinária ou científica, bem
como a valorização exacerbada de opiniões e argumentos de autoridade de
médiuns, Espíritos ou obras romanceadas, reproduzindo os mesmos problemas que
Kardec criticou no espiritualismo americano do século XIX.
Atualmente, para preservar a sua
essência, o movimento espírita necessita reafirmar, efetivamente, seu
compromisso com a razão esclarecida, caminho seguro para evitar distorções e
cumprir seu papel educativo e transformador.
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